Quando criança esperava aflito a chegada de meu pai no dia do meu aniversário.
Não que ele fosse um pai ausente ou separado de minha mãe,
mas aquele era um dia especial. Poxa! era meu aniversário!
Lembro que ele voltava exausto de mais dia de trabalho naquele frigorífico, mas mesmo assim trazia em seu rosto jovem um belo sorriso, e em suas mãos uma bela caixa, quase sempre embrulhada em papel de presente azul metálico.
Lembro bem dos anos de vacas gordas.
Meu pai conseguira um cargo de destaque, algo como líder ou encarregado de setor.
Geladeira sempre cheia,
aquisição da primeira casa própria,
saímos do Fusquinha verde oitenta para um Fiat Uno noventa e dois, da mesma cor.
Nessa época empilhava presentes, principalmente em meus aniversários.
Ganhei enormes carrinhos de controle remoto, daqueles que somente no controle iam seis pilhas,
Ganhei autoramas, daqueles com pistas elevadas, que nenhum outro menino do bairro tinha visto, exceto em propagandas da estrela.
Ganhei um Atari!
Com dois controles e mais de mil jogos, o qual foi instalado em meu quarto em uma velha televisão preto e branca.
Mas como em Gênesis 41,
para as mesmas vacas gordas, existiriam o tempo das magras.
Meu pai perdeu o emprego,
suas economias minguaram em poucos meses,
e ele não conseguiu nem de perto o salário que ganhara há poucos meses.
Segundo ele, eram novos tempos, onde o estudo era mais importante que a experiência, lealdade e trabalho duro.
Então, como todo ano, chegou-se o próximo oito de fevereiro.
Naquele dia oito a espera foi muito maior.
Meu pai tinha conseguido à duras penas, um trabalho no chão de fábrica em um frigorífico,
e seu segundo emprego costumava terminar perto das dezenove horas,
era assim sua jornada de quinze horas diárias.
Mas eu, menino, poderia esperar por todo tempo do mundo, imaginei uma grande sacola pendurada em seu braço esquerdo, equilibrando o peso sobre a moto para andar em segurança.
Meu velho e querido pai nunca esquecerá o presente de seu primogênito, e não seria dessa vez!
Me sentei na escada de madeira que dava acesso a nossa casa,
a noite já tinha chegado e ficava impossível reconhecer visivelmente meu pai chegando ao longe,
mas eu tinha desenvolvido um instinto infalível, conseguia identificar de longe a forma de acelerar e o barulho inconfundível da velha moto Honda vermelha, de tanque redondo, que de tão antiga não me arrisco a chutar o ano de fabricação.
Meu coração disparou, fiquei eufórico imaginando qual seria a grande surpresa da vez.
Mas vi apenas meu pai tirando o capacete com um semblante abatido,
os lábios colocados,
a testa um pouco franzida e os olhos com pouca ou nenhuma vida.
Aquele mesmo semblante que por vezes reconheço ao me olhar no espelho.
Veio caminhando em minha direção, sem nada nas mãos, exceto o capacete,
passou ao meu lado na escada, beijou minha testa, passou sua mão em meia cabelos e me desejou feliz aniversário.
Fiquei perdido, não sabia como reagir,
o que estava acontecendo?
Meu pai não me amava mais?
Ele não gostava mais de ver seu filho sorrir?
Ou estava me castigando por algo que eu não lembrava…
Após alguns minutos sentado na mesma posição, naquela mesma escada de madeira, escutei uma espécie de discussão branda entre meu pai e minha mãe,
levantei-me e com passos lentos e silenciosos me aproximei da janela da cozinha:
“Ele esperou o dia todo por você, e tu chega de mãos abanando?
Noeli, não temos dinheiro para mais nada, é apenas dia oito e já não sei o que fazer no restante do mês.
Augustinho, por favor, vá até o camelô da Hermelinda e compra uma lembrancinha para o menino, fale que até dia 10 do mês que vêm daremos jeito de pagar, se não ele acaba doente.”
Meu pai então se levantou lentamente do sofá, e saiu com passos fortes,
daqueles que indicam que fará a vontade da companheira, mas com a certeza que teria mais problemas financeiros no mês seguinte.
Fiquei eufórico novamente!
Poxa vida, era meu aniversário,
dia oito de fevereiro pai, lembra?
Dia de ganhar carrinhos caros, do vídeo game importado,
sou eu, seu velho filho, ansioso por aquelas velhas surpresas de sempre!
Corri para o banho,
me ensaboei e enxaguei em tempo recorde,
vesti um calção e uma camisa do grêmio qual ele tinha me presenteado alguns anos antes e esperei em meu pequeno quarto, que na época não tinha porta, apenas uma cortina florida.
Foi quando ele chegou,
passou pela cortina com algo em mãos,
pequeno, enrolado em um papel de presente branco, opaco, como os olhos que me moravam.
“Filho, foi tudo que o pai conseguiu comprar…”
Entregou-me em mãos e foi saindo antes mesmo que eu abrisse.
Pareceu um sinal de vergonha,
de alguém que até poucos anos proporcionava momentos inesquecíveis a seu filho em todo oito de fevereiro e que agora o entregava algo tão singelo.
Observei aquilo por alguns segundos, ao sentir sobre o papel já podia notar que se tratava se uma caneca.
Abrir a embalagem e lá estava, uma caneca de metal, com um grande símbolo do grêmio em um dos lados.
Tenho certeza de que ele ouviu o barulho da caneca batendo contra o chão quando a arremessei embaixo da cama.
Deitei-me na cama e me cobri até a cabeça, não podia acreditar que tinha me tornado, um filho que merecia de presente de aniversário uma simples caneca de metal.
Durante dias não olhei direito para ele,
e respondia somente o necessário.
Ele nunca me repreendeu por aquilo,
apenas continuava a trabalhar e se entristecer a cada novo dia.
Hoje penso que ele deveria ter me falado algumas boas verdades sobre aquilo,
mas que verdades um menino de dez anos de idade deve ouvir sobre a responsabilidade patriarcal de prover o mínimo necessário à sua família?
Hoje penso seguidamente naquela velha caneca de metal,
diante todos os presentes caros que acumulei durante anos, não a trocaria por nenhum.
Aquele foi o presente mais verdadeiro, real, sofrível que meu pai poderá me dar.
“Pai, não sei que fim deu aquela velha caneca,
mas se comigo hoje estivesse,
todas as gotas de água que entrassem na minha boca, proveriam dela,
Assim como diante todas suas dificuldades você proveu tudo que eu precisava como filho.”
Oito de fevereiro de dois mil e vinte e três.