A ferida

Sob um manto de hóstias
Eu vi o homem
Só de mantras e traços
Imaculando seus trapos
Com um som inóspito
Numa aventura pra Sísifo
80 quilos viela abaixo
Sem subir jamais
O recomeço pode ser um balde ou um travesseiro
Cigarros ou o dízimo
A ficção como uma tragédia trágica e realista
Debalde
O tempo calculado em pingos
O dorso em fuga
Respaldo acumulado
Nas vertigens
Eu vi o homem
O homem não me viu
Eu vi o homem
O homem não me viu
Eu vi o homem
O homem me viu
Eu nunca mais vi o homem
O homem nunca mais me viu

Admirável mudo novo

Como sou tolo ao tentar curar a febre
Esse travesseiro molhado todos os dias
Meu único sinal de misericórdia
Adormecer é um boquete pro diabo
Fatigado, mancha invisível na lápide ausente
Ser ser extinto!
Elevam-se sucintos sussurros endógenos
A cura como sintoma da dor
Abrir as janelas é um perigo somatizado
As velhas garrafas de vinho em L
Colheres imunes, poeiras com digitais
O crime é um sonho deturpado
Mas cá estão as evidências
Torneiras abertas evacuando torneiras fechadas
Admirável mudo novo
Checando traças pelo olho mágico
Na beirada da cama
Água que cai
Dentro de um balde furado sobre a cabeça
É meu famoso ciclo da demência
Sejam bem-vindos
Esse é o sinal
Esse é o sinal

Pato

Pareço um pato cego boiando no centro do oceano
Filhote, com o peito em chamas
Meu bico
Suspendendo um navio cargueiro
Minhas patas impedem uma turbina de avião afundar
Não há sobreviventes
Nunca houve
Mesmo assim ainda tenho reflexo no sol
Não posso ver, mas sinto seu calor
Ele é feio, imagino
Infelizmente o avesso de mim sou eu mesmo
Já é tarde
Eu balanço
Cago e engulo minha merda
Morreria de outra forma
Um pato cego boiando no centro do oceano
E um padeiro derrubando bolinhos recheados
De propósito, no chão, depois recolhendo e colocando pra vender
Afirmando para seu colega “Meu natal é sempre uma merda”
“Por quê?”
“Porque é sempre assim”
E o bolinho recheado acaba em uma mesa farta
Ao lado de um peru gordo de farofa
“Amei esse bolinho recheado”
“Amo esse padeiro”
“Que peru delicioso”
“Agradeça o governo”
“Haha”
“Haha”
Um pato cego boiando no centro do oceano
Carregando cofres lacrados
Chorando na chuva e esvaziando o mar
Péssima ideia é ser poeta
E motoboy
O espírito humano retalhado na infância
Conservado em partes separadas na adolescência
Numa salmoura de sangue seco com odor de compostagem
Concordância atemporal quando se está certo
Heróis construídos pelos próprios medos
Mulheres suando pelo bem dos homens
Cigarros com filtros molhados
Noivos e baratos
Parcimônia de sentimentos
Um pato cego boiando no centro do oceano segurará as pontas

deusa matuta

é inverno aqui
onde me encontro agora
longe de ti. ainda assim
fecho meus olhos frente ao fogo
e consigo te imaginar nua de pantufas
na cozinha
fritando ovos e preparando
um copo de Rum para o nosso desjejum
enquanto o gato pálido e arrepiado
ainda acordando
observa
com atenção seus movimentos,
e é maravilhoso
mesmo quando acordo com fome
sem nada para comer,
muito menos
você.

O grande homem atropelado

O grande homem atropelado está sentado ao meio fio
Encontrando qual a ferida mais quente e intocável
Todos aplaudem sem as mãos
Assovios silenciosamente assovios
Por que seria ele o protagonista do mundo?
O grande homem atropelado é relaxado
Cospe liberdade nas algemas dos presos, sem as mãos
Ajudem o grande homem morrer de ternura
É a lacuna dos privilegiados de santidade
O grande homem atropelado quer andar na velocidade errada
E salvar seus castigos para devorar em casa
Com sal e cal
O grande homem atropelado foi transformado em migalhas pra porcos
Grotesco, mais que enfiar o dedo em cu de galinha
Mas o grande homem guarda a luz, sem as mãos
A luz do arco sem íris
Que é toda colorida por um tom neutro de ocasião
O grande homem atropelado não expõe suas fraturas para mor-c(egos)
E ele caminha para o norte do sul
Sabotando a bússola dos sábios, sem as mãos
E por mais atropelamentos propositais
O grande homem atropelado permanecerá no meio fio
Às vezes,
Só pra ver o infinito passar
Um pouco distante do chão

vestígio

depois de todo aquele sexo
toda aquela bagunça
eu mal sabia onde estava
quando acordei.
só após levantar e mijar
na pia de sua cozinha
tive certeza de estar
no lugar certo
e com a mulher certa,
quando na lúgubre luz
avistei o bilhete pendurado
na porta de sua
geladeira:

“FAZER MAIS SEXO ANAL”

por vezes o amor é assim
chega feito sapo na salada
que você engole,
e nem percebe.

Se os cães falassem, soletrariam “AU” e só

Opa…
Sutil brevidade de um falso santuário de sacrifícios
Foi onde embalsamei 1,1 kg
Não é uma tumba, nem memorial
Chamo de retiro
Protejo esse lugar
Fortalece-me o cheiro e a sujeira
Algo como trair Barrabás com um beijo de língua
Ou abortar por cesariana
Esse falso santuário de sacrifícios
Difícil decidir se prefiro acordar com meias
Ou dormir sem sentir os pés
Como se toda a ingenuidade fosse capaz de revelar um altruísmo devastador
As pipas continuam bailando
Os colchões mantêm-se em pé
As crateras seguem soterrando
Um doido confessou-me que a frase preferida dele era “Parabéns amigo, você conseguiu!”
Foi esse seu epitáfio
Morreu atropelado
E pasmem, ele quem dirigia o caminhão
Sim, sim, sim…porventura
O eterno falso santuário de sacrifícios
Como a anatomia nos prega peças
Hematomas, suor, lágrimas, cães, gatos e ratos sem cabeça
Flores vermelhas com cheiro de porra
Pizza com oito pedaços escrevendo um bilhete
Orelhas furadas sem convite
Na Grécia os deuses usam sapatos, mas não pagam multas
Vizinhas gemem em pó
O sangue sem rastro, uma prova nula
Por conta disso tudo
Embalsamei 1,1 kg
Em meu falso santuário de sacrifícios
Para não me beneficiar
Opa…
Desculpe-me, não sabia que era sua vez