Peça uma peça ( XVI )

Personagem começa a se lamentar  no palco, anda pela quitinete, mexendo os lábios, impaciente. Abre o forno do fogão e olha, enfia a cabeça dentro, grita: Conseguem me ouvir?? Abre a torneira da pia, lava as mãos, enxágua o rosto. Vai até a geladeira, pega a garrafa de vinho e segue bebendo no gargalo até a frente do palco. Gargalha. Coloca a garrafa em cima da mesa, pega seu caderno, folhei-a algumas páginas, até que encontra o que estava procurando e começa declamar:

Orgia de um homem só

Na frente do espelho, nua
Vira, desvira, lamenta e vibra
“O que você acha da minha bunda?” Pergunta
“Grande e mole” Respondo
“Sério?”
Vira-se, dobra o pescoço por cima do ombro direito, depois por cima do esquerdo
Apalpa as duas nádegas, como bolinha para estresse
“Merda” diz
“O que foi?”
“Grande e mole”
Desvira
“O que você acha dos meus peitos?”
“Médios e moles”
Ergue-os até perto do queixo, e prensa um contra o outro
Sorri, sabe que estou blefando com os peitos
Fica de perfil para o espelho, não tira o olho dele
Entorta-se um pouco, com as mãos na cintura
Levanta a perna esquerda, deixando o dedão do pé esquerdo tocando o chão, a ponta dele
“O que acha da minha perna esquerda?”
“Curta e grossa”
Pousa o pé esquerdo, troca de lado, faz o mesmo movimento com pé direito
“E minha perna direita?”
“Curta e grossa”
Vira-se de frente pro retângulo refletivo e joga os cabelos por cima dos peitos, alisa
“E meu cabelo?”
“Longos e encaracolados”
Levanto nu, coloco-me atrás dela, apalpo seus peitos por baixo dos cabelos
Como bolinha para estresse
“O que você acha do meu pau?”
“Curto e mole”
Puxo seus cabelos e cubro suas costas
Nua no espelho, eu a vejo, mas não me vejo
O reflexo é só dela
Parece um quadro, com tintas incandescentes
“O que você acha do meu pau agora?”
“Curto e duro”
E as cortinas permaneciam fechadas
Enquanto a intimidade fluía nos alicerces
Uma dose de intimidade compartilhada tem mais valor que uma garrafa de amor lacrada
E há tantos que amam por anos, e acabam como sapo e galinha
Provando perereca e medo, ganhando ovos e pedradas
E eu, todo desprovido de amor ferino, ainda a tenho íntima
E posso cerrar minhas cortinas
Sabendo que o amor não faria falta perto de nossas intimidades
Que as coisas sim
São síndromes definitivas ou temporárias
Mas que felizmente serão lembradas
Como agora

Joga o caderno sobre a cama e continua seu monólogo.

Peça uma peça ( XV )

Barulhos de uma pessoa subindo a escada em passos lentos, abre a porta, fecha.

Personagem fecha a geladeira e vai em direção à plateia novamente. E começa seu monólogo:

Pessoas andam sendo atacadas em uma pequena mata que se estende junto ao mangue perto do shopping. Não por coincidência, os macabros ataques acontecem no mesmo caminho que me leva ao trabalho. Faço isso há algum tempo já, todas as manhãs. No começo tive algumas dificuldades, não sabia ao certo as trilhas por entre as árvores, nem se pessoas andavam por ali, faziam piqueniques, estudavam plantas, fodiam, absolutamente nenhum dado físico eu tinha daquele lugar, mas resolvi confiar na imaginação, e por enquanto nada deu errado.  Meus crimes não saem nos jornais nem na televisão, pois sou um assassino em série, estuprador e torturador que usa o cérebro, somente ele. Nada de armas além de um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Não guardo remorsos nem troféus das vítimas. Elas fazem parte da câimbra sadomasoquista e sustentável que o mundo adquiriu. Todos os crimes acontecem por volta das 7:45 da manhã, pois devo estar no emprego às 8:00. Ninguém suspeita dessas minhas caretices matutinas. Chego no horário, sem sangue nas mãos, apenas outro cigarro aceso e uma leveza cruel recém mastigada. Tomo um café preto, às vezes forte, muitas vezes doce demais. Nem lembro o que fiz há poucos minutos atrás. Rio o máximo que posso, pois além de matar, é a única coisa que me coloca perto do equilíbrio pelo resto do dia. À noite bebo e escrevo poemas pelas memórias vivas.

Meu primeiro ataque foi desastroso. Eu caminhava às 7:45 pela calçada que delimita a entrada no matagal, com um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Uma mulher vinha pela ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra. Pedalava forte, dava impressão que sua velocidade era a mesma que a de uma kombi branca que trafegava no mesmo sentido. Talvez minha velocidade também fosse a mesma. Ela – a ciclista – parou há uns dez metros de mim, e vasculhava sua bolsa em busca de algo. Quando eu estava há uns três metros dela, percebi que era água o que ela procurava e já bebia. Aproximei-me com tranquilidade e falei:

– Quer vender a bicicleta?
– Quero – ela respondeu. Bebericou mais água. Eu suava, ela também, a kombi era rastro de fumaça.
– Quanto você quer pela bicicleta?
– R$ 100,00.
– Posso beber um pouco da água?
– Posso dar um pega nesse cigarro?

Trocamos gentilezas. Acabei com a água, ela acabou com o cigarro. Mas eu tinha mais cigarros e ela não tinha mais água. Seria fácil matá-la. Continuei o papo:

– Me diz uma coisa. Essa bicicleta é só para andar na cidade ou ela aguenta trilhas?
– Quanto você pesa?
– 83 quilos – respondi.
– Então aguenta. Ela suporta até 85 quilos em trilhas e 102 quilos na cidade.
– E se eu engordar três quilos? Perguntei.
– Anda na cidade.
– E se eu engordar vinte quilos? Perguntei.
– Aí você vende a bicicleta.
– Posso testar ela nas trilhas desse mato?
– Pode. Vou com você. Tem mais cigarros?
– Tenho.

Ofereci o maço. Ela saltou do banco e fui empurrando a bicicleta uns metros até achar uma abertura na mata, que de fato era uma trilha, na minha imaginação. No caminho ela pediu o isqueiro, me devolveu o maço, acendeu um cigarro e depois me devolveu o isqueiro.

Antes de sentar no banco lhe fiz mais perguntas:

– Como você sabe a carga máxima da bicicleta?
– Acho que li no manual.
– Então caso eu queira fazer uma trilha com alguém sentado no quadro, terei que emagrecer no mínimo trinta quilos!
– A não ser que amarre um bebê no quadro. Aí nem precisa perder tanta massa.
– Quanto você pesa?
– 50 quilos.
– Quanto é 50 + 83?
– Não sei.
– Vamos fazer o seguinte – continuei – se ela aguentar eu e você nessa trilha, lhe pago R$ 150,00. Se quebrar no caminho, compro por R$ 100,00 independente dos estragos. 
– Você não estaria ganhando nada com essa proposta – ela disse. R$ 100,00 é o valor que quero, assim como está.
– Posso ganhar a certeza que a carga da bicicleta em trilhas é 50 + 83 ou mais.
– Fechado então.

Subi no banco, ela no quadro, comecei pedalar. Seria fácil matá-la. Freei após uns três minutos na trilha.

– Preciso mijar – falei.
– Eu também. Muita água bebemos.    

 Me posicionei atrás de uma árvore e fingia que mijava, por outro lado, pude ouvir sua urina tocando as folhas no chão. Fingi mais, até balancei o pau seco. Aproximei-me enquanto ela ajeitava a calcinha. Agarrei-a por trás, com uma mão na boca e um braço em volta do pescoço. Minha inexperiência imaginativa fez com que ela conseguisse desvencilhar a boca e gritar uma reza doentia.

– ESTUPRE-ME! POR FAVOR, ESTUPRE-ME! IMPLORO! SÓ NÃO ME MATE!

Que coisa mais óbvia essas palavras, pensei, perdi o ânimo. Esvaziei os pneus da bicicleta, desconectei as espias dos freios, troquei as marchas. Estuprei sua bicicleta e cheguei ao trabalho às 8:00, sem sangue e nem graxa nas mãos. Tomei um café, doce demais naquele dia. 

Peça uma peça ( XIV )

Lê um poema que indica ser seu:

Ritmo sincronizado
Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
É uma loção para hemorroidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram pra fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível

Personagem abaixa o caderno, olha pra plateia e solta uma gargalhada que se estende enquanto ele joga o caderno em cima da cama e vai até a geladeira beber mais goles de vinho direto na garrafa.

Peça uma peça ( XIII )

Segundo ato – Assassino em série (Pequeno monólogo)

Cenário – Uma quitinete com fogão, pia, geladeira, mesa e uma cama

Luzes apagadas, sons de passos em escadas. Barulho de chave na fechadura e de porta abrindo e fechando. Personagem aperta o interruptor da quitinete e as luzes acendem no palco. Uma lâmpada com falha pisca de vez em quando durante o ato inteiro.

Personagem com uniforme de empresa terceirizada joga a chave em cima da mesa e senta na cama, tirando os sapatos.

Barulho de porcelanas quebrando e mulher gritando (personagem vai até a geladeira e bebe vinho direto da garrafa). O quebra quebra continua:

Voz de homem fora do palco (mesma voz do personagem que jogou xadrez no primeiro ato)

– Para de quebrar as coisas mulher! Já não temos nada! Só porque estrago sua vida acha justo estragar a minha?

Silêncio.

Personagem volta a sentar na cama e pega um caderno, onde abre e parece ler.

Voz de homem fora do palco (mesma voz do personagem que jogou xadrez no primeiro ato)

– Você é louca!!

Barulho de porta abrindo e passos apressados na escada.
Barulho de porta fechada com violência.

Voz de mulher fora do palco

– Eu te mato!!

Passos apressados na escada. Silêncio. Personagem se levanta e vai de encontro à plateia com o caderno na mão.

Janela indiscreta

Ela limpa suas escadas
Como quem enverniza o Sol
Ou escreve de trás pra frente
Com grafite na língua
Seu pijama por dentro das meias de lã
Inspira o inverno a doer sem culpa
As árvores negras de papelão
Soltam folhas de baixo para cima
Subindo como penas em travesseiros molhados
Se a Lua vem da Ásia, em Campos
Aqui ela jorra escarlate nas pontas dos cabelos
E ninguém pisa sem anunciar os pés

Segura seu bebê alugado
Para que ele trepide junto com a rua
Nessa aquarela barulhenta cheia de anjos sem cores
Escondo-me atrás da cortina
Empunhando um copo de whisky com coca, meu bebê alugado
Acabei de comprar trinta ovos brancos por 7,99
E recebi a notícia que um conhecido matou-se enforcado e sentado
A vida insiste em ficar por perto

Peça uma peça ( XII )

Após poucos minutos, com as cortinas fechadas para a montagem do segundo cenário e as luzes acesas, o mesmo bêbado que surgiu durante o Ato, surge pelo lado, na frente das cortinas, com a garrafa de plástico na mão e meio confuso olhando para as cortinas.  Ele cambaleia, coça a cabeça, olha em direção à plateia, olha para as cortinas fechadas, dá um gole na cachaça, e estupefato vai dizendo coisas do tipo: “Mas que diabos?!”, “Tinha uma praça aqui”, “Cadê a praça?”. Cambaleando vai até a divisa das cortinas e bota só a cabeça pra investigar. Continua olhando pra dentro: “Ei, você, não tinha uma praça aqui?”, “Ei, ei, ei”. Ele entra para trás das cortinas e prossegue procurando a praça, conversando supostamente com quem organiza o próximo cenário. Esbraveja: “Tinha uma praça aqui!”. Surge a voz de um homem, que parece interagir com o bêbado: “O camarada, me ajuda aqui a levantar essa geladeira”. O bêbado responde: “Não, não quero trabalhar, tô procurando a praça”. O homem rebate: “Larga essa garrafa no chão e pega desse lado aí”. Ambos fazem sons de fazendo força, o bêbado resmungando “Não tinha uma praça aqui?”. Após alocarem a geladeira homem agradece: “Obrigado, camarada”. O bêbado vai transitando por trás das cortinas, ainda falando: “Era aqui, tenho certeza”, “Mas que diabos”. Silêncio por alguns instantes. O bêbado surge do lado oposto de onde entrou, ainda na frente das cortinas fechadas. Ele está usando o chapéu do malabarista do primeiro ato, numa das mãos a garrafa e na outra um facão também do malabarista (deixar visto pro público). Ainda confuso, vagarosamente atravessa o palco até sumir.

Peça uma peça ( XI )

As conversas cessam fora do palco. O personagem aciona o relógio novamente e continua diálogo:

– Devo admitir que foram grandes vitórias as suas.

Plic.

– Passado.
– Qual é seu enxadrista preferido?
– Fischer e o seu?
– Paul Morphy.
– Ambos incríveis e meteóricos. Acho que se vivessem na mesma época, plantariam flores no jardim da casa do Bobby e beberiam chá até os noventa anos. Sabe como é, doidos se entendem.

Plic.

– Concordo. Você só tem mais cinco minutos no relógio.
– É o suficiente pra ganhar.

O morador se aproxima e senta no banco do adversário imaginário, o personagem para o relógio e o fita.

– E aí pai, ganhando? Pergunta o morador

O personagem não responde, só alcança o maço de cigarros, e o morador repete a cena, coloca um em cada orelha e um na boca, devolve o maço. O personagem pega e acende o cigarro com um fósforo. Morador traga e diz:

– Olha essa moreninha gostosinha passando (personagem olha em direção pra onde olha o morador). Ai, ai. Chupava inteira. PSIIIIIIT..PSIIIIT…EI POTRANCA, TE CHUPAVA INTEIRA….PSIIIIIT….PSIIIITT….EEEEEIIII….VAI A MERDA CASQUEIRA.
– Belo rabo – responde o personagem.

Morador levanta e sai do palco. Personagem aciona o relógio e começa pensar na partida.

A mesma criança volta correndo e para ao lado da mesa:

– Tio, me ensina jogar? Pergunta o menino.
– Não enche, pilantrinha. Estou pensando.
– É. Se manda moleque.

Criança começa chorar:

– Ainnnn…Brrrrrr…Buá, Buá, Buá.
– Vai chorar pra lá, porra!
– É. Some daqui.

Criança sai correndo.

Personagem começa a jogar mais rapidamente e continua falando (transeuntes passam pelo fundo):

Plic,Plic,Plic,Plic,Plic…demora um pouco…Plic.

– Agora está em maus lençóis.
– Nem tanto. Teu peão cravado em d6 compensa.
– Fiquei com o bispo bom.
– Incapaz de tirar meu cavalo de d5. Tenho mais tempo no relógio. Ganharei no tempo. 
– Duvido. Ainda tenho dois minutos e você cinco.

Plic,Plic.

– Já esperava por esse é?!
– Imaginei que tentaria abrir essa coluna.
– Meu plano não era esse haha. Muito pelo contrário, meu plano é esse sacrifício de cavalo.

Plic,Plic.

– Sempre soube desse plano. Mas é furado.
– Aé?! Vamos ver então.

(batidas altas e baixas no relógio) Personagem fica tenso, final de partida:

Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,PLIC,Plic,
“Merda”,Plic,Plic,Plic,Plic,“Cacete”,
Plic,PLIC,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,
Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque-mate”,“Merda”

Personagem se joga pra trás com as mãos na cabeça. Partida termina.

– Não era furado o sacrifício.
– Sorte sua.
– Mais uma?
– Vou embora. Quem sabe amanhã se eu passar por aqui.
– Como se chama?

As luzes se apagam. O narrador diz:

Sirene de polícia no vácuo dos becos abafando a sonoridade pitoresca. Versatilidade espontânea nas solas dos pés. O craqueiro confuso corre pra dentro da catedral. O menino grita ao lado da mesa de dominó. porque acabou a rapadura no momento exato em que o vencedor ficou sem pedras. O vendedor de loteria sai da pastelaria e ajeita o boné. Coça as pernas e causa dúvidas. Era melhor ter nascido rico do que bonito (voz do cadeirante). A sirene vai ficando cada vez mais baixa, até que todos esquecem o perigo. Disparates viscosos na primeira curva. A porta não tem maçaneta mas abre com o vento. O vapor quente não seca o suor e sim espalha as gotículas. A tarde ainda seria longa, mas nada aconteceria.  


Fim do primeiro Ato.

Peça uma peça ( X )

Novamente as luzes se apagam e o narrador diz:

Pombos atrozes e vigaristas entre transeuntes, magnífica convivência singular. Poeira nos olhos, grudada nos chinelos, dentro do caldo de cana, dentro dos corpos úmidos. Calamidade são aranhas voadoras. O menino tenta aprender dominó, mas só sabe contar até cinco, então dão-lhe uns trocados para comprar chocolate, mas se engana de barraca. Os taxistas erguem as mangas das camisetas, um é tatuado e não usa meias. A magnitude é volátil, trabalhadores consertam um cano cavoucando a calçada, o craqueiro seduz o vendedor de picolés, enquanto o pombo defeca sobre o banco de pedras.

As luzes se acendem e o personagem aparece voltando comendo uma rapadura. Senta no banco e percebe as peças fora do lugar. Olha para os lados, e começa a montar a posição como estava. Percebe o cavalo branco faltando, então olha pro chão e nota-o, recolocando no tabuleiro.

Personagem continua diálogo com adversário imaginário:

– Foi comprar essa rapadura onde? No México?
– Tinha uma baranga burra de dar febre na minha frente. Levou rapadura pro ano todo. Não jogou ainda?

Personagem faz um lance. Plic. Continua diálogo:

– Ganhou de algum dos três jogadores de nível internacional?
– Ganhei de dois, mas também perdi para os três. Um, andei lendo notícias ultimamente, tornou-se o mais jovem brasileiro a conseguir a norma de Grande Mestre Internacional. Quando enfrentei-o pela primeira vez era apenas Mestre FIDE. Perdi. Lembro-me vagamente daquela partida, foi a que melhor joguei contra ele, nas outras duas vezes passei vergonha, fui judiado como um peru de guri novo. Outro também era Mestre FIDE quando venci, pura sorte, estava mais perdido que papagaio mudo na posição, mas encontrei um golpe tático e ele caiu como amador. Em outras ocasiões fui triturado. Já com o terceiro, joguei duas, ganhei a primeira, perdi a segunda.

De fora do palco barulhos de gente trabalhando, britadeira, gritos, o personagem para o relógio e observa a situação que ocorre fora do palco (diálogos dos trabalhadores):

– O que tá fazendo aí cara?
– Estourou essa merda aqui!
– Deixa vazar.
– Seu doido!
– Amanhã os caras resolvem.
– Eu trabalho amanhã.
– Mas eu não.
– O Arnaldo me pega pelo pescoço
– O Arnaldo vai entrar de férias, acha que tá ligando? Vamos rangar ali na pastelaria, nem almocei hoje.

Voz do cadeirante também fora do palco:

–  E aí guerreiros, comprar uma trimania?
– Faaaallaa Robocop!!
– Quanto tá pagando?
– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios – Responde o cadeirante.
– Qual valor?
– Dez pila

Cadeirante grita anunciando a loteria “Olha a trimania, vamos comprar, vamos comprar que tá acabando”

– Robocop, bora ali na pastelaria. Deixa isso aí que os caras resolvem amanhã.

Peça uma peça ( IX )

Uma voz feminina fora do palco chama pelo nome da criança, que sai correndo em direção a ela, deixando o cavalo branco no chão. Um homem sem camisa atravessa o palco correndo. Logo atrás um policial faz o mesmo, depois o cadeirante também, em alta velocidade. Ouve-se tiros e alguns gritos. O morador corre até o meio do palco, e observa o que acontece fora dele. Resmunga baixo, desaprovando algo. Caminha até a frente do palco, na frente da mesa e faz sinais de que está chamando alguém na direção da plateia. Assovia. Grita: Eeei!!! Eeei!!! Preciso falar contigo!!

Resmunga novamente, aparentemente sem resposta. Senta em um banco ainda de frente pra plateia, retira uma bergamota do bolso e começa descascar jogando as cascas no chão. Um malabarista com a cara pintada e chapéu carregando três facões para no centro do palco, atrás da mesa, e começa fazer malabarismo com os facões. O morador se vira para ver, chupando a bergamota e cuspindo as sementes no chão. Alguns transeuntes com medo dos facões começam a desviar do malabarista. Passam pela frente da mesa e alguns bem no fundo do palco, olhando com olhares assustados. Outros param para ver. O malabarista deixa um facão cair no final da apresentação, recolhe-o, e saúda alguns espectadores com uma reverência. Depois retira seu chapéu e vai na direção deles para que coloquem dinheiro dentro dele. Todos os espectadores se dissipam sem dar nada.

O morador chama o malabarista, que vem até ele.

– Porra irmão, ia te dar cinquenta reais se não deixasse aquele facão cair no final – diz o morador.
– Quê?! Pergunta o malabarista desconfiado.
– Olha só cara. Você está fazendo isso errado. Essas pessoas te acham uma sanguessuga, e eles não deixam alguém assim como você sugar o dinheirinho deles, eles preferem serem comidos pelos patrões, entende? O que você vai fazer daqui pra frente é o seguinte. Escolha uma esquina da cidade, movimentada, e fique nela durante três meses, todos os dias. Faça teu malabarismo como nunca fez, aperfeiçoe, e ao acabar, não vá pedir dinheiro, porque é isso que eles esperam, porque eles são assim, tudo que fazem colocam preços. Apenas cumprimente os motoristas da primeira fila, saia andando e sente ao lado da rua. Mostre superioridade, eles amam isso. Logo, logo, sua fama irá se espalhar. Chegarão em rodas de amigos e esposas e citarão você. “Vocês viram aquele paspalho que faz malabarismo de graça no sol e na chuva? Como alguém consegue fazer isso?” Sem demora alguns vão te chamar pra lhe dar alguns trocados pela janela e te apertarão a mão, vão querer te igualar a eles, cada vez mais. Você se tornará personalidade, aquela esquina ficará congestionada, haverá palmas, você será um herói, dando alegria para humanos de graça, tipo Deus.
– E como eu faço pra comer nos primeiros meses?
– Sei lá. Corta cana.
– Tá maluco?!

Malabarista sai do palco por um lado e o morador pelo outro.

Peça uma peça ( VIII )

Personagem faz um lance. Plic. Prossegue o diálogo.

– Se era o melhor da equipe não deveria ter parado. Ligar uma moto qualquer um consegue, agora ser um bom jogador de xadrez é muito difícil.
– Fazer o quê?! Quero ser um qualquer. Essa disparidade fictícia entre pessoas não me interessa. Se nascer um jegue azul, os humanos acham extraordinário, mas para os outros jegues é simplesmente um jegue. Disso que estou falando, penso como um jegue. Pra finalizar esse assunto meu caro, experimente somente um dia amarrar três molas de caminhão nos pedais de uma moto e sair andando.

Plic.

– Não entendi o que quis dizer, mas enfim. Chegou a jogar contra atletas de nível internacional?
– Sim, se não me engano foram três.
– Vou pensar um pouco para o próximo lance. Depois continuo o assunto.
– Certo. Vou até ali comprar uma rapadura. Quer também?
– Não, obrigado.

O personagem sai do palco, fica somente a criança e a mesa com o tabuleiro. Ela vai circulando a mesa deslumbrada, se aproxima e logo se afasta. Até que finalmente senta no banco do adversário imaginário. Ela pega peça por peça que alcança e analisa fascinada. (projetar o fundo novamente com a imagem do tabuleiro visto de cima). Após analisar bem a peça ela da umas gargalhadas regozijantes, e devolve a peça ao tabuleiro, algumas em posições diferentes de onde estavam. O fundo com o tabuleiro desaparece. A criança se levanta e vai sentar no banco do personagem. Pega somente um cavalo branco e começa a brincar com ele, fazendo-o cavalgar em cima da mesa. Desce do banco e faz ele cavalgar pelo chão.

O morador passa pelo fundo declamando esse poema:

Apesar,
As cores de um jardim calado
Entorpecem a aranha careca
As teias da subordinação são grossas
Como os caules da esperança
Insano cortejo da bilheteria
Seguindo um vestígio de soro marcado
A ferro, fogo, sintonia, artifícios
Tabaco, álcool, solventes, histeria
Coalhado, calado, qual lado
A corda estica?
Apesar,
Do sujo olhar do beija-flor
A pergunta é feita pelo Doutor M.
Flocos de madeira cristalizados
Caem sobre as sombras das viúvas ancestrais
Os bonecos de pedra sugam o descompasso
E equilibram a primavera abrindo a porta
Paro, a pesar
O nó da corda
Uma desobediência desiludida
Calcando a perfeição
No último minuto do relógio