Peça uma peça ( XI )

As conversas cessam fora do palco. O personagem aciona o relógio novamente e continua diálogo:

– Devo admitir que foram grandes vitórias as suas.

Plic.

– Passado.
– Qual é seu enxadrista preferido?
– Fischer e o seu?
– Paul Morphy.
– Ambos incríveis e meteóricos. Acho que se vivessem na mesma época, plantariam flores no jardim da casa do Bobby e beberiam chá até os noventa anos. Sabe como é, doidos se entendem.

Plic.

– Concordo. Você só tem mais cinco minutos no relógio.
– É o suficiente pra ganhar.

O morador se aproxima e senta no banco do adversário imaginário, o personagem para o relógio e o fita.

– E aí pai, ganhando? Pergunta o morador

O personagem não responde, só alcança o maço de cigarros, e o morador repete a cena, coloca um em cada orelha e um na boca, devolve o maço. O personagem pega e acende o cigarro com um fósforo. Morador traga e diz:

– Olha essa moreninha gostosinha passando (personagem olha em direção pra onde olha o morador). Ai, ai. Chupava inteira. PSIIIIIIT..PSIIIIT…EI POTRANCA, TE CHUPAVA INTEIRA….PSIIIIIT….PSIIIITT….EEEEEIIII….VAI A MERDA CASQUEIRA.
– Belo rabo – responde o personagem.

Morador levanta e sai do palco. Personagem aciona o relógio e começa pensar na partida.

A mesma criança volta correndo e para ao lado da mesa:

– Tio, me ensina jogar? Pergunta o menino.
– Não enche, pilantrinha. Estou pensando.
– É. Se manda moleque.

Criança começa chorar:

– Ainnnn…Brrrrrr…Buá, Buá, Buá.
– Vai chorar pra lá, porra!
– É. Some daqui.

Criança sai correndo.

Personagem começa a jogar mais rapidamente e continua falando (transeuntes passam pelo fundo):

Plic,Plic,Plic,Plic,Plic…demora um pouco…Plic.

– Agora está em maus lençóis.
– Nem tanto. Teu peão cravado em d6 compensa.
– Fiquei com o bispo bom.
– Incapaz de tirar meu cavalo de d5. Tenho mais tempo no relógio. Ganharei no tempo. 
– Duvido. Ainda tenho dois minutos e você cinco.

Plic,Plic.

– Já esperava por esse é?!
– Imaginei que tentaria abrir essa coluna.
– Meu plano não era esse haha. Muito pelo contrário, meu plano é esse sacrifício de cavalo.

Plic,Plic.

– Sempre soube desse plano. Mas é furado.
– Aé?! Vamos ver então.

(batidas altas e baixas no relógio) Personagem fica tenso, final de partida:

Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,PLIC,Plic,
“Merda”,Plic,Plic,Plic,Plic,“Cacete”,
Plic,PLIC,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,
Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque-mate”,“Merda”

Personagem se joga pra trás com as mãos na cabeça. Partida termina.

– Não era furado o sacrifício.
– Sorte sua.
– Mais uma?
– Vou embora. Quem sabe amanhã se eu passar por aqui.
– Como se chama?

As luzes se apagam. O narrador diz:

Sirene de polícia no vácuo dos becos abafando a sonoridade pitoresca. Versatilidade espontânea nas solas dos pés. O craqueiro confuso corre pra dentro da catedral. O menino grita ao lado da mesa de dominó. porque acabou a rapadura no momento exato em que o vencedor ficou sem pedras. O vendedor de loteria sai da pastelaria e ajeita o boné. Coça as pernas e causa dúvidas. Era melhor ter nascido rico do que bonito (voz do cadeirante). A sirene vai ficando cada vez mais baixa, até que todos esquecem o perigo. Disparates viscosos na primeira curva. A porta não tem maçaneta mas abre com o vento. O vapor quente não seca o suor e sim espalha as gotículas. A tarde ainda seria longa, mas nada aconteceria.  


Fim do primeiro Ato.

Peça uma peça ( X )

Novamente as luzes se apagam e o narrador diz:

Pombos atrozes e vigaristas entre transeuntes, magnífica convivência singular. Poeira nos olhos, grudada nos chinelos, dentro do caldo de cana, dentro dos corpos úmidos. Calamidade são aranhas voadoras. O menino tenta aprender dominó, mas só sabe contar até cinco, então dão-lhe uns trocados para comprar chocolate, mas se engana de barraca. Os taxistas erguem as mangas das camisetas, um é tatuado e não usa meias. A magnitude é volátil, trabalhadores consertam um cano cavoucando a calçada, o craqueiro seduz o vendedor de picolés, enquanto o pombo defeca sobre o banco de pedras.

As luzes se acendem e o personagem aparece voltando comendo uma rapadura. Senta no banco e percebe as peças fora do lugar. Olha para os lados, e começa a montar a posição como estava. Percebe o cavalo branco faltando, então olha pro chão e nota-o, recolocando no tabuleiro.

Personagem continua diálogo com adversário imaginário:

– Foi comprar essa rapadura onde? No México?
– Tinha uma baranga burra de dar febre na minha frente. Levou rapadura pro ano todo. Não jogou ainda?

Personagem faz um lance. Plic. Continua diálogo:

– Ganhou de algum dos três jogadores de nível internacional?
– Ganhei de dois, mas também perdi para os três. Um, andei lendo notícias ultimamente, tornou-se o mais jovem brasileiro a conseguir a norma de Grande Mestre Internacional. Quando enfrentei-o pela primeira vez era apenas Mestre FIDE. Perdi. Lembro-me vagamente daquela partida, foi a que melhor joguei contra ele, nas outras duas vezes passei vergonha, fui judiado como um peru de guri novo. Outro também era Mestre FIDE quando venci, pura sorte, estava mais perdido que papagaio mudo na posição, mas encontrei um golpe tático e ele caiu como amador. Em outras ocasiões fui triturado. Já com o terceiro, joguei duas, ganhei a primeira, perdi a segunda.

De fora do palco barulhos de gente trabalhando, britadeira, gritos, o personagem para o relógio e observa a situação que ocorre fora do palco (diálogos dos trabalhadores):

– O que tá fazendo aí cara?
– Estourou essa merda aqui!
– Deixa vazar.
– Seu doido!
– Amanhã os caras resolvem.
– Eu trabalho amanhã.
– Mas eu não.
– O Arnaldo me pega pelo pescoço
– O Arnaldo vai entrar de férias, acha que tá ligando? Vamos rangar ali na pastelaria, nem almocei hoje.

Voz do cadeirante também fora do palco:

–  E aí guerreiros, comprar uma trimania?
– Faaaallaa Robocop!!
– Quanto tá pagando?
– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios – Responde o cadeirante.
– Qual valor?
– Dez pila

Cadeirante grita anunciando a loteria “Olha a trimania, vamos comprar, vamos comprar que tá acabando”

– Robocop, bora ali na pastelaria. Deixa isso aí que os caras resolvem amanhã.

Peça uma peça ( IX )

Uma voz feminina fora do palco chama pelo nome da criança, que sai correndo em direção a ela, deixando o cavalo branco no chão. Um homem sem camisa atravessa o palco correndo. Logo atrás um policial faz o mesmo, depois o cadeirante também, em alta velocidade. Ouve-se tiros e alguns gritos. O morador corre até o meio do palco, e observa o que acontece fora dele. Resmunga baixo, desaprovando algo. Caminha até a frente do palco, na frente da mesa e faz sinais de que está chamando alguém na direção da plateia. Assovia. Grita: Eeei!!! Eeei!!! Preciso falar contigo!!

Resmunga novamente, aparentemente sem resposta. Senta em um banco ainda de frente pra plateia, retira uma bergamota do bolso e começa descascar jogando as cascas no chão. Um malabarista com a cara pintada e chapéu carregando três facões para no centro do palco, atrás da mesa, e começa fazer malabarismo com os facões. O morador se vira para ver, chupando a bergamota e cuspindo as sementes no chão. Alguns transeuntes com medo dos facões começam a desviar do malabarista. Passam pela frente da mesa e alguns bem no fundo do palco, olhando com olhares assustados. Outros param para ver. O malabarista deixa um facão cair no final da apresentação, recolhe-o, e saúda alguns espectadores com uma reverência. Depois retira seu chapéu e vai na direção deles para que coloquem dinheiro dentro dele. Todos os espectadores se dissipam sem dar nada.

O morador chama o malabarista, que vem até ele.

– Porra irmão, ia te dar cinquenta reais se não deixasse aquele facão cair no final – diz o morador.
– Quê?! Pergunta o malabarista desconfiado.
– Olha só cara. Você está fazendo isso errado. Essas pessoas te acham uma sanguessuga, e eles não deixam alguém assim como você sugar o dinheirinho deles, eles preferem serem comidos pelos patrões, entende? O que você vai fazer daqui pra frente é o seguinte. Escolha uma esquina da cidade, movimentada, e fique nela durante três meses, todos os dias. Faça teu malabarismo como nunca fez, aperfeiçoe, e ao acabar, não vá pedir dinheiro, porque é isso que eles esperam, porque eles são assim, tudo que fazem colocam preços. Apenas cumprimente os motoristas da primeira fila, saia andando e sente ao lado da rua. Mostre superioridade, eles amam isso. Logo, logo, sua fama irá se espalhar. Chegarão em rodas de amigos e esposas e citarão você. “Vocês viram aquele paspalho que faz malabarismo de graça no sol e na chuva? Como alguém consegue fazer isso?” Sem demora alguns vão te chamar pra lhe dar alguns trocados pela janela e te apertarão a mão, vão querer te igualar a eles, cada vez mais. Você se tornará personalidade, aquela esquina ficará congestionada, haverá palmas, você será um herói, dando alegria para humanos de graça, tipo Deus.
– E como eu faço pra comer nos primeiros meses?
– Sei lá. Corta cana.
– Tá maluco?!

Malabarista sai do palco por um lado e o morador pelo outro.

Peça uma peça ( VIII )

Personagem faz um lance. Plic. Prossegue o diálogo.

– Se era o melhor da equipe não deveria ter parado. Ligar uma moto qualquer um consegue, agora ser um bom jogador de xadrez é muito difícil.
– Fazer o quê?! Quero ser um qualquer. Essa disparidade fictícia entre pessoas não me interessa. Se nascer um jegue azul, os humanos acham extraordinário, mas para os outros jegues é simplesmente um jegue. Disso que estou falando, penso como um jegue. Pra finalizar esse assunto meu caro, experimente somente um dia amarrar três molas de caminhão nos pedais de uma moto e sair andando.

Plic.

– Não entendi o que quis dizer, mas enfim. Chegou a jogar contra atletas de nível internacional?
– Sim, se não me engano foram três.
– Vou pensar um pouco para o próximo lance. Depois continuo o assunto.
– Certo. Vou até ali comprar uma rapadura. Quer também?
– Não, obrigado.

O personagem sai do palco, fica somente a criança e a mesa com o tabuleiro. Ela vai circulando a mesa deslumbrada, se aproxima e logo se afasta. Até que finalmente senta no banco do adversário imaginário. Ela pega peça por peça que alcança e analisa fascinada. (projetar o fundo novamente com a imagem do tabuleiro visto de cima). Após analisar bem a peça ela da umas gargalhadas regozijantes, e devolve a peça ao tabuleiro, algumas em posições diferentes de onde estavam. O fundo com o tabuleiro desaparece. A criança se levanta e vai sentar no banco do personagem. Pega somente um cavalo branco e começa a brincar com ele, fazendo-o cavalgar em cima da mesa. Desce do banco e faz ele cavalgar pelo chão.

O morador passa pelo fundo declamando esse poema:

Apesar,
As cores de um jardim calado
Entorpecem a aranha careca
As teias da subordinação são grossas
Como os caules da esperança
Insano cortejo da bilheteria
Seguindo um vestígio de soro marcado
A ferro, fogo, sintonia, artifícios
Tabaco, álcool, solventes, histeria
Coalhado, calado, qual lado
A corda estica?
Apesar,
Do sujo olhar do beija-flor
A pergunta é feita pelo Doutor M.
Flocos de madeira cristalizados
Caem sobre as sombras das viúvas ancestrais
Os bonecos de pedra sugam o descompasso
E equilibram a primavera abrindo a porta
Paro, a pesar
O nó da corda
Uma desobediência desiludida
Calcando a perfeição
No último minuto do relógio

E se…

Se eu visse um ipê florido
Na frente de outro ipê florido
Ao lado de outro ipê devastado
Se eu visse uma floresta iluminada pela metade
Com uma antena em seu corpo beijando o céu
Casas desbotadas ainda querendo amá-la
Com janelas e portas abertas
O homem glorificando sua única natureza
Se eu visse roupas coloridas no varal da mulher de cabelos verdes
Ou um pneu furado no carro amarelo do jovem careca
Eles dariam um ótimo casal, se eu visse
E se eu visse cortinas balançando em um porão abandonado
Algumas mariposas grudadas nas paredes mofadas de julho
Se eu plantasse um ipê na frente desse porão
E convidasse a mulher de cabelos verdes e o jovem careca para um jantar
Mariposas alho e óleo, uma cerveja preta pra cada
Se eu continuasse cego, ainda teria tempo para ouvir o rádio desligado
Se eu ouvisse uma velha de braço engessado contar uma piada para seu cão
E se ele risse ao mijar no poste e errar o alvo
Se eu escutasse uma pedra quebrar o telhado e alguns pássaros saíssem voando pelo buraco
E se o lavador de telhados não visse o buraco e caísse dentro
Se eu fosse borracheiro e estivesse trocando o pneu do jovem careca
Enquanto ele roubava algumas roupas coloridas do varal da mulher de cabelos verdes
E se o lavador de telhados fosse filho da velha de braço engessado
E se fosse marido, e se ele tivesse inventado a piada
Se o cão latisse
E se eu continuasse
Não estaria aqui
Onde?

Peça uma peça ( VII )

O personagem aciona o relógio para voltar a jogar com o adversário imaginário. Faz um lance. Plic. Concentrado no tabuleiro, continua seu diálogo.

– Chegou a ganhar troféus e medalhas?
– Muitos e muitas. Mais individualmente do que por equipe. Nosso time era muito bom, infelizmente tinha um azar de causar inveja. Um merda entre nós sempre dava um jeito de perder a única partida que não podia, e geralmente para um adversário mais fraco. Perdi a conta das vezes em que ficamos no quarto lugar por conta disso.
– Isso não é azar, é incompetência. Mas me diga, era sempre o mesmo merda que perdia?
– Não. Revezávamos. Na maioria das vezes creio que eu fui o merda ocasional. Sua vez.
– Vou jogar. Você era o pior da equipe?
– Não, o melhor.

As luzes se apagam no palco, e um narrador diz:

Tarde abrasiva, com soluços de vapores invisíveis chacoalhando as saias das moças que transitavam monotonamente espalhando toda a crueldade das fêmeas pelo vão das pernas, embaralhando o odor intrínseco do ambiente como uma brincadeira sacana. Os velhos pigarreando, assobiando, batendo seus jornais velhos nas pernas, lamentavam a idade, lamentavam o esconderijo cheiroso e proibido assim como lamentavam as guerras e o preço das batatas. Lamentavam, fazia parte do jogo. As folhas arrastadas pelo vento pareciam bailarinas ao redor das barracas de caldo de cana e rapaduras. O brilho do Sol latejava na cruz da catedral e como um tapete nas escadas atraía o público, os turistas da sagrada cidade, para mais promessas altruístas. Lágrimas como confetes jogados, risos como bananas soltas no chão. O xadrez valia a pena, outra vez. O menino ranhento com a barriga de fora e umbigo esquisito rodeando o tabuleiro na mais santíssima órbita, não entendendo nada, ungido de inocência e curiosidade, aflito e fascinado pela beleza absurda daquelas peças pretas e brancas brilhando, mesmo sob as sombras das árvores.

Com as luzes ainda apagadas, o personagem acende um fósforo e deixa-o queimando até o fim. Depois acende outro e acende um cigarro, nesse momento as luzes são acesas novamente. Com alguns transeuntes passando pelo fundo do palco e uma criança parada, observando de longe o tabuleiro e o jogador, olhos nem se mexem, um dedo na boca, estática. O personagem concentrado no tabuleiro, nem percebe. A criança da dois passos em direção ao tabuleiro, mas volta um passo. Mais alguns turistas no fundo do palco tirando fotos, falando com sotaque do interior de SC. Um vendedor de picolé entra com o carrinho e para-o ao lado da criança que nem se mexe, continua olhando pra mesa. O vendedor de picolé fica olhando para os turistas batendo fotos. Os turistas vão saindo do palco e o vendedor pega seu carrinho e vai atrás. Saem do palco. A criança corre para trás do personagem, uns dois passos e fica observando.

fluflufluflufluf


aí do infarto do boi magro e doente tu salva uma linguicinha de herança pra família
por favor, separe pra nós…

já parou pra pensar hoje
que
doido sempre tá dizendo
que vai parar
uma ora ou outra
que vai parar
e que sempre
uma ora ou outra
o troço para
eles param
tudo para, essa porra toda
para
que merda e que alegria
essa gente aí
que nem devia falar alto
nem devia
falar…

tenho dito quieto
de longe ainda soa abaixo
me escutam?

fluflufluflufluf – barulho de água e merda
rolando vindo fluindo indo eu fluflufluflufluf – seguindo

Peça uma peça ( VI )

Agora se escuta somente a voz do morador declamando outro poema e a voz vai diminuindo de tom como se estivesse se afastando:

Mesmo que o grão disseminado
Conteste a singularidade do plantio
E a terra em desuso
Combata o florescer obscuro
Delírios ácidos acentuarão
Debalde, a irrigação nos poros
Latentes em cada movimento
Mesmo que imortalizar os vícios
Signifique simpatizar a paranoia
Ramas plácidas infinitas
Ainda codificarão o instinto
E os pressupostos doutrinarão a culpa
Se os sapos tivessem asas
Não bateriam com o traseiro no chão
Sempre que pulam
Mesmo que as pupilas dilacerem o razoável
E as bigornas sirvam de peso para papel
Alguma coerência ainda restará
E vibrará como uma víbora
No forno aceso
Jogar fora a própria vida
Significa usá-la da melhor forma
Mesmo que confrontar medo com medo
Seja um blefe da consciência
A confusão enrijece o apetite
Por tudo que se ganha sem razão
Admita que sempre foi hipócrita!
Sendo hipócrita, como posso admitir?
Ousar ou usar
Se em qualquer momento da minha vida
Eu depositar toda minha esperança em alguém
Então podem ter certeza
De que perdi a esperança
Mesmo que nada seja atributo de tudo
Tudo que se escreve sobre nada
Sobretudo
Sobre nada, esse poema
Não quer dizer tudo
Um peixe de sobretudo
Nada nada
Em seu aquário

O cadeirante devolve o documento do personagem e sai novamente anunciando a loteria, enquanto pelo outro lado do palco entra um bêbado com passos largos e desajustados, uma garrafa de cachaça de plástico em uma mão e com a outra gesticulando, como se estivesse sinalizando alguém ou alguma coisa, sem falar nada, apenas emborcando uns goles. Também sai do palco.

Peça uma peça ( V )

Pelo fundo do palco o morador vai caminhando e falando alto, não gritando, declamando esse poema:

O não-gostar é libido
É um caos controlável
É existir na existência, dever aos deuses
É a controvérsia do amor casual, que mal nos acostuma
Tem mais prestígio que um homem limpando a bunda na certidão de nascimento para mudar o nome
Torna-se raivoso, tão pouco contagioso e vingativo
Partiremos daqui logo, deixando sabonetes e talco nos sapatos
Partilhando mais chulé do que paixão
Combinando mais roupas que olhares
Morre-se de preto, desbota-se o corpo
Colam-se os olhos, a boca, as narinas e as pregas
O estilo fica pálido aos que olham para as flores que compraram
Nada tenho pra chorar, nem uma caixa d’agua
As pessoas boas racham lenha a vida toda e queimam
Seus pudores não são vaidosos e desrespeitosos
O não-gostar é instintivo e prematuro
E para que isso acabe, acendem-se algumas velas
Tornando as noites vagas e perfeitas 

De fora do palco, lado contrário de onde sai o morador uma voz grita: Vai te foder, o seu maluco!

O morador volta um pouco pra dentro do palco, esticando o pescoço como se procurasse quem tinha gritado com ele do outro lado.

(Enquanto isso acontece, em primeiro plano o cadeirante vai pegando os dados do personagem, preenchendo a loteria. O senhor levanta e sai, dobrando os papeis e colocando no bolso traseiro da calça. Antes de sair completamente do palco, se abaixa e coça os tornozelos pela última vez.