As quartas de lá

A noite de quarta

estrelada

como pingos de tinta fresca

que mancham a tela negra de um pintor boêmio

que implora inspiração divina para que, finalmente, escoe por seus dedos uma obra,

não necessariamente prima,

apenas uma obra,

que possa trazer alguns trocados para sustentar seus vícios.

Todos na casa já estão dormindo,

a única certeza que tenho até então é que será uma daquelas noites quentes de insônia.

Entro pela porta da frente e caminho lentamente até o quarto onde estão dormindo minha filha e esposa,

beijo o rosto de uma, e a testa doutra.

Volto então ao quintal e sento em uma daquelas cadeiras de praia,

apesar de não ser um daqueles admiradores assíduos da natureza,

volto a olhar para cima.

Esse céu realmente está fantástico!

Se fumasse,

aposto que seria o momento perfeito para uma bela tragada.

Que privilegiado sou eu!

Mesmo que por 5 dias no ano, aqui estou, com minha família,

em um lugar esplêndido como esse,

logo eu,

logo de onde vim.

Até poucos anos atrás o mais distante que conseguia estar eram a 2 ou 3 metros dos abraços de minha mãe.

Minha mãe!

Será que ela está bem essa noite?

Já dormiu ou está com a mesma insônia do filho, ou quem sabe uma pior…

Quão privilegiado sou eu diante minha mãe!

Começo a fazer planos, contas,

preciso trazê-la aqui um dia.

Preciso trazê-la logo, antes que seja tarde demais,

e eu tenha que carregar mais um peso que minhas costas, já não tão jovens, possam suportar…

Já não consigo aproveitar o luar,

nem me sinto privilegiado ou sortudo,

apenas penso, penso e tento me concentrar em não pensar.

Preciso trocar pensamentos por passos!

Assim que eu funciono.

Levanto-me da cadeira,

dou a última olhada para o céu e saio,

sem pretensões,

não quero ver o mar,

nem conhecer novas pessoas,

quero apenas sentir se as noites estreladas da aqui

tem o mesmo gosto das de lá.

O chão arenoso,

típico de cidade litorânea

agarra meus chinelos,

os grãos de areia fazem uma fina camada entre eles e meus pés.

Quanto mais eu ando, mais desconforto aquilo me causa.

Por mais estranho que possa parecer

acelero ainda mais meus passos,

concentrar-me no desconforto dos pés, parece por um instante aliviar o desconforto que aqueles pensamentos recentes estavam causando.

Pelo caminho encontro um pequeno bar,

penso em pedir apenas uma água,

mas quando chego até o atendente mudo a pedida:

Uma cerveja por favor

Vai beber aqui?

Vou sim, quero também uma coca cola.

Dou uma breve passada de olhos pelo ambiente,

jovens seguram em uma das mãos sua bebida, noutra revezam grandes mangueiras negras que expelem uma fumaça densa.

Se fumasse, certamente seria um bom lugar para tragar meu cigarro!

Dirijo-me à parte externa do bar,

sento-me em um banco de madeira longo,

abro a cerveja,

encho meio copo,

abro a coca e o completo.

O atendente me olha de um jeito estranho,

penso que a ideia inicial da água poderia ter sido melhor…

Dou o primeiro gole e fico ouvindo aquelas pessoas falarem, e por Deus, como gosto de fazer isso!

As conversas são trocadas com a rapidez de seus goles e suas tragadas,

namoros mal-sucedidos,

empregos ruins,

roupas caras,

brincos e pulseiras,

investimentos tentadores!

Que maravilha!

Por um instante passa pela minha cabeça,

“se fosse mais sociável encostaria esse velho banco de madeira em uma dessas mesas”.

Mas que assunto trago eu que poderia interessar a eles?

Quem sabe queiram saber quantas batidas por minuto o coração de um homem saudável de 35 anos poderia dar.

Ou então quais os sintomas iniciais de uma pessoas com esclerose.

Já sei, que tal quais tipos de câncer acometem mais pessoas entre 30 e 40 anos…

Deixa pra lá.

Termino então aquele copo,

deixo a metade da cerveja na garrafa, e com um gole apenas termino de vez com a lata de coca.

Levanto e aceno com a mão para o atendente,

que retribui o gesto com o balançar da cabeça,

como um consentimento para que eu me retire do seu bar.

Volto então para casa,

exatamente pelo mesmo caminho,

torcendo para que aqueles grãos de areia voltem a trazer desconforto a meus pés,

e que ao menos por alguns segundos

me faça esquecer daquele outro desconforto,

causado por finos grãos de loucura que insistem em causar desconforto em meus pensamentos.

Sinto sua falta

Cancelei nosso reencontro,

ao optar em não acreditar.

Adiantei nosso adeus,

ao não saber me despedir.

Ainda pego-me embebedado em suas lembranças,

com o gosto do açúcar empapuçado no mais puro álcool qual você me servia na colher que misturava sua bebida.

Consigo claramente lembrar das cartas da nossa última partida,

Às de copas, cavalo de espada e rei de ouro,

mas seu rosto aos poucos está sumindo,

dissipando como a fumaça,

que os pingos de gordura provocavam na brasa nos seus inesquecíveis churrascos de domingo.

Ontem as 5 acordei com um som,

parecia seu velho rádio anunciado as primeiras canções do dia.

Era nosso despertados das manhãs de domingo.

Tentei fechar os olhos e voltar a dormir,

mas ouvia claramente seus sorrisos soltos

e suas blasfêmias Ítalo-brasileiras,

que para mim,

ecoavam como a mais linda melodia nostálgica que poderia existir.

Naquele mesmo dia preparei para o café

a velha receita que ensinou.

Dois limões,

Duas colher de açúcar,

Complete o copo com alambique até a borda.

Segurei aquele copo por minutos em minhas mãos,

apenas sentindo, respirando aquela mistura de aromas que lembrava seu hálito naquelas manhas.

Covarde que sou não quis dar nenhum gole,

apenas raspei a colher no fundo do copo,

pegando todo o açúcar ainda não dissolvido, e coloquei em minha boca.

Senti um breve amortecer em meus lábios,

lábios esses que não tiveram coragem de beijar seu rosto em sua despedida e falar um último eu te amo.

Ouvi de um amigo que morremos duas vezes,

quando efetivamente ocorre nossa morte e quando a última pessoa que ainda lembra de você vier a morrer.

Assim carrego sua lembrança em mim,

e o mantenho vivo enquanto respirar ou até minha mente desajustada funcionar.

Um amigo e o velho cão

Como um velho cão

que espera ansioso seus biscoitos de recompensa

por não sujar o tapete da sala,

ele espera o dia certo da semana

para ingerir suas gotas de alegria paliativa.

A expressão, uma vida de cão nunca pareceu fazer tanto sentido nesse momento,

exceto pela racionalidade,

já que pra ele,

o velho cão possui mais momentos racionais a muito tempo.

Nessa tarde quente ele me ligou,

e pediu quantas pessoas realmente felizes eu conhecia.

Não pude responder,

até por que vejo muitas pessoas sorrindo,

mas parecem mais como bonecos de ventríloquos que mostram seus dentes para provar que ainda possuem forças de ao menos abrir a boca.

Marcamos então de nos encontrar na praça central.

Ao chegar o vi observando um jovem adulto embriagado, dormindo com a companhia do sol.

Ele volta a me perguntar,

quantas pessoas realmente felizes você conhece?

Ficamos em silêncio enquanto observamos aquele homem abrir apenas um de seus olhos, entornar mais um gole de sua bebida, sorrir e voltar a dormir.

É estranho explicar,

mas foi como um ato poético,

com toda carga emocional e dramática que aquela cena proporciona.

Esse homem parece feliz, comento.

Quem sabe responde ele,

pingando algumas gotas de um calmante na mão e lambendo cada uma como fossem as últimas gostas de esperança que o fazem sair da cama toda manha.

Então me pergunta,

sabe qual a diferença minha para aquele homem embriagado ali?

Não, não sei.

É por que o sol não faz bem para minha pele.

Esbocei um sorriso e então lhe agradeço,

faziam alguns dias que nada me fazia sorrir.

Ele se levanta,

diz que tem uma longa caminhada,

e se despede.

Então eu lhe pergunto,

quantas pessoas realmente felizes você conhece?

Tirando o rapaz deitado ao sol que acabei de conhecer?

Sim!

Nenhuma, exceto meu velho cão em dias de recompensa.

Vejo ele se afastando aos poucos e penso,

tomara que o tapete da sala esteja limpo,

seria muito injusto aquele velho cão, já cansado da rotina diária não receber seus biscoitos hoje.

Já li isso em algum lugar!

Já é sexta feira!

outra semana dedicada,

a plantar frutos mórbidos,

projetando como será minha partida,

sem considerar que cada volta do relógio,

eu parto sem notar.

O caminho de casa é curto,

prefiro não usar luvas,

é inverno, e sinto o vento como navalhas passando entre meus dedos.

“O inverno faz mal ao coração”

Li em algum lugar!

Ao chegar em casa ligo um pequeno aquecedor,

colo meus pés nele,

ficam tão quentes que tenho que esfria-los encostando no piso frio do apartamento.

Lembro então que preciso comer algo,

mas não tenho fome,

ao mesmo tempo, fico alimentando pensamentos intrusivos que insistem em me atormentar.

Sigo sentado no sofá,

pego o controle da televisão,

os canais são trocados ao ritmo de meus pensamentos,

rápidos e aleatórios.

Então lembro de uma velha garrafa de vinho na porta da geladeira.

“Vinho faz bem ao coração”

Li isso em algum lugar!

Apenas um copo,

vinho, tinto, suavemente preparado para acalmar mentes agitadas.

Seco o copo em um gole,

sinto minhas orelhas queimando,

meu pescoço ardendo

e meu coração disparado.

Como isso pode fazer bem ao coração?

Lembro de meu primeiro porre,

porre de vinho,

o pior que existe!

Esbocei um pequeno sorriso,

quem sabe era vinho suavemente preparado para fazer almas tristes sorrirem.

Mas a sensação dura poucos segundos,

então uma onda de ódio e tristeza toma conta de mim.

Começo a desferir palavrões,

xingamentos,

esbravejo sem parar…

CALMA!

“Stress faz mal ao coração”

Li isso em algum lugar!

Paro de reclamar,

descarto o restante da garrafa de vinho na pia da cozinha e penso.

Se Deus que é Deus descansou apenas um dia em sete, quem sou eu pra exigir um final de semana tranquilo?

A estrada de praia grande

Que tal voltarmos pela estrada de praia grande?

Naquele entardecer de domingo

ainda sem chuva,

onde a única coisa que passava pela minha cabeça era

compassar as batidas do meu coração com o andar de meus pés.

Pareceu um convite tão generoso,

tão verdadeiro,

que negá-lo soaria como um pecado.

E, por Deus, se todos esses meus pensamentos forem frutos de pecados que cometi,

peço humildemente:

me perdoe.

Após alguns KM daquele asfalto cinza,

como meu olhar – cinza,

que, de tempos em tempos, cruzava pelo espelho do automóvel,

e refletia toda frustração de quem não entende por que está triste.

Concentro-me então nas rotações do motor,

nas falas ingênuas de minha filha,

nas piadas peculiares da minha irmã (que só nós entendemos),

e no silêncio encantador de minha esposa que confronta aquele meu olhar triste com um sorriso levemente inclinado que costuma ser meu refúgio em dias cinzas,

como o asfalto – cinza.

Então o asfalto dá lugar a um chão de areia,

por vezes batido,

por vezes movediço.

Olho primeiro à esquerda,

como deve ser.

Vejo uma pequena faixa de areia, e a imensidão dor mar.

À direita, uma vegetação rasteira, sobre dunas de areia que pareciam não ter fim.

Essa é a estrada de praia grande!

Naquele momento onde o silêncio é o melhor adjetivo diante tamanha beleza,

não resisto e falo em voz alta:

Esse deve ser o lugar mais lindo que já vi!

Então não ouço mais as ingenuidades da Lara,

nem nenhuma anedota da Analu.

O que impera é o silêncio de

de quatro vidas,

ali interligadas por aquela beleza deslumbrante.

Agora falo em voz baixa,

quase como um simples pensamento:

Esse é um dos melhores momentos da minha vida!

Obrigado, estrada de praia grande!

Mas alguns KM olhando aquela imensidão e beleza fazem com que meus pensamentos comecem a acelerar.

Apesar de não gostar tanto de Legião Urbana,

nunca pensar em gotas d’água ou grãos de areia pareciam fazer tanto sentindo.

Toda aquela beleza se torna uma espécie de questionamento existencial,

não sei,

os sentimentos ficam confusos,

e agora penso apenas na minha irrelevância perante isso tudo,

e só espero que a estrada de praia grande não seja tão grande assim.

Qual o problema? Pergunta minha esposa,

Não sei, olhar pra tudo isso mostra quão pequeno eu sou, difícil explicar.

Por que você simplesmente não curte esse momento?

Não sei, acho que são os pecados…

Pecados?

Deixa pra lá…

Então o chão de areia

batido por vezes,

movediço por vezes,

volta a dar lugar ao asfalto.

Se acabava assim a estrada de praia grande.

Então, o que achou da estrada de praia grande?

É tão linda quanto cruel!

Acho que não era a resposta que aquele anfitrião tão generoso queria.

Mas o que poderia fazer?

Mentir seria mais um pecado,

E, por Deus, se todos esses pensamentos forem frutos de pecado que cometi, peço humildemente:

me perdoe,

me perdoe…

Do que você tem tanto medo?

Ontem ela me olhou,
diferente de outras vezes,
um olhar um tanto quanto piedoso,
aqueles olhares que não julgam, só tentam de alguma forma confortar.
Me pediu um abraço,
sentou ao meu lado e perguntou.
De que você tem tanto medo?
Não pude responder,
não sabia o que responder,
não quero responder!

Continuo com o olhar fixo na televisão, com o canto dos olhos tento fazer uma leitura de sua expressão,
não quero a ver triste,
sei que ela tem feito tanto por nós a tanto tempo.
Levanto do sofá,
caminho até a cozinha e pego um copo d’água,
quem sabe ajude lubrificar minhas cordas vocais e alguma resposta possa sair de minha boca.

Quer um copo d’água?
Não.
Onde está a nenê?
Está dormindo a mais de 20 min.

Caminho lentamente até o quarto para não a acordar,
deito ao seu lado, na pequena cama de solteiro,
quase colo meu rosto ao dela,
fico por alguns minutos simplesmente a olhando e sentindo sua respiração tocando meu rosto.
E isso é tão bom!

or algum momento penso em tentar adormecer ali ao seu lado,
mas o calor da noite não a deixaria descansar,
e já sei como é o seu humor no dia seguinte após uma noite mal dormida!

Ao levantar corro meus olhos pela sala,
mas não a vejo.
Sento no sofá com as luzes apagadas,
espero mais alguns minutos,
então me dirijo até nosso quarto, onde a observo dormir.
Então me aproximo e cochicho a ela.

Sinto medo que a vida seja curta demais e que eu não possa aproveitar todo amor que sinto por vocês.

Volto até a cozinha,
pego mais um copo d’água,
deito no sofá e acordo na manhã seguinte.
Com a certeza que desperdicei mais uma oportunidade de aproveitar todo o amor que sinto por elas.

Água sem Gás

Estiquei minhas pernas em um velho banco,

no terminal urbano.

Onde vidas se cruzam na velocidade com que

seus sonhos são construídos e desconstruídos.

Jovens andam rápido,

alguns com brilhos nos olhos,

e mochila nas costas.

Velhos andam devagar,

com semblante cansado,

e pouco orgulhosos por cumprirem mais um dia

de sua árdua rotina.

Entre embarques e desembarques

ouço conversas cruzadas que invadem meus ouvidos.

Prova de física amanhã, estou ferrado!

Minha aposentadoria está demorando em chegar!

Será que tenho tempo para um cigarro?

Não suporte mais essa rotina!

Mudo então o banco,

Dessa vez não estico as pernas.

Me sento apoiando os cotovelos nas coxas,

E as mãos sobre a testa,

sempre foi minha defesa natural contra contatos humanos.

Percebo então companhia.

Amigo, serei breve, preciso beber, pode me ajudar com alguns trocados?

De quanto você precisa?

O suficiente para esquecer realmente quem sou.

Não sei se tenho tudo isso no bolso,

que tal 8 reais?

Agradeço, e que Deus lhe dê em dobro!

Espere amigo, pode repetir?

Que Deus lhe dê em dobro!

Você pode pedir a ele que me dê em dobro

o suficiente para também esquecer quem realmente sou?

Olha amigo, acho que também precisa de uma bebida.

Acompanho então aquele homem,

com passos rápidos ele entra em um dos bares

do terminal urbano.

Bares que abrigam toda a beleza da existência humana,

todos quem sabe,

no final do dia bebendo para esquecerem quem são.

Tomo coragem e adentro ao mesmo bar.

Fala chefe, o que será para você hoje?

Uma água sem gás, pois sou medroso demais para

sentar-me com esses homens e discutir assuntos simples,

simplificar a complexidade da vida e quem sabe esquecer quem sou!

Perdão, não entendi.

Apenas uma água sem gás por favor.

Dia de roça

Eram dois ou três domingos por ano no máximo,

quando a família entrava no carro para visitar o nono e a nona,

saíamos do interior para irmos ao “mato”,

ambiente familiar aos meus pais,

ambos criados no trabalho rural desde cedo, onde a inchada sempre vinha antes do lápis.

Fomos de ônibus,

com um cheiro terrível de freios sendo queimados pelo atrito com as rodas.

Fomos de fusca,

que deixava quase sempre um cheiro sutil de gasolina em nossas roupas.

Fomos de Fiat uno bordô,

esse já com 4 portas,

com Leandro e Leonardo no velho toca fitas.

E fomos de celta,

branco, com CDs de música sertaneja e

tapetes azuis metálicos, que brilhavam como meus olhos a espera da chegada.

Para mim pouco importava a forma,

mesmo lidando com constantes enjoos provocados pelas infinitas curvas.

Importava-me a chagada!

E a cada uma das 4 pequenas pontes do caminho, as quais eu passava com os olhos fechados pelo medo, meus enjoos iam desaparecendo.

Chegávamos quase sempre muito cedo,

não cedo suficiente para pegar o início do fogo na churrasqueira de lata na velha garagem.

Não importava a hora,

sete e meia,

oito e quinze,

ou nove horas,

lá estava o nono, com o fogo aceso,

e uma infinidade de carne ainda na salmoura, essa que ele fazia questão de todos molharem o dedo e provarem seu sabor.

As boas-vindas ao meu pai eram sempre com uma generosa caipira,

açúcar abundante, cachaça abundante e uma ou duas singelas pedras de gelo.

Para minha mãe, o olhar fraterno de pai,

e sacolas de frutas frescas já separadas para nosso regresso.

Para o neto, tudo isso,

açúcar empapuçado em cachaça abundante, um olhar fraterno e 40 cartas de um baralho espanhol pronto para a bisca, a marina ou a escova.

Primeiro o baralho!

Três cadeiras de palha, uma servindo de mesa,

duas sendo cadeiras.

Algumas partidas rápidas,

quase sempre finalizando o jogo com resultados iguais.

“Três a três nono, depois quem ganhar a última ganha todas!”

Agora era hora de abraçar a nona,

que há horas estava com a mesa do café servida,

esperando que todos provassem o pão,

as bolachas caseiras,

o queijo e a nata frescos.

Abraços, com beijos repetidos na bochecha.

“Como você cresceu belo, senta, vamos comer”.

E só me deixava sair da mesa após um generoso café,

mesmo por vezes sem fome, eram impossível negar tamanho amor empregado em cada um dos pratos preparados por ela.

Antes de sair um punhado de bala sete belo, rosas, sabor iogurte.

Descia até o paiol, à espera agora era por meu primo, que normalmente chegava mais tarde, exceto em épocas de pescaria, quando ele chegava muito mais cedo que eu, e deixava 20 ou 30 minhocas separadas em um pote reutilizado de margarina.

Saía do paiol, e caminhava até o porão do velho casarão.

Casa antiga, com porão, e sobrado, aqueles sobradinhos baixos, sem forro, que servia de dormitórios de visitas e uso vitalício aos morcegos.

O porão, de chão batido servia como depósito de ferramentas de todos os tipos: inchadas, picaretas, moedores de carne, amolador de facas e um pelego de ovelha no canto, esse que imagino servir de cama para o nono em dias poucos produtivos ou de muita bebida.

Agora faltava o chiqueiro, por mais estranho que possa parecer o lugar que mais gostava de visitar.

Adorava ver aqueles leitões recém-nascidos encolhidos perto de uma incandescente lâmpada elétrica.

Sempre vigiados atentamente pela porca matriz, que soltava grunhidos estridentes caso tentasse encostar em um de seus filhotes.

Por vezes passava minutos pensando em estratégias para soltá-los, quem sabe poderiam fugir para o meio da plantação e fugir do seu destino, mas como poderia, se nem ao menos eu poderia fugir do meu…

Logo o cheiro de carne assada se espelhava pelo ar,

o almoço nunca era o prato principal,

ao menos para mim.

Os miúdos espetados pelo nono eram para piazada,

coração,

rins,

e o delicioso fígado assado servido com gotas de limão, esses colhidos sempre por eu e meu primo, que os apertava antes de colher, para saber qual teria mais “suco”.

A tarde quando os tios e primos mais velhos apelidados por nós de coisas desconexas como Buda (que nos gerava risos imparáveis), se dedicavam a reforçar o tradicional porre de antártica.

Já as mulheres conversavam entre si, com pipoca doce de melado e cuias de chimarrão circulando.

As cinco irmãs, todas idênticas, tinham ali sua identidade compartilhada, perdi as contas de quantas vezes chamei minha mãe de tia, e algumas de minhas tias de mãe.

Para eu e meus primos mais jovens,

a tarde era produtiva,

caça aos ratos do paiol,

o chute nas frutas caídas, que costumavam deixar o peito do em pé todo vermelho,

o inticar as galinhas,

a natação no milho envenenado?!?!

E por fim as lágrimas de saber que a despedida estava mais próxima que a chegada.

O sol já estava a se pôr, meu pai e meus tios tiravam um cochilo,

segundo eles, uma estratégia para curar o porre e pegar a estrada com segurança…

Os primos mais velhos continuavam a beber e contar vantagem, enquanto nós, de longe seguíamos colocando apelidos.

É hora de voltar,

o porta-malas repleto de frutas,

fatias de pão e queijo enroladas em um pano de prato para o lanche.

Entrava de vagar no carro, e quando batia a porta meu pai manobrava o carro e sempre buzinava como sinal de adeus.

Eu ficava de joelhos no banco de trás pelos primeiros quilômetros,

olhando cada detalhe que pudesse captar,

como se de alguma forma fazendo isso, a sensação de tristeza e saudade que apertava meu peito pudesse ir embora.

Por vezes exausto, dormia a maioria do caminho, e acordava na primeira lombada que meu pai sempre saltava na chegada da cidade.

Hoje vago solitário pelas lembranças marcantes que aquele tempo deixou em mim.

Tento lembrar cada detalhe dos dias de mato que faziam aquele menino envergonhado, introspectivo se sentir o dono do mundo por algumas horas.

E quando outrora um caminhão

carregado de porcos passa e todos tampam o nariz,

eu respiro bem fundo e tento lembrar dos planos que fazia para mudar o destino daqueles pequenos leitões,

quem sabe assim possa achar planos para mudar o meu.

E seus velhos amigos, como estão?

Pareceu uma boa ideia reunir a velha turma da escola para um reencontro, fazia anos que a maioria não tinha nem ao menos se cruzado para um simples:

“Olá, como anda a vida velho amigo?”

A grande parte de nós tinha dividido as salas de aula do colégio estadual Antônio Morandini por dez ou onze anos, seria ótimo reencontrá-los, quem sabe relembrar algumas das histórias cômicas que compartilhamos naqueles bons tempos.

Todos nós éramos da época em que o colégio tinha duas entradas principais.

A lateral, destinada aos alunos, tinha um grande portão enferrujado sempre aberto e um largo corredor de brita que nos conduzia até a “área coberta”, que abrigava a maiorias das salas de aula, cozinha e biblioteca.

Nesse trajeto era possível observar a grande estrutura que sustentava a caixa d’agua, lugar de encontro de jovens casais, provando o primeiro gosto do amor, ou de um simples beijo escondido que seja.

Ao lado direito as 3 imponentes quadras esportivas, uma reservada ao futebol e ao basquete e outras duas ao voleibol, esporte preferido de toda a escola. Nenhuma das quadras eram cobertas, seu piso era de um cimento áspero, responsável por inúmeros “ralões” principalmente dos mais desastrados como eu!

Já a porta da frente era reservada exclusivamente aos pais e professores. Tinha um portão sempre bem pintado e uma bela campainha.

Esse acesso dava direto na área coberta, tinha um piso de cimento batido vermelho, sempre limpo e lustrado com cuidado pelas tias, responsáveis também por nosso lanche.

As paredes pelo caminho decoradas com quadros antigos, dos primeiros professores e turmas a se formar no querido Antônio Morandini.

De tempos em tempos alguns dos alunos mais corajosos, rebeldes ou mal-criados, como preferirem, se aventuravam em deslizar apenas de meia pelo lindo chão lustro e vermelho, aquilo virava um espetáculo à parte nos recreios, lembro como vibrávamos a cada manobra radial pratica por eles.

Mas aquilo não demorava a acabar, e quase sempre após alguns minutos os malandros, como eram chamados pela orientadora pedagógica, eram pegos e levados à secretaria, ou para refletir sobre o acontecido ou para assinar o livro negro em caso de reincidência.

As mesmas orientadoras pedagógicas eram responsáveis em montar as turmas, na maioria das vezes formadas ainda na primeira série, que por muitas vezes compartilhavam a mesma sala até a formatura no “terceirão”, tirando claro os poucos repetentes que ficavam pelo caminho, ou aqueles que o pai tinha perdido o emprego e precisavam se mudar.

A grande maioria dos pais, assim como o meu, tinham conseguido emprego no frigorífico do bairro, e firmado residência em seu entorno, isso facilitava essa jornada de estudos conjunta que vivenciarmos, eram outros tempos, onde trocar de emprego, ou “sujar a carteira” como eles mesmos diziam era considerado praticamente um pecado. Árvore que muito muda, não cria raízes!

Lembro das poucas vezes que alunos eram trocados da turma A para a B, realmente eram exceções que ninguém nunca soube ou saberá o real motivo.

Para minha tristeza uma dessas trocas ocorreu com meu melhor amigo, no primeiro dia da nova e assustadora quinta série.

Lembro como éramos inseparáveis desde o primeiro ano, foi o primeiro amigo que dormiu na minha casa, e o primeiro a oferecer pouso para mim longe dos seios de minha mãe.

Nos destacávamos na maioria dos esportes, tínhamos boas notas, era a primeira vez na minha vida que assumia um certo protagonismo em algo, e justamente agora que começamos a falar sobre as meninas mais belas da escola, que iriámos disputar os esperados jogos escolares e representar nosso querido colégio, por que agora?

Nunca ficamos sabendo, simplesmente o nome dele foi chamado, juntou seu material e saiu da sala sem questionar ou olhar para alguém.

Parece que posso sentir agora mesmo o frio na espinha que senti ao vê-lo saindo pela porta de metal da nossa sala, agora oficialmente ele era um aluno da quinta B.

Com o passar dos dias estreitei novas amizades na sala de aula, assim como ele na dele, ao nos cruzarmos pelo recreio parecíamos apenas velhos conhecidos, fazíamos um aceno com a cabeça e passávamos direto, com aquela sensação de culpa sem ao menos saber qual teria sido nosso crime.

Os restantes dos anos até a conclusão da oitava série não reservaram muitas surpresas, a grande maioria da turma A tinha ótimas notas, ninguém ficou pelo caminho e dos vinte e cinco ou trinta colegas que iniciaram a quinta seria ao menos noventa porcento concluiu a oitava juntos.

Agora um novo desafio estava por vir, os três desafiadores anos de ensino médio. A escola reservou apenas turmas à noite, do primeiro ao terceiro ano do segundo grau.

Nessa época tivemos algumas perdas, de alunos que os pais preferiram colocar em escolas com turmas diárias, ou escolas particulares para garantir um melhor vestibular logo à frente.

Foi então que as turmas A e B foram unificadas, e montamos agora um grande primeiro ano, com aproximadamente quarenta alunos.

Esses três anos foram, sem sombra de dúvida, os melhores anos que o bom e velho Antônio Morandini pode reservar.

Absolutamente não houve repetições, ou alunos que deixaram nossa turma para mudar de escola. Havia claro algumas turmas dividias dentro da turma.

As meninas da frente, sempre com as melhores notas e a admiração das professoras, a turma do meio, onde eu me inseria, que era um pouco nerd e um pouco “turma do fundão”, eu gostava de circular pelos dois meios, em aulas mais tranquilas como artes, ou educação física, não tinha escrúpulos e me reunia com o “fundão” para fazer confusão, já nas aulas de física, química ou matemática me aproximava da turma da frente, podendo assim aproveitar um pouco dos seus conhecimentos e tentar passar de ano sem recuperação.

E assim foi, assim como eu, nenhum de meus colegas repetiu de ano, e podemos fazer uma singela formatura, daquelas que tem homenagem aos pais, onde cada aluno entra com uma música da sua escolha, a minha foi uma do Green Day.

Aproveitamos aquelas horas como um ritual de despedida, de alguma forma parecíamos saber que aquele final de noite era o término de um ciclo, estávamos saindo de meros adolescentes para entrarmos na vida adulta, trabalho, faculdade, relacionamentos.

E, desde então, a grande maioria de nós não tinha mais se visto, e se isso acontecia, um breve aceno com a mão ou com a cabeça era a única expressão de carinho demonstrada.

Em dois mil e dezenove completamos quinze anos de formatura, eu e o único amigo que me restou daquele tempo, que se tornou um irmão, confidente, ou seja lá qual for o adjetivo carinhoso que posso expressar a ele tivemos a ideia de reunir a velha turma para uma almoço.

As redes sociais e aplicativos de conversa facilitaram muito a organização do evento.

O local escolhido foi a casa daquele velho amigo que há tempos atrás por força do destino foi retirado de perto de mim, ele morava na antiga casa da família que era em frente ao colégio.

Conseguimos juntar algo em torno de vinte velhos colegas, todos homens, as mulheres, quase todas já casadas e com filhos declinaram ao convite.

A carne seria comprada e dividida igualmente, a bebida foi patrocinada por um dos antigos colegas, e quem não bebia cerveja poderia levar o que bem entendesse. Apenas um levou uma garrafa de vinho fino, não faço ideia de quanto ele pagou, mas tenho a certeza de que ele queria passar a impressão de que sua vida nesses últimos quinze anos tinha sido farta.

A grande maioria engordou, alguns perderam cabelo ou estavam fortes como bois!

Assumi a churrasqueira, algo que gosto na maioria das festas que sou convidado, fartos espetos de carne com imensa variedade, naquele momento só me passava pela cabeça, que o responsável em comprar a carne queria passar a impressão de que sua vida nesses últimos quinze anos tinha sido farta.

Eu só pensava se meus quarenta reais trocados seriam suficientes para pagar a minha parte.

Após o almoço, a grande maioria permanecia calada, olhando o celular, como se fossemos estranhos que se encontravam pela primeira vez ali, naquele exato lugar e momento.

Tentei quebrar o gelo com algumas piadas infames que são minha característica, como o fato de um de meus antigos colegas ter perdido o dedo indicador da mão direita, e o indaguei qual era sua estratégia para mijar depois de tamanha perda.

De um por um, fomos contando como tinha sido nossa vida nesses últimos quinze anos, quando chegou na minha vez tive a impressão de que contei vantagem da minha vida nesses últimos quinze anos, e como ela tinha sido farta.

Aos poucos, um a um começou se despedir, alguns tinham outros compromissos, sejam profissionais ou familiares, e o reencontro se deu por encerrado às dezesseis horas.

No calor do momento combinamos marcar um novo almoço em breve, mas para falar a verdade nosso grupo de mensagem desde então não teve sequer um bom dia.

Todos devem ter tido a mesma sensação de que eu: existem coisas que devem ser mantidas apenas naquele lugar, destinado as boas lembranças e só.

Hoje prefiro relembrar das histórias daqueles velhos amigos que me acompanharam por todos aqueles anos no nosso bom e velho Antônio Morandini, e coloquei aquele reencontro naquele lugar reservado às memórias que nunca queria que tivessem sido formadas…

Ao sair para andar

O fluxo sanguíneo irriga meus olhos,

pouco funcionais,

algo genético, hereditário.

Prefiro então esconder os óculos,

prefiro então nenhuma medicação.

Quero enxergar,

mas sem perfeições.

Quero viver

mas sem anestésicos.

Quero ver o mundo por mim mesmo,

mas por Deus,

a quanto tempo não faço isso?

Amigo, preciso de sua ajuda,

negocia alguém enrolado em trapos,

e com uma garrafa em mãos.

Mas como poderia lhe ajudar

sem nem a eu mesmo posso?

Não lhe enxergo,

nem ao menos sei se existe.

Alcance essa garrafa,

quem sabe pelo gosto amargo desse trago posso voltar a ser eu,

posso lhe ajudar

e quem sabe ajudar a eu mesmo.

Saio a passos rápidos,

talvez seja Deus enrolado em trapos,

me tentando, a ser eu novamente.

Meus batimentos disparam,

sento na calçada e espero baixar.

Não baixam,

realmente não preciso me preocupar,

esse sou eu.

Volto a andar,

passos lentos, pensamentos acelerados.

Paro em frente ao hospital,

se desmaiar alguém me verá.

Penso em entrar e pedir quanto custa um exame para identificar se venho sendo eu.

Assim pensarão que sou louco,

então me acalmarei, esse sou eu!

Agora começo a correr,

batimentos quase em 200,

tropeço em uma garrafa vazia,

melhor parar, quem sabe seja Deus tentando me avisar.

Chuto-a para longe,

sinto uma dor tremenda nos dedos dos pés,

até então amortecidos por pensamentos intrusivos.

Volto a passos lentos agora,

não me importa mais saber se sou eu ou não.

Faço o mesmo trajeto,

quero saber se ainda posso ajudar aquele velho amigo.

Ainda esta ali, agora a cochilar,

enrolado em trapos,

como meus pensamentos.

Penso em lhe abraçar,

mas desde quando meu abraço

poderia alguém ajudar?

Sigo meus passos,

desculpe amigo,

não posso ajudar,

pois apenas sai para andar.