– Trouxe os documentos Renan?
– O que precisa?
– RG e CPF.
– Tenho aqui.
– Vamos entrar aqui em casa pra anotar. Amanhã já tenho o contrato pronto, aí se você puder passar aqui assinar…
– Sem problemas.
Sentamos em uma mesinha logo na sala, um em cada lado, sua mulher não estava por ali. Estendi meus documentos e fiquei observando pra ver sua reação. Renan ou Ramon? Ele ficaria perdidinho. Sua casa era bem cuidada, tudo branco também por dentro, algo me dizia que qualquer coisa do Alberto seria branca pra sempre. Algumas coisas simplesmente entram na cabeça e nunca saem, isso poderia ter acontecido com ele, e pra alguém casar com aquilo, certamente sua cabeça tinha um desvio desnaturado e apático, portanto, o branco na sua vida equilibrava a tragédia. Sua mulher sabia meu nome corretamente, eles não conversavam? Nem sequer algo do tipo “Esse Renan me pareceu gente fina”, “Que Renan? O nome dele é Ramon! E tem cara de que vende loteria”. Logo seus olhos pareciam não acreditar no que viam. Aproximou minha carteira de identidade dos olhos, me olhou e disse:
– Meu Deus Renan, tu já foi mais feio hahaha.
Que filho da puta! Pensei.
– E você certamente já foi mais bonito Alberto.
– Hahaha – ele ria. Mais bonito não, só mais magro. Depois que casei deslanchei.
– Dureza casar.
– Chegou a ver minha mulher né?! Hoje ela é um demônio, mas quando casei era quase uma princesa, cheinha, mas nem tanto. Tinha uma das melhores bundas do bairro. O casamento acabou com nós.
– Não achei ela tão feia assim.
Se concentrou no papel, na caneta e no meu documento. Ele estava mentindo, aquela mulher jamais tinha sido algo bom. Mas um homem sempre precisa justificar a mulher que tem. Foi aí que ele percebeu que algo de errado acontecia entre nós.
– Qual seu nome? Perguntou.
– Ramon Carlos.
– E por que me deixou te chamando de Renan, Ramon?
– Não sei Alberto, as coisas simplesmente aconteceram.
– Hahahahaha essa foi boa. Hahahaha…você é um bobalhão Renan!
– Ramon.
– Hahahaha, isso mesmo, Ramon, hahaha.
Continuou rindo baixo enquanto anotava meus dados e sussurrava “Ramon, essa foi boa, muito boa”. Após anotar o que tinha para anotar me devolveu os documentos e pediu pra passar assinar o contrato no dia seguinte.
Entrei pelo portão branco da casa, uma mulher vinha de bicicleta pelo trilho da frente numa velocidade enorme. Uma mulher de pele escura reluzente. Com o cabelo duro pra cima, nem o vento nem a chuva eram páreos pra ele. Não conseguia entender o porque de ela vir tão rápido, se eu não tivesse aberto o portão o que ela faria? Só escutei um “Sai, sai”, saí da frente e vi a bicicleta saindo portão a fora. Dei uma olhada, e era uma bela bunda apressada em cima do banco.
Tinha que ir ao mercado. Fiz uma lista do que comprar, achei exagerada e ao mesmo tempo singela: uma cabeça de repolho, três bifes, três garrafas de vinho, cinco cervejas, umas bolachas, duas batatas, dois pepinos, três maçãs, um sabonete, um xampu, uma escova de dente, uma pasta dental, um pacote de sal, vinagre e azeite. Chegando lá, peguei uma cestinha vermelha e comecei perambular pelo labirinto sem pressa. Pouco conhecia dele, as atendentes da padaria, os açougueiros, os que completavam o estoque, os caixas nada sabiam sobre mim. Pela primeira vez em dias, eu não tinha pressa, poderia andar por horas pelas prateleiras, comparar preços, ouvir a canção que rolava nos alto-falantes, recolher alguns produtos do chão, encaixá-los em seus lugares, talvez até ler as instruções dos inseticidas.
Cheguei ao caixa com todas as compras da lista, e mais uma lâmina de barbear e uma sopa de pacote.
– Boa noite senhor – ela disse.
– Boa noite.
– Tem o “Cartão Fidelidade”?
– Não.
– Vai pagar em dinheiro?
– Não. Vale-alimentação.
– Ok.
Começou passar os produtos e pesar o que precisava. Cada barulho da máquina me doía, o valor ia crescendo e não lembrava quanto ainda tinha no vale, nem que dia era, havia me esquecido de pegar os comprovantes das últimas compras. Mas tinha quase certeza que era em torno de R$ 60,00.
– Quer fazer o “Cartão Fidelidade” senhor? Perguntou-me enquanto passava os últimos produtos.
– Não – respondi.
PIP PIP…PIP PIP
– R$ 62,58 senhor. É vale-alimentação né?!
– É
Apertou umas teclas do seu teclado.
– Pode passar o cartão.
Passei, na tela dela apareceu: “Erro na leitura do cartão”.
– Passa de novo senhor.
“Erro na leitura do cartão”
– Tenta de novo senhor.
“Erro na leitura do cartão”
– Deixa eu tentar – ela disse.
Entreguei-lhe o cartão.
PIP PIP
– Agora deu – e ainda me deu um sorriso me colocando como o maior incompetente da terra.
– Maravilha – respondi.
– Pode digitar a senha senhor.
Digitei.
– O senhor não tem saldo suficiente pra essa compra.
– Aé?! Quanto eu tenho?
– Olha na telinha da máquina.
R$ 3,55 apareceu. Permaneci quieto olhando pra máquina.
– Qual valor apareceu senhor? Está conseguindo ver aí?
– Sim, sim. Só estou pensando o que vou levar e o que vou deixar com esse valor.
– Qual o valor que o senhor tem disponível?
– Relaxa aí, estou pensando.
– O senhor pode usar todo o valor do cartão e pagar o resto com dinheiro.
Na carteira não tinha nada. Deixei R$ 20,00 em casa pra comprar cigarros pros próximos dias, afinal, eu tinha o vale! Por que diabos não pedi o comprovante pra ver meu saldo na hora que comprei meu almoço do dia? Não sei.
– Que dia é hoje? Perguntei.
– Segunda – feira, dia 30.
– Quer saber, amanhã meu vale-alimentação recarrega – e recarregava mesmo – estou sem dinheiro aqui pra completar a compra, então da uma olhada pra mim quanto da no total esse pacote de sal com o repolho.
Calculou mentalmente olhando pra tela. Eu preferia nem olhar.
– R$ 2,29 senhor.
– Humm. E se eu levasse mais as maçãs?
– R$ 4,09 senhor.
– E se fossem só duas maçãs?
– Preciso pesar novamente então.
– Por favor.
– Mas qual o valor que o senhor pode gastar?
– Incontáveis R$ 3,55.
– R$ 13,55?
Parecíamos um casal de velhos querendo transar com roupas.
– Isso, R$ 13,55 eu tenho – respondi.
– Mas então o senhor pode levar todas as maçãs e mais algumas coisas.
– Mas agora só quero levar duas maçãs, o sal e o repolho.
– Tudo bem.
Chamou quem aparentemente era seu superior pra cancelar a venda, de vermelho também, pra novamente passar o que meu cartão aguentava. Esse tinha um cabelo que furaria uma bola de boliche. Fiquei olhando pra ambos, e nenhum gostava do novo morador do bairro. Mas no outro dia iria voltar e gastar R$ 100,00 reais, quem sabe até mais numa compra. Antes dela pesar as maçãs, escolhi as duas menores pra garantir.
PIP…PIP…PIP
– R$ 3,49 senhor, pode passar o cartão.
– Certo – falei –. Baratas as coisas aqui nesse mercado. Voltarei em breve, provavelmente amanhã.
Digitei a senha no aparelhinho que comprovou meus créditos no mercado. Peguei a sacola e fui saindo.
– O senhor não quer o seu comprovante? Ouvi.
– Não, não. Pode segurar pra ti.
Sabia meu saldo, R$ 0,06. Se ela olhou e viu que R$ 13,55 era no máximo o valor da minha mentira, nunca vou saber.