Passado envelhecido ( IX )

Eu havia puxado a cordinha, queria descer no próximo ponto, logicamente. Coloquei-me em frente às portas de desembarque do transporte coletivo. Já eram oito e pouco da manhã, estava atrasado, mas nem tanto, como de costume. Paramos no semáforo, faltava pouco, uns vinte metros, somente uma pessoa iria descer ali, bem insignificante por sinal. Corpos atravessaram pela faixa de pedestres, mas como eu estava lá no final do corredor só conseguia ver suas cabecinhas miúdas através do para-brisa, o vai e vem que já estamos saturados de observar, indo e vindo, escorregamos todos pra mesma vala, e viver parece ser a maior idiotice nessas horas. Em uma espécie de painel colocado sobre as portas, em vermelho luminoso o seguinte alarme “Parada Solicitada”. Fui eu, pensei, ainda mantenho algum poder nas mãos. Engano meu. Com um repentino solavanco o ônibus partiu lentamente. Balancei como uma carga de gado, senti uma dor no dedão do pé esquerdo, unha encravada, encravada na alma. Vagamente lembrei-me do meu primeiro pacto com o diabo, que não deu certo, cerca de quatro anos antes e aconteceu mais ou menos assim:

Conheci Marta em um posto de gasolina. Entrei comprar cigarros e ela discutia com o atendente. Fiquei atrás dela ouvindo tudo. Bêbada, queria porque queria passar cigarros no vale-alimentação, mas o cara recusava. Coisa tola, cada um se alimenta com o que quer.
– Escuta aqui seu frentista do caralho, eu tenho 27 anos, moro ali no bairro São Pedro, e saí de casa só pra isso. Vai me vender por bem, ou então eu quebro teu nariz.
– Desculpe senhora, mas não passamos cigarros no vale-alimentação. Nenhum posto da nossa rede faz isso. É melhor a senhora se acalmar.
Ela olhou pra trás e me viu quase encostado nela.
– Ouviu isso?! Esse chupador de gasolina não quer me vender cigarros.
– Ouvi. Qual cigarro você quer, bebê? Perguntei.
– Marlboro maço.
– Deixa que o papai te paga essa.
– Te espero ali fora.
Quase deu de cara na porta eletrônica, mas conseguiu sair. Seu cabelo moreno flutuava, a sua boca tinha um brilho molhado, tipo gelo derretendo numa fogueira, seus olhos eram pequenos, do tamanho de uma moeda de cinco centavos, mas valiam mais, uma tonelada de nobres desejos de tê-los fechados ao redor da virilha. As roupas não a deixavam mentir, só tinha saído de casa praquilo mesmo, e pra me deixar de pau duro num posto de gasolina.
– Acho que você escutou né chupador de gasolina? Dois maços, por favor.
– R$ 11,00 senhor.
– Hei cara, te livrei duma hoje hein? Essa mulher iria te explodir o bigode. Só tenho dez reais. Então sejamos justos como Jesus e tudo acabará bem.
Estendi a nota, como quem não queria pagar nada no fim das contas.
-AH! Tudo bem, obrigado – ele disse.
Dei o maço pra ela, acendi um pra mim.
– Papai, pra onde está indo?
– Pra casa. Papai está cansado.
– Aaaaa….vamos lá em casa brincar de papai e mamãe.
Fui pra lá. Papai e mamãe ralaram os genitais.
Paloma, Isis, Roberto e Dirceu eram seus amigos, vim conhecer dias depois. Eu tinha poucos amigos, e tinha preguiça de apresentar, o único que apresentei foi Antônio, e junto veio sua mulher religiosa. Pra começar, a Paloma tinha uma tatuagem nas costas, um grande beija-flor beijando uma pequena folha de maconha. Começava aí sua simbologia exacerbada, era de poucas palavras e sua linguagem pra tentar se expressar, notoriamente era difícil de entender, por vezes saía de uma conversa e ia sentar numa cadeira o mais longe possível “Que que deu agora?” eu perguntava, “Nada, só deixe estar” respondia Marta. Uma vez ficou só de calcinha na minha frente, enquanto eu tentava matar uma mosca e Marta tomava banho. Não falou nada, só ficou. Abaixei sua calcinha, ela ergueu, e fez um “não não não” com o dedo indicador. “Paloma sua esquisita, vou tatuar um pinto na tua pomba”, “Não não não” com o indicador. Vestiu-se e foi embora. “Onde está a Paloma?”, “Olha Marta, saiu voando por aí”. A Isis gostava de tagarelar, se passava por ninfomaníaca, mas dava pra ver que suas fodas decepcionariam até um padre cego. Tinha um corpo dos bons, mas exagerava tanto nas palavras que perdia toda a sensualidade, ficava fútil de tanto pau e buceta que citava. Mas eu até que gostava de ouvi-la, tinha a imaginação de uma criança prostituta. O Roberto era um cara sensível, apaixonado, o vi chorando umas três vezes. Pintava quadros um tanto abstratos, vermelhos e cinzas, e distribuía para seus amigos. “Ô Roberto, isso aqui pelo que vejo é um pastel peidando” – falei olhando pra um que tinha dado à Marta. “Você se engana, é um machado partindo um coração ao meio”, “A tá, mas o cheiro é o mesmo”. Dirceu era o mais velho de todos, tinha uns trinta e cinco anos. Formado em engenharia elétrica, o único que havia sido casado e tinha um filho, que não via muito. Falava-me de toda a situação, do amor perdido, dos sonhos, do caco e do vidro. O amor deve ser dosado em um conta gotas pra cada um, uma gota a mais e morrem afogados, uma gota a menos e acabam.
O pacto se sucedeu no dia em que Marta entrou pela porta da casa dela eufórica, tinha ido encontrar Paloma enquanto fiquei sentado no sofá espantando moscas.
– Meu bem, vamos acampar final de semana? Perguntou.
– Não – respondi.
– Aaaaaaa…por que não? Vamos sair um pouco desse nó universal, eu não aguento mais, todas essas calçadas e muros pichados. O cheiro, a fumaça, essas faixas de pedestres idiotas. Esses pombos folgados..aaaaa……não suporto mais. Se a gente ficar aqui, vamos acabar indo na casa do Antônio, e me dá enjoo só de pensar. Você bebendo num canto, eu suportando a mulher dele contar dos tricôs e da bíblia. AAAAAA…não, não. E depois a gente sai de lá, volta pra cá, tu tá com preguiça demais pra qualquer coisa, eu vomito meia hora, tu ri meia hora, e depois ainda fica me pedindo um boquete atrás do outro. Meu bem, por favor, só dessa vez. Quem nos convidou foi a Paloma. Já confirmaram o Dirceu e o Roberto, e tu já me disse que vê estilo neles. Ainda vai um cara que só a Isis conhece. A Isis você lembra né? Aquela puta galhuda que dá detalhes da vagina pra todos. Você já me disse que gosta dela também. Vamos??Ahn? Ahn?
– AAAA, tá porra, vamos.
– AAAA, meu bem. Não faz essa cara. Quer um boquete?
– Não.
Saiu saltitando e cantando uma musiquinha chata. Foi avisar Paloma por telefone. Voltou com a mesma musiquinha, um inglês moído estava famosinho com ela. Todos cantavam aquilo, e saltitavam, uns até rodopiavam. Imaginei que esse cantor tivesse um pacto com o diabo e fiz essa contraproposta: “Ouça-me seu diabo, você já fez pactos muito melhores que esse, algumas almas que você colheu valiam a pena, de verdade, mas duas coisas novas estão realmente me tirando do sério. Essa unha encravada, que só pode ser obra sua, e essa canção mela cueca, mela calcinha, mela meu humor, mela a paciência dos gafanhotos. Portanto, quantas virgens você precisa pra acabar com tudo isso? Aguardo resposta. PS: Por favor não esqueça da unha”. Nunca obtive resposta.

O ônibus parou no ponto que solicitei, mas não por minha causa. As portas da frente abriram e uma mulher saltou rapidamente pra dentro. Fecharam-se as portas e logo um repentino solavanco de arrancada. Minhas portas nem sinal de serem abertas.
– COBRADOR!! COBRADOOOR!!!
Minha voz saiu aguda e engasgada. Os olhares emburrados e devastadores se encheram de graça.
– COBRADOOOOOR!!! COBRADOOOOOR!!!
O filho da puta estava com fones de ouvido e o ônibus só não saía do lugar por estar em uma avenida movimentada. Saí correndo pelo corredor, até que ele me viu e tocou a sineta secreta, aquela que somente os motoristas entendem. Consegui sair do ônibus. Caminhei por no máximo dois minutos até me deparar com um cabeludo cheio das artes me pedindo cigarro. Já tinha um bafo de cachaça forte, por isso não era nada tímido. Dei um cigarro e perguntei:
– E o que você tem aí pra minha mãe?
Não entendeu.
– Dessas artes suas aí. Me dê uma – falei.
– Aqui é maluco de estrada camarada!!
– De qual estrada?
– De todas. Vou lhe dar uma, claro, porque sou maluco de estrada. Não me importo, ontem dormi embaixo da ponte, vivo de camaradagem. Raaaaaaa, qual você quer?
– Qualquer uma, estou atrasado, mas nem tanto.
Com muita dificuldade conseguiu retirar uma pulseira verde atada a uma coisa branca com dentes, uma pedra talvez, carnívora. Alcançou-me, agradeci.
– Aqui é maluco de estrada! Raaaaa – ele disse.
– Ok. Até amanhã.
Já tinha cruzado vários desses, sempre iguais. Certa vez, meses antes, foi com um malabarista sentado em um gramado ao lado do semáforo. Tinha tatuagens no pescoço, piercings na boca e no nariz, um cheiro azedo vinha do cabelo rastafári. Passando ele puxa papo:
– Não tenho dinheiro irmão, ninguém valoriza minha arte. Estou passando fome. Tem uns trocados?
– Tenho cigarro. Quer um?
– Pode ser irmão.
Retirei do bolso o maço, dei uma olhada, só mais cinco.
– Infelizmente irmão só tenho mais um – falei.
Guardei o maço, demonstrei interesse:
– Então irmão, faz tempo que manda esses pinos de boliche pro ar?
– Me dá esse crivo aí.
– Sem chances.
– Pô irmão.
Levantou-se. Cerrei o punho direito.
– Vou lá que o sinal fechou – ele disse.
Observei sua arte. Deixou cair um pino no meio da apresentação, mas no mais tinha se saído bem. Passou pelos carros com uma mão na posição de concha de sopa. Não recebeu nada. Veio sentar de novo, com uma cara de abóbora em depressão pós-colheita.
– Porra irmão, ia te dar cinquenta reais se não deixasse aquele pino cair – falei pra ele.
– Que? Respondeu.
– Olha só cara. Tu tá fazendo isso errado. Essas pessoas te acham uma sanguessuga, e eles não deixam alguém assim como você sugar o dinheirinho deles, eles preferem serem comidos pelos patrões, entende? O que você vai fazer daqui pra frente é o seguinte. Escolha uma esquina da cidade, movimentada, e fique nela durante três meses, todos os dias. Faça teu malabarismo como nunca fez, aperfeiçoe, e ao acabar, não vá pedir dinheiro, porque é isso que eles esperam, porque eles são assim, tudo que fazem colocam preços. Apenas cumprimente os motoristas da primeira fila, saia andando e sente ao lado da rua. Mostre superioridade, eles amam isso. Logo logo sua fama irá se espalhar. Chegarão na roda de amigos e esposas e citarão você. “Vocês viram aquele paspalho que faz malabarismo de graça no sol e na chuva? Como alguém consegue fazer isso?” Sem demora alguns vão te chamar pra lhe dar alguns trocados pela janela e te apertarão a mão, vão querer te igualar a eles, cada vez mais. Você se tornará personalidade, aquela esquina ficará congestionada, haverá palmas, você será um herói, dando alegria para humanos de graça, tipo Deus.
– E como eu faço pra comer nos primeiros meses?
– Sei lá, vende um piercing por dia.
– Tu tá maluco. Vou pro lá pro sinal.
Ainda fiquei olhando, continuando meu trajeto, e lá foi ele com sua conchinha.

Com a pulseirinha verde em mãos andei mais uns cem metros até encontrar uma árvore e amarrá-la no galho mais fino.

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