Pelo fundo do palco o morador vai caminhando e falando alto, não gritando, declamando esse poema:
O não-gostar é libido
É um caos controlável
É existir na existência, dever aos deuses
É a controvérsia do amor casual, que mal nos acostuma
Tem mais prestígio que um homem limpando a bunda na certidão de nascimento para mudar o nome
Torna-se raivoso, tão pouco contagioso e vingativo
Partiremos daqui logo, deixando sabonetes e talco nos sapatos
Partilhando mais chulé do que paixão
Combinando mais roupas que olhares
Morre-se de preto, desbota-se o corpo
Colam-se os olhos, a boca, as narinas e as pregas
O estilo fica pálido aos que olham para as flores que compraram
Nada tenho pra chorar, nem uma caixa d’agua
As pessoas boas racham lenha a vida toda e queimam
Seus pudores não são vaidosos e desrespeitosos
O não-gostar é instintivo e prematuro
E para que isso acabe, acendem-se algumas velas
Tornando as noites vagas e perfeitas
De fora do palco, lado contrário de onde sai o morador uma voz grita: Vai te foder, o seu maluco!
O morador volta um pouco pra dentro do palco, esticando o pescoço como se procurasse quem tinha gritado com ele do outro lado.
(Enquanto isso acontece, em primeiro plano o cadeirante vai pegando os dados do personagem, preenchendo a loteria. O senhor levanta e sai, dobrando os papeis e colocando no bolso traseiro da calça. Antes de sair completamente do palco, se abaixa e coça os tornozelos pela última vez.