Barulhos de uma pessoa subindo a escada em passos lentos, abre a porta, fecha.
Personagem fecha a geladeira e vai em direção à plateia novamente. E começa seu monólogo:
Pessoas andam sendo atacadas em uma pequena mata que se estende junto ao mangue perto do shopping. Não por coincidência, os macabros ataques acontecem no mesmo caminho que me leva ao trabalho. Faço isso há algum tempo já, todas as manhãs. No começo tive algumas dificuldades, não sabia ao certo as trilhas por entre as árvores, nem se pessoas andavam por ali, faziam piqueniques, estudavam plantas, fodiam, absolutamente nenhum dado físico eu tinha daquele lugar, mas resolvi confiar na imaginação, e por enquanto nada deu errado. Meus crimes não saem nos jornais nem na televisão, pois sou um assassino em série, estuprador e torturador que usa o cérebro, somente ele. Nada de armas além de um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Não guardo remorsos nem troféus das vítimas. Elas fazem parte da câimbra sadomasoquista e sustentável que o mundo adquiriu. Todos os crimes acontecem por volta das 7:45 da manhã, pois devo estar no emprego às 8:00. Ninguém suspeita dessas minhas caretices matutinas. Chego no horário, sem sangue nas mãos, apenas outro cigarro aceso e uma leveza cruel recém mastigada. Tomo um café preto, às vezes forte, muitas vezes doce demais. Nem lembro o que fiz há poucos minutos atrás. Rio o máximo que posso, pois além de matar, é a única coisa que me coloca perto do equilíbrio pelo resto do dia. À noite bebo e escrevo poemas pelas memórias vivas.
Meu primeiro ataque foi desastroso. Eu caminhava às 7:45 pela calçada que delimita a entrada no matagal, com um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Uma mulher vinha pela ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra. Pedalava forte, dava impressão que sua velocidade era a mesma que a de uma kombi branca que trafegava no mesmo sentido. Talvez minha velocidade também fosse a mesma. Ela – a ciclista – parou há uns dez metros de mim, e vasculhava sua bolsa em busca de algo. Quando eu estava há uns três metros dela, percebi que era água o que ela procurava e já bebia. Aproximei-me com tranquilidade e falei:
– Quer vender a bicicleta?
– Quero – ela respondeu. Bebericou mais água. Eu suava, ela também, a kombi era rastro de fumaça.
– Quanto você quer pela bicicleta?
– R$ 100,00.
– Posso beber um pouco da água?
– Posso dar um pega nesse cigarro?
Trocamos gentilezas. Acabei com a água, ela acabou com o cigarro. Mas eu tinha mais cigarros e ela não tinha mais água. Seria fácil matá-la. Continuei o papo:
– Me diz uma coisa. Essa bicicleta é só para andar na cidade ou ela aguenta trilhas?
– Quanto você pesa?
– 83 quilos – respondi.
– Então aguenta. Ela suporta até 85 quilos em trilhas e 102 quilos na cidade.
– E se eu engordar três quilos? Perguntei.
– Anda na cidade.
– E se eu engordar vinte quilos? Perguntei.
– Aí você vende a bicicleta.
– Posso testar ela nas trilhas desse mato?
– Pode. Vou com você. Tem mais cigarros?
– Tenho.
Ofereci o maço. Ela saltou do banco e fui empurrando a bicicleta uns metros até achar uma abertura na mata, que de fato era uma trilha, na minha imaginação. No caminho ela pediu o isqueiro, me devolveu o maço, acendeu um cigarro e depois me devolveu o isqueiro.
Antes de sentar no banco lhe fiz mais perguntas:
– Como você sabe a carga máxima da bicicleta?
– Acho que li no manual.
– Então caso eu queira fazer uma trilha com alguém sentado no quadro, terei que emagrecer no mínimo trinta quilos!
– A não ser que amarre um bebê no quadro. Aí nem precisa perder tanta massa.
– Quanto você pesa?
– 50 quilos.
– Quanto é 50 + 83?
– Não sei.
– Vamos fazer o seguinte – continuei – se ela aguentar eu e você nessa trilha, lhe pago R$ 150,00. Se quebrar no caminho, compro por R$ 100,00 independente dos estragos.
– Você não estaria ganhando nada com essa proposta – ela disse. R$ 100,00 é o valor que quero, assim como está.
– Posso ganhar a certeza que a carga da bicicleta em trilhas é 50 + 83 ou mais.
– Fechado então.
Subi no banco, ela no quadro, comecei pedalar. Seria fácil matá-la. Freei após uns três minutos na trilha.
– Preciso mijar – falei.
– Eu também. Muita água bebemos.
Me posicionei atrás de uma árvore e fingia que mijava, por outro lado, pude ouvir sua urina tocando as folhas no chão. Fingi mais, até balancei o pau seco. Aproximei-me enquanto ela ajeitava a calcinha. Agarrei-a por trás, com uma mão na boca e um braço em volta do pescoço. Minha inexperiência imaginativa fez com que ela conseguisse desvencilhar a boca e gritar uma reza doentia.
– ESTUPRE-ME! POR FAVOR, ESTUPRE-ME! IMPLORO! SÓ NÃO ME MATE!
Que coisa mais óbvia essas palavras, pensei, perdi o ânimo. Esvaziei os pneus da bicicleta, desconectei as espias dos freios, troquei as marchas. Estuprei sua bicicleta e cheguei ao trabalho às 8:00, sem sangue e nem graxa nas mãos. Tomei um café, doce demais naquele dia.