O personagem aciona o relógio para voltar a jogar com o adversário imaginário. Faz um lance. Plic. Concentrado no tabuleiro, continua seu diálogo.
– Chegou a ganhar troféus e medalhas?
– Muitos e muitas. Mais individualmente do que por equipe. Nosso time era muito bom, infelizmente tinha um azar de causar inveja. Um merda entre nós sempre dava um jeito de perder a única partida que não podia, e geralmente para um adversário mais fraco. Perdi a conta das vezes em que ficamos no quarto lugar por conta disso.
– Isso não é azar, é incompetência. Mas me diga, era sempre o mesmo merda que perdia?
– Não. Revezávamos. Na maioria das vezes creio que eu fui o merda ocasional. Sua vez.
– Vou jogar. Você era o pior da equipe?
– Não, o melhor.
As luzes se apagam no palco, e um narrador diz:
Tarde abrasiva, com soluços de vapores invisíveis chacoalhando as saias das moças que transitavam monotonamente espalhando toda a crueldade das fêmeas pelo vão das pernas, embaralhando o odor intrínseco do ambiente como uma brincadeira sacana. Os velhos pigarreando, assobiando, batendo seus jornais velhos nas pernas, lamentavam a idade, lamentavam o esconderijo cheiroso e proibido assim como lamentavam as guerras e o preço das batatas. Lamentavam, fazia parte do jogo. As folhas arrastadas pelo vento pareciam bailarinas ao redor das barracas de caldo de cana e rapaduras. O brilho do Sol latejava na cruz da catedral e como um tapete nas escadas atraía o público, os turistas da sagrada cidade, para mais promessas altruístas. Lágrimas como confetes jogados, risos como bananas soltas no chão. O xadrez valia a pena, outra vez. O menino ranhento com a barriga de fora e umbigo esquisito rodeando o tabuleiro na mais santíssima órbita, não entendendo nada, ungido de inocência e curiosidade, aflito e fascinado pela beleza absurda daquelas peças pretas e brancas brilhando, mesmo sob as sombras das árvores.
Com as luzes ainda apagadas, o personagem acende um fósforo e deixa-o queimando até o fim. Depois acende outro e acende um cigarro, nesse momento as luzes são acesas novamente. Com alguns transeuntes passando pelo fundo do palco e uma criança parada, observando de longe o tabuleiro e o jogador, olhos nem se mexem, um dedo na boca, estática. O personagem concentrado no tabuleiro, nem percebe. A criança da dois passos em direção ao tabuleiro, mas volta um passo. Mais alguns turistas no fundo do palco tirando fotos, falando com sotaque do interior de SC. Um vendedor de picolé entra com o carrinho e para-o ao lado da criança que nem se mexe, continua olhando pra mesa. O vendedor de picolé fica olhando para os turistas batendo fotos. Os turistas vão saindo do palco e o vendedor pega seu carrinho e vai atrás. Saem do palco. A criança corre para trás do personagem, uns dois passos e fica observando.