Hoje à noite fará Sol

A audácia e a coragem
Não serão suficientes
O brilho e a saudade
Estarão em jogo
Na tela terá um torso
Com cabeça de alfinete
Os risos se contradirão
Em segundo plano
As histórias e os heróis
Deixarão de chorar hoje à noite
Fará Sol
O inquilino de bronze
Será artista parisiense
Paranaense, alguma coisa
Nonsense
Fluídos e copos quebrados
Matéria e prima
Degustações com arrepios
Mágica sobre as cabeças
Ruídos e corpos quebrados
Gramática em linha reta
Como o cálice bordô
“Cale-se bobo”
A exuberância e a plenitude
Gestos digestos, indigestos
“Gerson! Gerson!”
“O que é?”
“Por quem os sinos dobram?”
“Pelos que pedem desconto”
Hoje à noite fará Sol
Não teremos a Lua como inimiga
As sombras cumprimentarão o céu
Saudando o incrível movimento
Das folhas secas
A intriga e a maldade
Não serão suficientes
Apostas sem jogos
Despediremos nossos funcionários
Será uma curta viagem
Sem cinto de segurança
Terá fogueira e nostalgia queimada
Fumaça, fumaça
Muita fumaça saindo de um jeito
E entrando de outro
Filhos de farinha e ovos
Receitas antigas
Não faltará bebida
Porque
Hoje à noite fará Sol
Todos acordarão no escuro

Vai

Estava vendendo alguns parafusos e porcas
Para um simples senhor que tinha um trator
Enquanto colocava as peças sobre o balcão
Ele disse: “Vai dar tudo certo”
“Sim, está de acordo com o catálogo” respondi
“Preciso também do filtro pro Valmet 68”
“Filtro de óleo, combustível ou de ar?”
“De óleo”
“Temos sim, já pego pro senhor”
“Vai dar tudo certo”
“Sim, sim” eu disse. E fui pegar o filtro.
Enquanto isso, ele puxou papo com outro vendedor
“Meu filho perdeu seus dois filhos em acidentes”
“Sério?!” Indagou o vendedor
Eu já estava de volta no balcão, então ele contou como foi
“A primeira se chamava Isabella, tinha 8 anos. Brincava nesse trator que estou comprando as peças. Acabou caindo do para-lama e bateu com a cabeça numa pedra. Como se trabalha muito na roça, só perceberam quando já estava branca”
Ficamos calados.
“Mas Deus é sábio, um ano depois nasceu o José, para confortar de certa forma o coração deles”
“É, é” confortou o vendedor
“Qual o preço desse filtro?”
“60,00” respondi
“Preciso do rolamento de embreagem também, tem?”
“Temos”
Me dirigi até a prateleira onde estava o rolamento, mas ainda conseguia ouvir.
“Vai dar tudo certo”
“Vai, vai” acalentou o vendedor
Quando voltava pro balcão, ele continou:
“O José morreu atropelado pelo carro deles. Enquanto engatinhava, o freio de mão soltou e passou por cima dele. Mas Deus é sábio”
Ficamos calados.
“Vai dar tudo certo. Qual o preço do rolamento?”
“120,00” falei
“É só isso por hoje”
Tirei a nota e indiquei o caixa pro pagamento
O telefone tocou, atendi, era uma vendedora de óleos para caixas e motores, como sempre, bem humorada.
“Fala Ramon, vai parar de me enrolar e comprar meus óleos?  Dependendo da quantidade, eu coloco nas costas e vou entregar para você”
“Gremista, já te falei que não sou eu quem compra os óleos aqui na empresa”
“Eu sei, só liguei pra ouvir essa tua voz feia”
“Assistiu o jogo ontem?”
“Digo que liguei para ouvir tua voz e você vem falar de futebol?”
“Sei lá, vai dar tudo certo”
“Tudo certo só quando comprar uns tonéis de óleo comigo”
“Tem promoção hoje?”
“Não, só as mesmas que te falo há seis meses”
“Vou repassar para o responsável, liga amanhã”
“Amanhã não é teu dia”
“Nunca é”
“Nem do Grêmio. Até semana que vem”
“Até”   
Larguei do trabalho horas depois. Comprei cigarros e vinho.
Voltava de moto pra casa, e algo me chamou a atenção
Na entrada de uma rua que dá acesso ao “Fruto proibido”
Famosa zona da região
Duas garotas, somente de calcinha, dançavam na beira da estrada
Embaixo da luz do poste
Tentando atrair alguns clientes
Diminui a velocidade
E gritei pelo capacete com todas as forças:
“Vai dar tudo certo”
Acho que elas não me ouviram
Mantiveram o ritmo rebolado
Continuei meu caminho
Olhando a cena pelo retrovisor
E um caminhoneiro que vinha pelo lado contrário
Estacionou

O contador de fardos

Um erro aconteceu
O farol vai se afastando
Levando consigo o barulho dos animais
Mas é só um embuste profético
Proteico até
Não há nada além do farol
Não há nada além do barulho dos animais
Somente o asfalto congelado em trilhas
O que era delírio torna-se alma lavada
Panos quentes em pianos frios
O horizonte é amplo e escuro
Damos água e comida aos astros
Mas eles só comem e bebem quando querem
Outro erro aconteceu
E ouvir o trânsito é esquecer da estrada
As canções sabotadas desafinam as cordas vocais
Talvez o único som realmente original
Seja de um coração parado
Olho para frente e vejo uma imensidão de luzes piscando
Pisco de volta, como se elas soubessem de onde vem o brilho
Tenho um pequeno contador de fardos
Mas ele estragou
Continua no mesmo número
Embora eu tente ajustá-lo das mais variadas formas
Tentei comprar outro
Mas estavam todos vendidos
Então continuo desatualizado
Até brinco com o meu contador de fardos
Finjo que tenho um coração parado
Ouço a melodia

A devolução dos bichos

Sereias de olhos caídos
Serenatas dos anjos proibidos
A cidade perfumada de pão
A devolução dos bichos
Napoleão e Bola de Neve profanaram:
“Pouco sexo, mas bastante paz”
Dentro de uma sauna comendo biscoitos
O drama interiorizado contemporiza o espaço
Entre o teatro e a máscara
O ódio redirecionado
É a revelação de uma fotografia de dois lados

O direito de arrependimento está disposto no artigo 49 do CDC*, e garante a possibilidade de devolver o que adquiriu, sem a necessidade de qualquer justificativa para tanto

Dizem, que um homem andava sempre com uma batata crua no bolso perguntando as horas para quem encontrava, e quando alguém o respondia, de imediato ele retirava o legume do bolso, mostrava e dizia:

– Na batata!

Carros em garagens, dentro de dois portões, com as luzes dos alarmes piscando sem parar
A fome de alcançar o pote de sangue no final do arco-íris
A devolução dos bichos
Triagens de vales que engatinham perto do oceano
“Por partes, por partes”, já diria o esquartejador de sonhos
Mantendo a criança, não a infantilidade
Superfícies por rosas, esponjas de acho
Na fala corrida é que perde-se a voz contida
Na devolução dos bichos
Cliente com tente

Peça uma peça ( XXX )

Vander após alguns segundos, entrando no quarto em uma fantasia de árvore

– Será que alguém pode me podar?

Vander não para de gargalhar.

Salete levanta o boneco jardineiro dos lençóis, como se estivesse olhando para Vander

Voz do jardineiro

– O que é isso? Que merda é essa?

Vander

– Qual é jardineiro?! Tenho uma raiz pra te enfiar no rabo.

Salete ri sem parar.

Vander faz um disparo no boneco jardineiro (barulho de tiro).

Salete faz o boneco cair.

As luzes do palco se apagam. Silêncio. Depois de alguns segundos, sons de serrote.

Voz de Salete na escuridão

– O que você acha de um taxista amanhã?

Fim do terceiro ato.

No final do terceiro ato, após alguns instantes, Salete aparece na frente do palco deslumbrante, com as cortinas fechadas, gritando e abanando “Táxi, táxi”. Uma voz diz: Deu sorte em camarada, vai levar a ruiva gostosa. Salete atravessa o palco correndo e some. Som de porta de carro abrindo e fechando, e carro arrancando. Vander surge no lado oposto do palco, espiando, em uma fantasia de piloto de fórmula 1. Ergue a viseira do capacete, observa uns segundos, fecha a viseira e sai de cena.

Peça uma peça ( XXIX )

Salete entra no palco abraçada com um boneco vestido de jardineiro, que esconde sua suposta nudez. Entra no quarto com ele, e vão para debaixo dos lençóis. Por alguns instantes sons de sexo. Vozes de ambos embaixo dos cobertores. Salete incentiva o homem, que reclama dos tapas na cara.

Narradora se aproxima da cama. Salete dá instruções para o homem no sexo oral. Mais alguns sons. Salete reclama que o serrote está machucando e completa dizendo: Já tenho o furo pronto! 

Os lençóis param de se mover.

Narradora voltando para plateia

– Salete dirigiu o homem até o quarto e trepou por uns oito minutos, foi o máximo que conseguiu dele. Vander também não esperava tamanha fragilidade do homem. Ele iria chegar na casa depois de uns vinte minutos, o que segundo Salete, saciaria suas vontades.

Voz do jardineiro fora do palco, conversando na cama

– Vamos falar de negócios agora meu amor? Vamos lá ver as árvores?

Salete

– Eu quero mais sexo! Acha que da um jeito nesse galho caído? Mister jardineiro.

Voz do jardineiro fora do palco, conversando na cama

– Vamos lá fora, eu vejo as árvores, aí estou pronto para a próxima.

Salete

– Ok

Salete caminha abraçada com o boneco jardineiro para o lado oposto de onde entrou e sai do palco.

Voz do jardineiro fora do palco

– Essa é a árvore?

Salete fora do palco

– É. Por quê?

Voz jardineiro

– Nada. Podo ela agora por vinte reais.

Salete

– Pode começar.

Barulho de serrote cortando madeira

Narradora

– Salete já pensava que esse negócio não daria muito certo. “Um homem que trepa desse jeito merece ter os bagos serrados, porque não servem nem pra adubar uma cueca”. Vander entrou pela porta da frente controladamente, sem barulho, com a arma em punho sempre. Viu que ninguém estava no quarto. Pensou no pior “A piranha gostou tanto que fugiu”. Deu uma caminhada pela casa, e notou algo pelo vidro da janela, chegou mais perto e ouviu os sons do serrote. Regozijou, ainda teria tempo. Escondeu-se e esperou ambos entrarem novamente no quarto.

Salete entra novamente no palco abraçada com o boneco jardineiro, beijando-o. Vai até a cama e entra com ele embaixo dos lençóis.

Peça uma peça ( XXVIII )

Salete e Vander saem do quarto. Vander ergue o corpo(boneco) com uma mão e ambos saem do palco. A narradora apanha as roupas e também sai do palco. Ela volta com um pano e um balde e limpa onde supostamente havia sangue no chão.  Depois leva o balde e o pano para fora do palco e volta para a posição original olhando para a plateia.

Narradora

– Todo esquartejamento era feito no banheiro, com um serrote roubado do jardineiro, a primeira vítima. Rendeu somente dez reais e o cara tinha os ossos duros como um pistão de trator. Esse jardineiro foi estudado pelos dois. O viam passar, dia sim, dia não, com sua bolsa de ferramentas, sempre olhando pra baixo ou para as placas de trânsito. Escolheram uma quarta-feira, um tempo nublado e mal cheiroso. Salete vestia um vestido justíssimo, saiu pela porta da frente e chamou:

Narradora olha para fora do palco onde supostamente está Salete.

Voz de Salete fora do palco

– Ei jardineiro!

Narradora ainda olhando para fora do palco

O homem meteu os olhos nela, já pensou na sua ferramenta, na sua mulher feia e gorda, nos seus filhos que ele abandonaria no primeiro furacão, em toda sua vida cortando árvores e jogando merda em flores. 

Voz do jardineiro fora do palco e mais baixa, dando impressão de estar longe de Salete, ainda não entrou pelo portão da casa

– Diga moça.

Salete

– Tô precisando podar umas árvores aqui atrás da minha casa. A gente pode marcar um horário?

Jardineiro (ainda voz mais baixa)

– Deu sorte senhorita, posso fazer isso agora!

Salete

– Ai que bom! Pode entrar, o portão está aberto.

Barulho de portão abrindo e fechando. Passos.

Narradora

Ao entrar pela porta da cozinha, já viu Salete nuazinha, com uma rosa nas mãos. E como a cabeça de um homem para de funcionar num momento desses, ele achou perfeitamente normal aquela situação, afinal, ele era um jardineiro forte, desejado por no mínimo dez mulheres, que tinham timidez demais para se entregarem a ele, mas um dia, uma iria se render ao seu cheiro de adubo nas mãos, e se jogar de corpo e tudo sobre ele.

Peça uma peça ( XXVII )

Voz de narradora fora do palco

– Sim?!

Voz do cadeirante mais baixa, como se estivesse longe da porta

– Olá senhorita, comprar uma trimania hoje?

Voz da narradora

– Quanto tá pagando?

Voz do cadeirante mais baixa
– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios.

Voz de narradora
– Qual valor?

Voz do cadeirante mais baixa
– 10 pila

Voz de narradora
– Já vou aí

Narradora entra no palco e vai até Valter pegar o dinheiro. Nesse intervalo, surge a voz do bêbado, também mais baixa, falando com o cadeirante: “Ôôô, da cadeira”. Cadeirante responde meio ríspido: “10 pila”. Bêbado pergunta: “Não tinha uma praça por aqui?”. Cadeirante ainda ríspido: “Segue três quadras pra lá, vira à direita, mais duas quadras e vira à esquerda”. Bêbado: “Obrigado”. Som de porta fechando. Narradora volta pro palco olhando para a loteria que comprou e guarda no bolso da calça.

Narradora faz gesto de figa (sorte) para a plateia e segue com a cena

Ela largou a arma e espichou suas lindas pernas lisas e congruentes na cama, sentiu-se traída por aquele homem bom de piça. Toda a cena que fez, a insinuação de uma fêmea num cio ávido, o rebolado astucioso, o perfume nos seios, tudo um erro, ninguém podia mentir para ela. Não assim, Paulo Henrique por Romildo era trágico demais para sua cabeça. Vander separava as notas com grunhidos.

Vander erguendo uma das pernas    

– Escuta esse Salete!

Barulho de peido.

Narradora

Um peido afinado e estável. Melodia capaz de ser inserida em uma sinfonia de Mozart ou atravessar Óperas inteiras e arrancar aplausos.

Narradora puxa palmas insinuando para a plateia também aplaudir.  

Salete

– Bonitinho esse Vander.

Vander

– Sou um artista de intestino. Devo isso às pontes de safena que carrego nas tripas.

Salete

– Eu sei, eu sei. Vamos cortar logo esse!