Personagem se mostra satisfeito com a situação, vibra por seu ato descrito. Vai até a porta da quitinete calmamente e cola um ouvido nela. Barulho de gatos brigando. Personagem fica ouvindo até os sons pararem. Vai até a garrafa de vinho e bebe uns goles, depois pega seu caderno em cima da cama e escreve um pouco com um lápis. Folhei-a páginas, e de costas para a plateia começa a ler o seguinte texto (aos poucos vai caminhando pelo palco):
Carta ao suicídio
Caro confidente
Escrevo-lhe a partir daquela cautela exacerbada citada na última carta
Embora pareça que não pensei em você nos últimos meses
Ressalto, com minhas mais sinceras palavras
Que nunca estivemos em maior sintonia
Deixe-me contar algumas novidades
Antes que eu esqueça, sim, ainda sofro com sorrisos
No último contato não fui bem claro, até porque, imaginei-o também rindo da situação
Senti-me coagido pelo nível três, seu vizinho de porta
Mas quero esclarecer tais notas, antes das novidades
Pode não acreditar, porém, as mulheres têm sido ainda mais demonstrativas
Lembra daquela lésbica com fones nos ouvidos de quem falei?
Pois é, nunca mais a vi, e mesmo assim sua boca suspeita e aberta ainda me confronta
Sei que parece loucura não esquecer aquele riso
Mas permita-me salientar uma coisa
Foi na minha cara!
Por seis segundos
Sem contato visual, entretanto, o que mudaria?
Nada! Ela me deve explicações
Blá, blá, blá pra você também
Amigo, as mulheres estão me mostrando os dentes diariamente
Sei, sei, sei que tudo isso lhe parece estúpido
Não, não estão flertando, eu conheço um flerte
Esse conluio feminino me pegou desprevenido
Uma gordinha pálida e sem escrúpulos faz parte
E quer saber o pior, a vejo quase todas as manhãs
Imagino que trabalha aqui perto
É uma tortura, nunca mais olhei-a nos olhos
Ela me assusta
Pra finalizar esse assunto de mulheres
Rosana acha que sou assassino
Rosana trabalha no mesmo prédio que eu
Nunca falei com ela
Mas notei que deixou de ir ao banheiro quando bebo água
Como posso não ter razão? O bebedouro fica ao lado da porta!
Laura do supermercado me deu “Bom dia” com a voz baixa e depois riu brevemente
Percebi a maldade correndo pelas artérias dos olhos
Ahhh, mas nada comparado ao que Lúcia do mesmo supermercado fez
Perguntou-me se eu não gostaria de ter um cartão fidelidade para adquirir descontos!!
Impressionante não?!
Chega de mulheres, vamos às novidades
Fui estuprado enquanto dormia
Ora, não percebi porque estava bêbado!
Quatro vezes!!
Claro que não lembro, mas acordei em casa todas as vezes
Em três ocasiões não sei quem foi, na última foi um amigo
Que amigo ahn?
Não tenho provas, nas três primeiras vezes tenho certeza que foi alguém com uma cópia da chave da casa, o antigo morador quem sabe?
Fui ver o preço de uma fechadura nova, mas decidi que pegaria o cara
Então montei uma armadilha na porta com duas garrafas de vinho e um banco
Fazem seis meses que aguardo o desgraçado tentar abrir a porta
Não preciso de provas! Afinal acordei sem cueca nas três vezes!
Na primeira vez estava no banheiro ao lado do papel higiênico
Na segunda sobre a pia da cozinha, e na terceira no lixo
Maldito doente!!
Meu amigo ao menos teve a decência de me vestir depois
Mais novidades?
Estão atirando pedras na minha sacada
Não falei pra ninguém, mas acho que isso tem a ver com os estupros
Assim como um pedaço de guardanapo que encontrei dentro do tênis
Quer mais provas que isso?
Tem sim!
Na última vez que peguei o ônibus um homem estranho disse me conhecer do trabalho
Jesus, era o antigo morador!
Estive tão perto dele, não sei como consegui perdê-lo
Não fui mais de ônibus trabalhar
Fiquei com medo de adquirir a síndrome de Estocolmo
Mas estou de olho
Bom, no mais, minha mulher me deixou por achar que bebo demais
Disse que crio teorias demasiadamente
Só porque tenho um histórico familiar de alcoolismo e hipocondria
Pode isso?
Queria que eu acreditasse em Deus e em todas suas baboseiras
Não sou tão ingênuo
Minha saúde continua a mesma, um câncer por dia, uma cura por dia
Analisei um catarro preto meu por vinte minutos
Nada de sangue!
Estou ótimo! Concorda?
Desculpe a demora, andei ocupado
Espero lhe encontrar o mais breve possível
Será um dia especial
Atira o caderno e o lápis sobre a cama e volta para continuar seu monólogo.