Água sem Gás

Estiquei minhas pernas em um velho banco,

no terminal urbano.

Onde vidas se cruzam na velocidade com que

seus sonhos são construídos e desconstruídos.

Jovens andam rápido,

alguns com brilhos nos olhos,

e mochila nas costas.

Velhos andam devagar,

com semblante cansado,

e pouco orgulhosos por cumprirem mais um dia

de sua árdua rotina.

Entre embarques e desembarques

ouço conversas cruzadas que invadem meus ouvidos.

Prova de física amanhã, estou ferrado!

Minha aposentadoria está demorando em chegar!

Será que tenho tempo para um cigarro?

Não suporte mais essa rotina!

Mudo então o banco,

Dessa vez não estico as pernas.

Me sento apoiando os cotovelos nas coxas,

E as mãos sobre a testa,

sempre foi minha defesa natural contra contatos humanos.

Percebo então companhia.

Amigo, serei breve, preciso beber, pode me ajudar com alguns trocados?

De quanto você precisa?

O suficiente para esquecer realmente quem sou.

Não sei se tenho tudo isso no bolso,

que tal 8 reais?

Agradeço, e que Deus lhe dê em dobro!

Espere amigo, pode repetir?

Que Deus lhe dê em dobro!

Você pode pedir a ele que me dê em dobro

o suficiente para também esquecer quem realmente sou?

Olha amigo, acho que também precisa de uma bebida.

Acompanho então aquele homem,

com passos rápidos ele entra em um dos bares

do terminal urbano.

Bares que abrigam toda a beleza da existência humana,

todos quem sabe,

no final do dia bebendo para esquecerem quem são.

Tomo coragem e adentro ao mesmo bar.

Fala chefe, o que será para você hoje?

Uma água sem gás, pois sou medroso demais para

sentar-me com esses homens e discutir assuntos simples,

simplificar a complexidade da vida e quem sabe esquecer quem sou!

Perdão, não entendi.

Apenas uma água sem gás por favor.

Dia de roça

Eram dois ou três domingos por ano no máximo,

quando a família entrava no carro para visitar o nono e a nona,

saíamos do interior para irmos ao “mato”,

ambiente familiar aos meus pais,

ambos criados no trabalho rural desde cedo, onde a inchada sempre vinha antes do lápis.

Fomos de ônibus,

com um cheiro terrível de freios sendo queimados pelo atrito com as rodas.

Fomos de fusca,

que deixava quase sempre um cheiro sutil de gasolina em nossas roupas.

Fomos de Fiat uno bordô,

esse já com 4 portas,

com Leandro e Leonardo no velho toca fitas.

E fomos de celta,

branco, com CDs de música sertaneja e

tapetes azuis metálicos, que brilhavam como meus olhos a espera da chegada.

Para mim pouco importava a forma,

mesmo lidando com constantes enjoos provocados pelas infinitas curvas.

Importava-me a chagada!

E a cada uma das 4 pequenas pontes do caminho, as quais eu passava com os olhos fechados pelo medo, meus enjoos iam desaparecendo.

Chegávamos quase sempre muito cedo,

não cedo suficiente para pegar o início do fogo na churrasqueira de lata na velha garagem.

Não importava a hora,

sete e meia,

oito e quinze,

ou nove horas,

lá estava o nono, com o fogo aceso,

e uma infinidade de carne ainda na salmoura, essa que ele fazia questão de todos molharem o dedo e provarem seu sabor.

As boas-vindas ao meu pai eram sempre com uma generosa caipira,

açúcar abundante, cachaça abundante e uma ou duas singelas pedras de gelo.

Para minha mãe, o olhar fraterno de pai,

e sacolas de frutas frescas já separadas para nosso regresso.

Para o neto, tudo isso,

açúcar empapuçado em cachaça abundante, um olhar fraterno e 40 cartas de um baralho espanhol pronto para a bisca, a marina ou a escova.

Primeiro o baralho!

Três cadeiras de palha, uma servindo de mesa,

duas sendo cadeiras.

Algumas partidas rápidas,

quase sempre finalizando o jogo com resultados iguais.

“Três a três nono, depois quem ganhar a última ganha todas!”

Agora era hora de abraçar a nona,

que há horas estava com a mesa do café servida,

esperando que todos provassem o pão,

as bolachas caseiras,

o queijo e a nata frescos.

Abraços, com beijos repetidos na bochecha.

“Como você cresceu belo, senta, vamos comer”.

E só me deixava sair da mesa após um generoso café,

mesmo por vezes sem fome, eram impossível negar tamanho amor empregado em cada um dos pratos preparados por ela.

Antes de sair um punhado de bala sete belo, rosas, sabor iogurte.

Descia até o paiol, à espera agora era por meu primo, que normalmente chegava mais tarde, exceto em épocas de pescaria, quando ele chegava muito mais cedo que eu, e deixava 20 ou 30 minhocas separadas em um pote reutilizado de margarina.

Saía do paiol, e caminhava até o porão do velho casarão.

Casa antiga, com porão, e sobrado, aqueles sobradinhos baixos, sem forro, que servia de dormitórios de visitas e uso vitalício aos morcegos.

O porão, de chão batido servia como depósito de ferramentas de todos os tipos: inchadas, picaretas, moedores de carne, amolador de facas e um pelego de ovelha no canto, esse que imagino servir de cama para o nono em dias poucos produtivos ou de muita bebida.

Agora faltava o chiqueiro, por mais estranho que possa parecer o lugar que mais gostava de visitar.

Adorava ver aqueles leitões recém-nascidos encolhidos perto de uma incandescente lâmpada elétrica.

Sempre vigiados atentamente pela porca matriz, que soltava grunhidos estridentes caso tentasse encostar em um de seus filhotes.

Por vezes passava minutos pensando em estratégias para soltá-los, quem sabe poderiam fugir para o meio da plantação e fugir do seu destino, mas como poderia, se nem ao menos eu poderia fugir do meu…

Logo o cheiro de carne assada se espelhava pelo ar,

o almoço nunca era o prato principal,

ao menos para mim.

Os miúdos espetados pelo nono eram para piazada,

coração,

rins,

e o delicioso fígado assado servido com gotas de limão, esses colhidos sempre por eu e meu primo, que os apertava antes de colher, para saber qual teria mais “suco”.

A tarde quando os tios e primos mais velhos apelidados por nós de coisas desconexas como Buda (que nos gerava risos imparáveis), se dedicavam a reforçar o tradicional porre de antártica.

Já as mulheres conversavam entre si, com pipoca doce de melado e cuias de chimarrão circulando.

As cinco irmãs, todas idênticas, tinham ali sua identidade compartilhada, perdi as contas de quantas vezes chamei minha mãe de tia, e algumas de minhas tias de mãe.

Para eu e meus primos mais jovens,

a tarde era produtiva,

caça aos ratos do paiol,

o chute nas frutas caídas, que costumavam deixar o peito do em pé todo vermelho,

o inticar as galinhas,

a natação no milho envenenado?!?!

E por fim as lágrimas de saber que a despedida estava mais próxima que a chegada.

O sol já estava a se pôr, meu pai e meus tios tiravam um cochilo,

segundo eles, uma estratégia para curar o porre e pegar a estrada com segurança…

Os primos mais velhos continuavam a beber e contar vantagem, enquanto nós, de longe seguíamos colocando apelidos.

É hora de voltar,

o porta-malas repleto de frutas,

fatias de pão e queijo enroladas em um pano de prato para o lanche.

Entrava de vagar no carro, e quando batia a porta meu pai manobrava o carro e sempre buzinava como sinal de adeus.

Eu ficava de joelhos no banco de trás pelos primeiros quilômetros,

olhando cada detalhe que pudesse captar,

como se de alguma forma fazendo isso, a sensação de tristeza e saudade que apertava meu peito pudesse ir embora.

Por vezes exausto, dormia a maioria do caminho, e acordava na primeira lombada que meu pai sempre saltava na chegada da cidade.

Hoje vago solitário pelas lembranças marcantes que aquele tempo deixou em mim.

Tento lembrar cada detalhe dos dias de mato que faziam aquele menino envergonhado, introspectivo se sentir o dono do mundo por algumas horas.

E quando outrora um caminhão

carregado de porcos passa e todos tampam o nariz,

eu respiro bem fundo e tento lembrar dos planos que fazia para mudar o destino daqueles pequenos leitões,

quem sabe assim possa achar planos para mudar o meu.

E seus velhos amigos, como estão?

Pareceu uma boa ideia reunir a velha turma da escola para um reencontro, fazia anos que a maioria não tinha nem ao menos se cruzado para um simples:

“Olá, como anda a vida velho amigo?”

A grande parte de nós tinha dividido as salas de aula do colégio estadual Antônio Morandini por dez ou onze anos, seria ótimo reencontrá-los, quem sabe relembrar algumas das histórias cômicas que compartilhamos naqueles bons tempos.

Todos nós éramos da época em que o colégio tinha duas entradas principais.

A lateral, destinada aos alunos, tinha um grande portão enferrujado sempre aberto e um largo corredor de brita que nos conduzia até a “área coberta”, que abrigava a maiorias das salas de aula, cozinha e biblioteca.

Nesse trajeto era possível observar a grande estrutura que sustentava a caixa d’agua, lugar de encontro de jovens casais, provando o primeiro gosto do amor, ou de um simples beijo escondido que seja.

Ao lado direito as 3 imponentes quadras esportivas, uma reservada ao futebol e ao basquete e outras duas ao voleibol, esporte preferido de toda a escola. Nenhuma das quadras eram cobertas, seu piso era de um cimento áspero, responsável por inúmeros “ralões” principalmente dos mais desastrados como eu!

Já a porta da frente era reservada exclusivamente aos pais e professores. Tinha um portão sempre bem pintado e uma bela campainha.

Esse acesso dava direto na área coberta, tinha um piso de cimento batido vermelho, sempre limpo e lustrado com cuidado pelas tias, responsáveis também por nosso lanche.

As paredes pelo caminho decoradas com quadros antigos, dos primeiros professores e turmas a se formar no querido Antônio Morandini.

De tempos em tempos alguns dos alunos mais corajosos, rebeldes ou mal-criados, como preferirem, se aventuravam em deslizar apenas de meia pelo lindo chão lustro e vermelho, aquilo virava um espetáculo à parte nos recreios, lembro como vibrávamos a cada manobra radial pratica por eles.

Mas aquilo não demorava a acabar, e quase sempre após alguns minutos os malandros, como eram chamados pela orientadora pedagógica, eram pegos e levados à secretaria, ou para refletir sobre o acontecido ou para assinar o livro negro em caso de reincidência.

As mesmas orientadoras pedagógicas eram responsáveis em montar as turmas, na maioria das vezes formadas ainda na primeira série, que por muitas vezes compartilhavam a mesma sala até a formatura no “terceirão”, tirando claro os poucos repetentes que ficavam pelo caminho, ou aqueles que o pai tinha perdido o emprego e precisavam se mudar.

A grande maioria dos pais, assim como o meu, tinham conseguido emprego no frigorífico do bairro, e firmado residência em seu entorno, isso facilitava essa jornada de estudos conjunta que vivenciarmos, eram outros tempos, onde trocar de emprego, ou “sujar a carteira” como eles mesmos diziam era considerado praticamente um pecado. Árvore que muito muda, não cria raízes!

Lembro das poucas vezes que alunos eram trocados da turma A para a B, realmente eram exceções que ninguém nunca soube ou saberá o real motivo.

Para minha tristeza uma dessas trocas ocorreu com meu melhor amigo, no primeiro dia da nova e assustadora quinta série.

Lembro como éramos inseparáveis desde o primeiro ano, foi o primeiro amigo que dormiu na minha casa, e o primeiro a oferecer pouso para mim longe dos seios de minha mãe.

Nos destacávamos na maioria dos esportes, tínhamos boas notas, era a primeira vez na minha vida que assumia um certo protagonismo em algo, e justamente agora que começamos a falar sobre as meninas mais belas da escola, que iriámos disputar os esperados jogos escolares e representar nosso querido colégio, por que agora?

Nunca ficamos sabendo, simplesmente o nome dele foi chamado, juntou seu material e saiu da sala sem questionar ou olhar para alguém.

Parece que posso sentir agora mesmo o frio na espinha que senti ao vê-lo saindo pela porta de metal da nossa sala, agora oficialmente ele era um aluno da quinta B.

Com o passar dos dias estreitei novas amizades na sala de aula, assim como ele na dele, ao nos cruzarmos pelo recreio parecíamos apenas velhos conhecidos, fazíamos um aceno com a cabeça e passávamos direto, com aquela sensação de culpa sem ao menos saber qual teria sido nosso crime.

Os restantes dos anos até a conclusão da oitava série não reservaram muitas surpresas, a grande maioria da turma A tinha ótimas notas, ninguém ficou pelo caminho e dos vinte e cinco ou trinta colegas que iniciaram a quinta seria ao menos noventa porcento concluiu a oitava juntos.

Agora um novo desafio estava por vir, os três desafiadores anos de ensino médio. A escola reservou apenas turmas à noite, do primeiro ao terceiro ano do segundo grau.

Nessa época tivemos algumas perdas, de alunos que os pais preferiram colocar em escolas com turmas diárias, ou escolas particulares para garantir um melhor vestibular logo à frente.

Foi então que as turmas A e B foram unificadas, e montamos agora um grande primeiro ano, com aproximadamente quarenta alunos.

Esses três anos foram, sem sombra de dúvida, os melhores anos que o bom e velho Antônio Morandini pode reservar.

Absolutamente não houve repetições, ou alunos que deixaram nossa turma para mudar de escola. Havia claro algumas turmas dividias dentro da turma.

As meninas da frente, sempre com as melhores notas e a admiração das professoras, a turma do meio, onde eu me inseria, que era um pouco nerd e um pouco “turma do fundão”, eu gostava de circular pelos dois meios, em aulas mais tranquilas como artes, ou educação física, não tinha escrúpulos e me reunia com o “fundão” para fazer confusão, já nas aulas de física, química ou matemática me aproximava da turma da frente, podendo assim aproveitar um pouco dos seus conhecimentos e tentar passar de ano sem recuperação.

E assim foi, assim como eu, nenhum de meus colegas repetiu de ano, e podemos fazer uma singela formatura, daquelas que tem homenagem aos pais, onde cada aluno entra com uma música da sua escolha, a minha foi uma do Green Day.

Aproveitamos aquelas horas como um ritual de despedida, de alguma forma parecíamos saber que aquele final de noite era o término de um ciclo, estávamos saindo de meros adolescentes para entrarmos na vida adulta, trabalho, faculdade, relacionamentos.

E, desde então, a grande maioria de nós não tinha mais se visto, e se isso acontecia, um breve aceno com a mão ou com a cabeça era a única expressão de carinho demonstrada.

Em dois mil e dezenove completamos quinze anos de formatura, eu e o único amigo que me restou daquele tempo, que se tornou um irmão, confidente, ou seja lá qual for o adjetivo carinhoso que posso expressar a ele tivemos a ideia de reunir a velha turma para uma almoço.

As redes sociais e aplicativos de conversa facilitaram muito a organização do evento.

O local escolhido foi a casa daquele velho amigo que há tempos atrás por força do destino foi retirado de perto de mim, ele morava na antiga casa da família que era em frente ao colégio.

Conseguimos juntar algo em torno de vinte velhos colegas, todos homens, as mulheres, quase todas já casadas e com filhos declinaram ao convite.

A carne seria comprada e dividida igualmente, a bebida foi patrocinada por um dos antigos colegas, e quem não bebia cerveja poderia levar o que bem entendesse. Apenas um levou uma garrafa de vinho fino, não faço ideia de quanto ele pagou, mas tenho a certeza de que ele queria passar a impressão de que sua vida nesses últimos quinze anos tinha sido farta.

A grande maioria engordou, alguns perderam cabelo ou estavam fortes como bois!

Assumi a churrasqueira, algo que gosto na maioria das festas que sou convidado, fartos espetos de carne com imensa variedade, naquele momento só me passava pela cabeça, que o responsável em comprar a carne queria passar a impressão de que sua vida nesses últimos quinze anos tinha sido farta.

Eu só pensava se meus quarenta reais trocados seriam suficientes para pagar a minha parte.

Após o almoço, a grande maioria permanecia calada, olhando o celular, como se fossemos estranhos que se encontravam pela primeira vez ali, naquele exato lugar e momento.

Tentei quebrar o gelo com algumas piadas infames que são minha característica, como o fato de um de meus antigos colegas ter perdido o dedo indicador da mão direita, e o indaguei qual era sua estratégia para mijar depois de tamanha perda.

De um por um, fomos contando como tinha sido nossa vida nesses últimos quinze anos, quando chegou na minha vez tive a impressão de que contei vantagem da minha vida nesses últimos quinze anos, e como ela tinha sido farta.

Aos poucos, um a um começou se despedir, alguns tinham outros compromissos, sejam profissionais ou familiares, e o reencontro se deu por encerrado às dezesseis horas.

No calor do momento combinamos marcar um novo almoço em breve, mas para falar a verdade nosso grupo de mensagem desde então não teve sequer um bom dia.

Todos devem ter tido a mesma sensação de que eu: existem coisas que devem ser mantidas apenas naquele lugar, destinado as boas lembranças e só.

Hoje prefiro relembrar das histórias daqueles velhos amigos que me acompanharam por todos aqueles anos no nosso bom e velho Antônio Morandini, e coloquei aquele reencontro naquele lugar reservado às memórias que nunca queria que tivessem sido formadas…

Ao sair para andar

O fluxo sanguíneo irriga meus olhos,

pouco funcionais,

algo genético, hereditário.

Prefiro então esconder os óculos,

prefiro então nenhuma medicação.

Quero enxergar,

mas sem perfeições.

Quero viver

mas sem anestésicos.

Quero ver o mundo por mim mesmo,

mas por Deus,

a quanto tempo não faço isso?

Amigo, preciso de sua ajuda,

negocia alguém enrolado em trapos,

e com uma garrafa em mãos.

Mas como poderia lhe ajudar

sem nem a eu mesmo posso?

Não lhe enxergo,

nem ao menos sei se existe.

Alcance essa garrafa,

quem sabe pelo gosto amargo desse trago posso voltar a ser eu,

posso lhe ajudar

e quem sabe ajudar a eu mesmo.

Saio a passos rápidos,

talvez seja Deus enrolado em trapos,

me tentando, a ser eu novamente.

Meus batimentos disparam,

sento na calçada e espero baixar.

Não baixam,

realmente não preciso me preocupar,

esse sou eu.

Volto a andar,

passos lentos, pensamentos acelerados.

Paro em frente ao hospital,

se desmaiar alguém me verá.

Penso em entrar e pedir quanto custa um exame para identificar se venho sendo eu.

Assim pensarão que sou louco,

então me acalmarei, esse sou eu!

Agora começo a correr,

batimentos quase em 200,

tropeço em uma garrafa vazia,

melhor parar, quem sabe seja Deus tentando me avisar.

Chuto-a para longe,

sinto uma dor tremenda nos dedos dos pés,

até então amortecidos por pensamentos intrusivos.

Volto a passos lentos agora,

não me importa mais saber se sou eu ou não.

Faço o mesmo trajeto,

quero saber se ainda posso ajudar aquele velho amigo.

Ainda esta ali, agora a cochilar,

enrolado em trapos,

como meus pensamentos.

Penso em lhe abraçar,

mas desde quando meu abraço

poderia alguém ajudar?

Sigo meus passos,

desculpe amigo,

não posso ajudar,

pois apenas sai para andar.

Mercadinho no porão

Meados de 2000,

e meu pai tinha poucos anos a mais do que tenho hoje,

mas eram notáveis as marcas de sofrimento que a vida já tinha deixado em seu rosto até então.

Poucos anos antes ele tinha perdido todas as economias da família,

em um negócio malsucedido envolvendo a compra de um caminhão.

O desejo de ascender na vida tinha sido mais tentador do que a certeza do fracasso de um operário da agroindústria em ser um empresário bem-sucedido.

Naqueles dias, meu pai dividia seu tempo em apenas 3 coisas: trabalhar, comer e dormir.

Dois empregos de segunda a sexta, e um terceiro nos finais de semana

até quando seu corpo aguentaria?

Tenho certeza de que era a pergunta que ele se fazia toda madrugada, quando levantava para o trabalho e toda noite, quando encostava a cabeça no travesseiro para suas 5 horas de sono.

Mal podia imaginar que, por trás de tanto sacrifício, meu pai carregava acesa aquela velha chama de mudar de vida,

de deixar de ser um simples operário, mesmo que para mim, naquele momento isso não fazia o menor sentido…

Até que, finalmente, em uma noite quente de verão ele decidiu revelar seu plano.

“Guardei algum dinheiro, vamos abrir um pequeno mercado no porão”

Lembro que minha mãe ficou agitada e não parava de repetir que eu era um garoto de apenas 11 anos, e que ela não tinha nem a quarta série concluída, como iríamos dar conta de um mercado, mesmo que pequeno, sozinhos.

Mas meu pai estava decidido,

ensinou minha mãe a lidar com a máquina de calcular,

contratou um vizinho para construir as prateleiras de madeira,

em uma casa de móveis usados comprou um balcão de atendimento e um velho freezer.

Organizamos as prateleiras estrategicamente em lugares onde não existiam infiltrações,

o velho balcão perto da parede dos fundos em direção à porta,

e o freezer logo ao lado.

Das 4 lâmpadas do ambiente, meu pai tinha autorizado o uso apenas de duas, isso ajudaria na conta da luz.

É estranho pensar,

mas desde a inauguração o mercado já tinha ares de antigo e antiquado…

Lembro como eu e minha mãe morríamos de vergonha de atender os poucos clientes que chegavam,

e como rezávamos a Deus para que tivéssemos feito alguma venda até a hora que meu pai chegasse, para que ele esboçasse um pequeno sorriso.

Aos poucos os fornecedores de doces, cigarros clandestinos e bebidas se amontoaram para vender seus produtos,

quase sempre com uma negativa de minha mãe:

“Hoje não, os negócios estão fracos”.

Com o passar dos meses criamos alguns poucos bons clientes, e empilhamos maus pagadores.

Nunca dissemos não a um cliente,

esse era o lema que meu pai tinha criado,

seja por uma compra fiada, ou para abrir o mercado as 10 horas da noite para vendermos uma caixa de fósforos ou um pacote de suco.

Toda noite minha mãe implorava para que meu pai fechasse o velho mercado,

ele nunca respondeu, apenas baixava a cabeça e andava até o quarto.

A melhor lembrança que tenho do mercadinho, era de como podia encher a boca de paçoca toda a manhã e tomar um belo gole de refrigerante,

a sensação do gás em contato com o açúcar dava uma coceira gostosa no céu da boca…

O mercado durou cerca de 4 anos, e cada dia demonstrava um semblante mais triste, como o de meu pai que, sequer, pôde largar um de seus empregos.

Hoje tenho certeza que foram os 3 empregos de meu pai e sua esperança de sair do chão de fábrica que mantiveram o velho mercado aberto por tanto tempo.

Quando encerramos as atividades, lembro de encontrar produtos que estavam na prateleira desde a inauguração e pensava:

“Deus, como chegamos até aqui!”

Ainda hoje sonho com o pequeno mercado, com suas prateleiras opacas, seu balcão usado e com apenas duas lâmpadas acesas.

Acordo quase sempre triste, pensando:

“Foi apenas mais um sonho”

Mais um sonho de meu velho pai que não pude ajudar transformar em realidade.

Oito de Fevereiro

Quando criança esperava aflito a chegada de meu pai no dia do meu aniversário.

Não que ele fosse um pai ausente ou separado de minha mãe,

mas aquele era um dia especial. Poxa! era meu aniversário!

Lembro que ele voltava exausto de mais dia de trabalho naquele frigorífico, mas mesmo assim trazia em seu rosto jovem um belo sorriso, e em suas mãos uma bela caixa, quase sempre embrulhada em papel de presente azul metálico.

Lembro bem dos anos de vacas gordas.

Meu pai conseguira um cargo de destaque, algo como líder ou encarregado de setor.

Geladeira sempre cheia,

aquisição da primeira casa própria,

saímos do Fusquinha verde oitenta para um Fiat Uno noventa e dois, da mesma cor.

Nessa época empilhava presentes, principalmente em meus aniversários.

Ganhei enormes carrinhos de controle remoto, daqueles que somente no controle iam seis pilhas,

Ganhei autoramas, daqueles com pistas elevadas, que nenhum outro menino do bairro tinha visto, exceto em propagandas da estrela.

Ganhei um Atari!

Com dois controles e mais de mil jogos, o qual foi instalado em meu quarto em uma velha televisão preto e branca.

Mas como em Gênesis 41,

para as mesmas vacas gordas, existiriam o tempo das magras.

Meu pai perdeu o emprego,

suas economias minguaram em poucos meses,

e ele não conseguiu nem de perto o salário que ganhara há poucos meses.

Segundo ele, eram novos tempos, onde o estudo era mais importante que a experiência, lealdade e trabalho duro.

Então, como todo ano, chegou-se o próximo oito de fevereiro.

Naquele dia oito a espera foi muito maior.

Meu pai tinha conseguido à duras penas, um trabalho no chão de fábrica em um frigorífico,

e seu segundo emprego costumava terminar perto das dezenove horas,

era assim sua jornada de quinze horas diárias.

Mas eu, menino, poderia esperar por todo tempo do mundo, imaginei uma grande sacola pendurada em seu braço esquerdo, equilibrando o peso sobre a moto para andar em segurança.

Meu velho e querido pai nunca esquecerá o presente de seu primogênito, e não seria dessa vez!

Me sentei na escada de madeira que dava acesso a nossa casa,

a noite já tinha chegado e ficava impossível reconhecer visivelmente meu pai chegando ao longe,

mas eu tinha desenvolvido um instinto infalível, conseguia identificar de longe a forma de acelerar e o barulho inconfundível da velha moto Honda vermelha, de tanque redondo, que de tão antiga não me arrisco a chutar o ano de fabricação.

Meu coração disparou, fiquei eufórico imaginando qual seria a grande surpresa da vez.

Mas vi apenas meu pai tirando o capacete com um semblante abatido,

os lábios colocados,

a testa um pouco franzida e os olhos com pouca ou nenhuma vida.

Aquele mesmo semblante que por vezes reconheço ao me olhar no espelho.

Veio caminhando em minha direção, sem nada nas mãos, exceto o capacete,

passou ao meu lado na escada, beijou minha testa, passou sua mão em meia cabelos e me desejou feliz aniversário.

Fiquei perdido, não sabia como reagir,

o que estava acontecendo?

Meu pai não me amava mais?

Ele não gostava mais de ver seu filho sorrir?

Ou estava me castigando por algo que eu não lembrava…

Após alguns minutos sentado na mesma posição, naquela mesma escada de madeira, escutei uma espécie de discussão branda entre meu pai e minha mãe,

levantei-me e com passos lentos e silenciosos me aproximei da janela da cozinha:

“Ele esperou o dia todo por você, e tu chega de mãos abanando?

Noeli, não temos dinheiro para mais nada, é apenas dia oito e já não sei o que fazer no restante do mês.

Augustinho, por favor, vá até o camelô da Hermelinda e compra uma lembrancinha para o menino, fale que até dia 10 do mês que vêm daremos jeito de pagar, se não ele acaba doente.”

Meu pai então se levantou lentamente do sofá, e saiu com passos fortes,

daqueles que indicam que fará a vontade da companheira, mas com a certeza que teria mais problemas financeiros no mês seguinte.

Fiquei eufórico novamente!

Poxa vida, era meu aniversário,

dia oito de fevereiro pai, lembra?

Dia de ganhar carrinhos caros, do vídeo game importado,

sou eu, seu velho filho, ansioso por aquelas velhas surpresas de sempre!

Corri para o banho,

me ensaboei e enxaguei em tempo recorde,

vesti um calção e uma camisa do grêmio qual ele tinha me presenteado alguns anos antes e esperei em meu pequeno quarto, que na época não tinha porta, apenas uma cortina florida.

Foi quando ele chegou,

passou pela cortina com algo em mãos,

pequeno, enrolado em um papel de presente branco, opaco, como os olhos que me moravam.

“Filho, foi tudo que o pai conseguiu comprar…”

Entregou-me em mãos e foi saindo antes mesmo que eu abrisse.

Pareceu um sinal de vergonha,

de alguém que até poucos anos proporcionava momentos inesquecíveis a seu filho em todo oito de fevereiro e que agora o entregava algo tão singelo.

Observei aquilo por alguns segundos, ao sentir sobre o papel já podia notar que se tratava se uma caneca.

Abrir a embalagem e lá estava, uma caneca de metal, com um grande símbolo do grêmio em um dos lados.

Tenho certeza de que ele ouviu o barulho da caneca batendo contra o chão quando a arremessei embaixo da cama.

Deitei-me na cama e me cobri até a cabeça, não podia acreditar que tinha me tornado, um filho que merecia de presente de aniversário uma simples caneca de metal.

Durante dias não olhei direito para ele,

e respondia somente o necessário.

Ele nunca me repreendeu por aquilo,

apenas continuava a trabalhar e se entristecer a cada novo dia.

Hoje penso que ele deveria ter me falado algumas boas verdades sobre aquilo,

mas que verdades um menino de dez anos de idade deve ouvir sobre a responsabilidade patriarcal de prover o mínimo necessário à sua família?

Hoje penso seguidamente naquela velha caneca de metal,

diante todos os presentes caros que acumulei durante anos, não a trocaria por nenhum.

Aquele foi o presente mais verdadeiro, real, sofrível que meu pai poderá me dar.

“Pai, não sei que fim deu aquela velha caneca,

mas se comigo hoje estivesse,

todas as gotas de água que entrassem na minha boca, proveriam dela,

Assim como diante todas suas dificuldades você proveu tudo que eu precisava como filho.”

Oito de fevereiro de dois mil e vinte e três.

estrAbismo por Ágora Literária

Resenha do livro estrAbismo por Ágora Literária

Recentemente fomos agraciados com um presente pra lá de especial: o filósofo, escritor e professor @neliosilzantov, após leitura do estrAbismo, publicou uma resenha em seu belíssimo projeto “Ágora Literária“. Muito gratos pela leitura e impressões, meu caro.
   
Abaixo, link para leitura da resenha na íntegra:
   
https://agoraliteraria.home.blog/2020/11/27/estrabismo-por-mr-oculus/

Em tempo, convidar aos amigos para conhecerem o trabalho que o Nélio vem realizando no @agoraliteraria.blog