levantei e lavei o rosto
pela primeira vez desde que morri
abri minha primeira garrafa de RUM
e na morte me servi
de uma bela dose desconhecida
– em efeitos póstumos
me sentei ao lado da vitrola empoeirada
em uma cadeira desconfortável
– e conforme instruções
coloquei para tocar o primeiro disco
que encontrei pela frente: Mozart
ouvindo o requiem apropriado
fumei meu primeiro cigarro
oficialmente, morto
depois novamente estiquei as pernas
e fiquei revivendo este ser
esta maravilhosa concentração de energia
que me encheu de luz e calor tantos dias
até que o milagre se fez
eis que surge este ser peludo
branco e arrepiado feito um raio
correndo, miando, resfolegando
que faz brotar meu primeiro sorriso
que me faz sentir vivo novamente
por isso quando foi dormir me sentei
e escrevi meu primeiro poema post mortem
em homenagem ao gato que miou
pela última vez esta madrugada
em celestial desordem.
Autor: Eduard Traste
atemporal
peço perdão toda vez que fecho os olhos
e consigo me desfazer da realidade
quando o ódio adormece
e os pássaros se fundem em metal pesado
e tinta amarela
quando a cantoria habitual
torna-se um ruído cortante
impossível de ser digerido
e meu pai incomodado desce da cruz
para discutirmos sobre aquele aluguel
que atrasei quando tinha
nove anos
de absolutamente,
nada.
o tumor indeciso *
há um tumor indeciso em meu cérebro
que quer me matar
de rir
mas sou ordinário demais com ele,
eu digo, seu babaca, fique parado aí
há um tumor indeciso em meu cérebro que
quer me matar
de rir
mas eu despejo merda sobre ele e inalo
minha própria urina
e meus rins e meus pulmões
e o velho fígado
nunca irão entender
o motivo de
tanta graça
há um tumor indeciso em meu cérebro que
quer me matar
de rir
mas sou ordinário demais com ele,
eu digo,
seu cancerigenozinho de merda
fique quieto aí,
quer me fazer mijar nas calças?
(…) há um tumor indeciso em meu cérebro que
quer me matar
de rir
mas sou bastante tolerante, deixo que ele
assuma algumas funções
quando vou dormir
eu digo: agora é contigo,
então te esforce vagabundo.
depois, quando acordo
ele dorme novamente
não eternamente
por hora
e por vezes dormimos juntos
dividindo as funções
como se tivéssemos até
combinado previamente
para dormirmos tão
bem
mas eu não durmo,
e ele?
* no ritmo do pássaro azul
folga semanal
você trabalha feito um morcego míope madrugadas adentro
e em sua única folga na semana
mesmo depois de ansiar dias
por este momento
“você sente que precisa sair e matar
sugar o sangue dos mortos
já não é o suficiente”
você apenas
dorme..
de cabeça para baixo, obviamente.
dorme 18 horas ininterruptas
e quando acorda, o dia já raiou
sua folga já partiu
e do domingo,
nada restou.
sua mulher deitou-se a pouco
e você, ainda acordando, tateia a beirada da cama
procurando por uma cerveja
que por sorte, não encontra
do contrário, seu bom dia seria quente
e muito provavelmente,
horizontal.
sobre a mesa da sala
você percebe que enquanto dormia
sua mulher trabalhava;
pintou um retrato seu e outro
dela. uma verdadeira artista,
sem dúvida alguma.
você sabe, sempre soube
por isso sorri satisfeito;
alguém precisa se manter
vivo.
então você abre a porta da frente
na esperança de encontrar seu filho, Arturo.
está sumido há três dias
e você não faz nenhuma ideia
de onde ele possa estar, não o conhece
o suficiente
e no fundo, acredita que ele tem bons motivos
para não voltar
“eu voltaria?” – você se pergunta
antes de bater a porta às suas costas
e voltar a dormir.
revivendo seus cabelos
eu leio sobre essa garota
que sai do banho envolta num roupão
folgado e preto
e se senta fumando em frente ao espelho,
e vagarosamente começa
a pentear seu cabelo
em movimentos longos, abrangentes
e ritmados, a escova vai descendo
e fazendo um mínimo chiado,
enquanto a fumaça
sobe calada.
e não preciso de mais nada
para vê-la feita em minha frente.
eu posso até sentir o cheiro
de seu cabelo, o calor daquele cigarro
e é surreal quando acontece;
depois de tanto tempo distantes,
porque lembrar faz parte
mas reviver, reviver é tão raro
quanto viver, ou nesse caso;
se queimar com aquele cigarro,
ainda hoje, ainda
aceso.
mosca de bar
encontrei um bar
um bar onde as moscas
desenham sua merda
e se banham em seu próprio
vômito
eu bebo e observo
elas são tão incrivelmente
autossuficientes
e vomitam em tantas cores
diferentes
que não ouso mover
merda alguma de lugar
seja defecada ou desenhada
mesmo quando
elas já se foram
e eu
permaneço.
apogeu
eu estava sozinho há tanto tempo
que quando ela apareceu
desconfiei
e inevitavelmente pensei
“eu não atraio pessoas
muito menos
pessoas que me atraem”
mas ela continuava a cada nova aparição
se mostrando mais gentil
e extremamente interessada
como se eu fosse o escolhido
“não pode ser coisa dEle (quem?)
deve ser
de Dante” – imaginei
em todo caso
não consegui evitá-la
era como lutar para não respirar
como entrar em greve de fome
quando finalmente
resolvem te alimentar
e ela permanecia aparecendo
nas horas mais inesperadas do dia
da noite, ou da madrugada
“coincidência” – dizia ela
antes de se abrir em sorrisos orgásticos
e foi assim que ela me fisgou
suprindo um anseio que sempre tive
e que jamais havia sido suprido
com seus trejeitos e seu perfume
docemente fatal
eu caí feito uma mosca morta
em sua teia irresistível
e foi assim que ela me levou
a Senhora Morte
e foi assim que o perdedor
enfim
venceu.
tarde quente
enjoado das moscas da casa
fui para o bar no meio da tarde
e logo depois de pedir
minha cerveja, à avistei;
essa adorável senhora
de uns 73 anos..
eu a fiquei encarando por horas,
imaginando o que faria
quando chegasse a essa idade
fiquei pensando com quem treparia
e se ainda treparia,
fiquei pensando
um milhão de outras merdas,
até que ela se levantou
veio em minha direção
e se sentou junto a mim.
não disse nada,
apenas encheu meu copo
com sua cerveja
e assim permanecemos,
em silencio, bebendo
como dois cúmplices da morte.
bebi toda cerveja, ela encheu
novamente o copo que esvaziei
e assim a cena se repetiu
por vezes.. até o momento
em que eu não estava mais
bem certo de muita coisa
e me levantei para ir ao banheiro.
ela veio atrás. eu estava exausto
demais para me virar
e pedir que não
me acompanhasse.
entrei no banheiro e ela entrou
logo atrás.. não liguei.
abri a braguilha e comecei
a mijar.. mal havia começado
quando senti suas pequenas
e enrugadas mãos
em cima do meu pau.. tudo bem,
tudo bem, pensei..
larguei em suas mãos
e continuei mijando..
mijei por alguns minutos,
sem problemas.. digamos que ela
segurava bem, apesar da idade..
terminei de mijar.. ela chacoalhou
com experiência que não havia
de faltar.. eu me virei e me sentei
na privada encardida.. ela se ajoelhou
no piso imundo do banheiro
e fez questão de tirar toda minha calça
antes de se jogar de boca..
com movimentos pesados e quentes
luxos de uma boca já quase
sem dentes. eu pouco liguei,
estava tão distante de tudo e todos
que apenas fechei os olhos
e me recolhi em meu canto..
pensei em todos os pombos
de asas quebradas,
nos cachorros abandonados, presos
em suas coleiras no meio do nada
sem comida e no cio,
lembrei das mulheres
que me rejeitaram e das poucas
que rejeitei.. das mulheres que desejei
mesmo que uma única vez,
até que voltando a mim
no calor das emoções humanas
enchi sua boca com minha porra
quente e vermelha que ela
fez questão de engolir.
em seguida me beijou na boca
e foi embora sem dizer uma única
abóbora..
depois disso,
nunca mais a vi.
mas ela me marcou
com a esperança de que dias
melhores podem vir
assim, em qualquer tarde,
em qualquer
idade.
somente ratos
o lixo transborda
a cozinha já é refúgio para os ratos desabrigados
e mais do que minhas meias e cuecas
a privada fede
e escorre
escorre
escorre
o piso está grudento
guimbas de cigarro se misturam
sentimentalmente
com o mijo dos ratos escondidos no sofá
lembrando dos pulmões afetados
eles estão por tudo
poucos vivos – preciso avisar
a maioria já foi vencida pelo tempo
pelo tédio
enjoados da cerveja derramada pelos amigos
ou inimigos
enojados pelo descaso
perplexos com a convivência estabelecida
tudo fede nesta casa
esteja morto ou vivo
estamos tão cheios da mesma merda
que tenho tido medo de fechar os olhos
afinal
cedo ou tarde
quando tento inutilmente dormir
feito um rato
com medo de minhas próprias armadilhas
todos acabam caindo na ratoeira
cedo ou tarde
no mais tardar
hoje à noite.
realidade
sonhei que estava sendo preso;
suspeita de assassinato.
uma grande e desorganizada trama
desenrolava-se, devorando-me
contudo
sentia que dela
eu me livraria
mas não tão cedo
quando percebi que
o que mais importava
acima dos vivos e dos mortos
dos suspeitos ou culpados
era o exame toxicológico.
aquilo me pegou pelas bolas
e me deixou sem ar
antes mesmo de,
horas depois,
o policial me revistar e encontrar
dois simples baques
em meu bolso.
eu sabia que seria marcado
sabia que todas as drogas freneticamente
circulavam em minhas veias
sabia que elas
e não os assassinos
ou mesmo os assassinatos
resolveriam tudo – e isso porque
antes de dormir
novamente
conversei com Jung.