Passado envelhecido ( II )

Por baixo da porta dava pra ver a luz acesa
Escutei algum barulho e passos
Destrancou e abriu
Voou em meu pescoço, dando um abraço sufocante
– Que bom que você veio – sussurrou em meu ouvido
– Te avisei que vinha
– Eu sei. Mas que bom que você veio
Puxou-me para dentro e trancou a porta novamente
– O que aconteceu? Perguntei
– Nada
– Tava chorando por quê?
– Por nada
– Ok. Também bebo por nada
Sentamos no sofá da sala, então pude ver um inicio de arranhão na coxa esquerda
– O que é isso? Indaguei
– Nada
– Porra! Vai parar de charadas?
– Não foi nada! Só surtei e me arranhei
Ergui a saia que vestia. As duas coxas marcadas, como uma briga de gatos
– Ei Dóris, você tem que ir devagar com isso
– Por que só não me come com força e cala boca?
– Porque vou abrir uma cerveja
Sentou em meu colo
– Que bom que você veio aqui – repetiu
– E que bom que você veio aqui
Brincou um pouco com meus pelos do peito.
– Ta pensando em que? Perguntou.
– Em nada.
– Me fala.
– Em nada, e você?
– Te amo tanto.
– Claro que ama.
Em outra noite, Dóris se largou a chorar na cama enquanto eu bebia vinho ao seu lado. Deixei chorar e soluçar. Botou a cara no travesseiro, soltando sons abafados de um choro cada vez mais assustador.
– O que deu com o tomate agora? Perguntei sem querer resposta.
– Você não presta! Cala a boca!
– Não presto e me calarei.
Fitou-me com os olhos verdes e vermelhos, o que significava que era linda e louca.
– Eu lembro Ramon, você não lembra mas eu lembro. No bar de sinuca na segunda semana depois que nos conhecemos vi você olhando pra duas mulheres lá dentro, como se fosse um adolescente tarado. Me deixou de lado por elas. Você não presta e nunca vai prestar.
– Olha só Dóris, não lembro disso.
Virou pro lado, chorou mais e dormiu. Aguardei pra ter a certeza que não era fingimento, deixei um restinho de vinho ao lado da cama, peguei meu calçado que pegava um ar fora da janela da sala e me mandei.
Passado mais um mês, decidi sumir de Dóris sem falar nada, fugir e voltar a escrever.
A vida é tão cheia de contrariedades. É como terminar um relacionamento dizendo: “Eu não sei se consigo viver sem você, mas tenho certeza que não vivo com”

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