eu leio sobre essa garota
que sai do banho envolta num roupão
folgado e preto
e se senta fumando em frente ao espelho,
e vagarosamente começa
a pentear seu cabelo
em movimentos longos, abrangentes
e ritmados, a escova vai descendo
e fazendo um mínimo chiado,
enquanto a fumaça
sobe calada.
e não preciso de mais nada
para vê-la feita em minha frente.
eu posso até sentir o cheiro
de seu cabelo, o calor daquele cigarro
e é surreal quando acontece;
depois de tanto tempo distantes,
porque lembrar faz parte
mas reviver, reviver é tão raro
quanto viver, ou nesse caso;
se queimar com aquele cigarro,
ainda hoje, ainda
aceso.
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Pigarro
Entreguei um bilhete premiado
A uma pomba que levou-o até o paraíso
Lá rejeitado, ela o trouxe de volta
Com um pequeno recado
Que li pela metade, antes de lançá-lo
Pelas frestas do muro
Ela disse:
“O único jeito de não se atrasar, é andando devagar”
Atirei-a pelas frestas do muro
Algumas penas ainda me fizeram espirrar
Olhei em círculos
As sombras das árvores ainda dançavam aquela recente música
Que faz o chão secar espremido
Entre o céu e um piscar de olhos
Os 365 pedidos
Calcados embaixo dos pés da cama
Meus preferidos no pé direto da cabeceira
Os outros sem preferência
Apenas uma dose quase nula de satisfação
Tropico no violão desafinado
Deixado ali por um mestre de artes marciais careca
O som faz as sombras se abraçarem em folhas
A pomba do outro lado do muro ouve
Ela grita para eu ouvir:
“O único jeito de não desafinar, é tocando devagar”
Atiro o violão pelas frestas do muro
Ele cai do outro lado afinado
Embora, sem uma corda que parou na passagem
A mais grossa
Que uso para amarrar duas sombras de duas sombras
No pé direto da minha cabeceira
Elas não são minhas preferidas
Mas detestam o espelho
No eclipse total
Ouço uma voz imponente
Que surge pelas frestas do muro
Com eco e tom lascivo
“Um homem torna-se homem, tornando devagaaaaar”
“Pomba filha da puta!”
Joguei-me pelas frestas do muro
Minha pele ficou
E rastejou-se para a dança
Do outro lado, sob o corpo imóvel da velha ave
O bilhete premiado
Com o recado que li por completo dessa vez:
“Comece um poema, depois comece uma guerra contra ele. Termine um poema, e sua pele jamais será a mesma”
mosca de bar
encontrei um bar
um bar onde as moscas
desenham sua merda
e se banham em seu próprio
vômito
eu bebo e observo
elas são tão incrivelmente
autossuficientes
e vomitam em tantas cores
diferentes
que não ouso mover
merda alguma de lugar
seja defecada ou desenhada
mesmo quando
elas já se foram
e eu
permaneço.
PE: 2ª Edição da Revista LiteraLivre
apogeu
eu estava sozinho há tanto tempo
que quando ela apareceu
desconfiei
e inevitavelmente pensei
“eu não atraio pessoas
muito menos
pessoas que me atraem”
mas ela continuava a cada nova aparição
se mostrando mais gentil
e extremamente interessada
como se eu fosse o escolhido
“não pode ser coisa dEle (quem?)
deve ser
de Dante” – imaginei
em todo caso
não consegui evitá-la
era como lutar para não respirar
como entrar em greve de fome
quando finalmente
resolvem te alimentar
e ela permanecia aparecendo
nas horas mais inesperadas do dia
da noite, ou da madrugada
“coincidência” – dizia ela
antes de se abrir em sorrisos orgásticos
e foi assim que ela me fisgou
suprindo um anseio que sempre tive
e que jamais havia sido suprido
com seus trejeitos e seu perfume
docemente fatal
eu caí feito uma mosca morta
em sua teia irresistível
e foi assim que ela me levou
a Senhora Morte
e foi assim que o perdedor
enfim
venceu.
π
Quando as palavras saíam com as portas abertas
Meus ouvidos eram solitárias, com apenas um condenado
Hoje um simples sussurro desmonta meu exército
Porém os ventos desviam esta condição
É assim no litoral
Quisera eu seu amanhã,
Para fazer valer o seu ontem e mudar meu presente com presentes
Meus caros agradecimentos mudos
tarde quente
enjoado das moscas da casa
fui para o bar no meio da tarde
e logo depois de pedir
minha cerveja, à avistei;
essa adorável senhora
de uns 73 anos..
eu a fiquei encarando por horas,
imaginando o que faria
quando chegasse a essa idade
fiquei pensando com quem treparia
e se ainda treparia,
fiquei pensando
um milhão de outras merdas,
até que ela se levantou
veio em minha direção
e se sentou junto a mim.
não disse nada,
apenas encheu meu copo
com sua cerveja
e assim permanecemos,
em silencio, bebendo
como dois cúmplices da morte.
bebi toda cerveja, ela encheu
novamente o copo que esvaziei
e assim a cena se repetiu
por vezes.. até o momento
em que eu não estava mais
bem certo de muita coisa
e me levantei para ir ao banheiro.
ela veio atrás. eu estava exausto
demais para me virar
e pedir que não
me acompanhasse.
entrei no banheiro e ela entrou
logo atrás.. não liguei.
abri a braguilha e comecei
a mijar.. mal havia começado
quando senti suas pequenas
e enrugadas mãos
em cima do meu pau.. tudo bem,
tudo bem, pensei..
larguei em suas mãos
e continuei mijando..
mijei por alguns minutos,
sem problemas.. digamos que ela
segurava bem, apesar da idade..
terminei de mijar.. ela chacoalhou
com experiência que não havia
de faltar.. eu me virei e me sentei
na privada encardida.. ela se ajoelhou
no piso imundo do banheiro
e fez questão de tirar toda minha calça
antes de se jogar de boca..
com movimentos pesados e quentes
luxos de uma boca já quase
sem dentes. eu pouco liguei,
estava tão distante de tudo e todos
que apenas fechei os olhos
e me recolhi em meu canto..
pensei em todos os pombos
de asas quebradas,
nos cachorros abandonados, presos
em suas coleiras no meio do nada
sem comida e no cio,
lembrei das mulheres
que me rejeitaram e das poucas
que rejeitei.. das mulheres que desejei
mesmo que uma única vez,
até que voltando a mim
no calor das emoções humanas
enchi sua boca com minha porra
quente e vermelha que ela
fez questão de engolir.
em seguida me beijou na boca
e foi embora sem dizer uma única
abóbora..
depois disso,
nunca mais a vi.
mas ela me marcou
com a esperança de que dias
melhores podem vir
assim, em qualquer tarde,
em qualquer
idade.
Três dias
Vi anjos de plástico
Assim como vi o pau de plástico
Ela acreditava que o bicho papão
Tinha oito dedos em cada mão
Falei que tinha matado o danado
Com uma pistola d’água cheia de vinagre
É sério, ela disse
Vi o picareta tentando mostrar o dedo do meio
Mas ele tinha oito e não tinha um dedo do meio
Ora ora mulher, que siririca desperdiçou
Siririca – confessou – pra mim é como um carburador velho
Só fede e não liga
Meu negócio é língua
Língua áspera e grossa
Rachada e cheia de cores
Por todo autódromo
Deve ser mais lisa que uma capa de livro
Nada! Nunca me depilei, acho desnecessário
Sou natural como o brilho nos olhos do canário
Natural como a carne nas gengivas do tubarão
E o bicho papão
Você quer mais uma bebida?
Por favor
A vela sete dias estava no sexto
A faca no chão tinha sangue seco na ponta
O incenso fedia canela
TV ligada no último volume
Contando um fato de lástima racional
Tremendamente constrangido
Por fazer aniversário ali
E como presente
Uma torrada de querosene
Saudei os anjos e o pau de plástico
Facas e os rasgos no sofá
Privada entupida
Gatos boiando na piscina
Mãe morta após uma temporada familiar
Fumaça dentro da geladeira
Cheiro de sapo nos travesseiros
Cobertores com figuras do arco-íris
Pantufas dentro do plástico
Calcinhas em pó de neve
Boquete enquanto segurava um peido
Nossos sabores não se entrelaçaram
Não à toa
Meses depois
Quando passou de carro e grasnou em filtro branco
Circulando a rótula pra voltar
Me escondi dentro de um banheiro de posto
O único brilho natural que eu carregava
Era uma moeda da Argentina
Vapores, vapores
Caçando as amígdalas e as mariposas
Em casa após três dias do aniversário
Comi dois ovos cozidos
Sentei pra escrever
Mas não saiu nada
Imaginei o bicho papão de oito dedos
Entalhado na parede
Mostrei-lhe o dedo do meio
E uma lágrima solitária
Caiu dentro do copo
somente ratos
o lixo transborda
a cozinha já é refúgio para os ratos desabrigados
e mais do que minhas meias e cuecas
a privada fede
e escorre
escorre
escorre
o piso está grudento
guimbas de cigarro se misturam
sentimentalmente
com o mijo dos ratos escondidos no sofá
lembrando dos pulmões afetados
eles estão por tudo
poucos vivos – preciso avisar
a maioria já foi vencida pelo tempo
pelo tédio
enjoados da cerveja derramada pelos amigos
ou inimigos
enojados pelo descaso
perplexos com a convivência estabelecida
tudo fede nesta casa
esteja morto ou vivo
estamos tão cheios da mesma merda
que tenho tido medo de fechar os olhos
afinal
cedo ou tarde
quando tento inutilmente dormir
feito um rato
com medo de minhas próprias armadilhas
todos acabam caindo na ratoeira
cedo ou tarde
no mais tardar
hoje à noite.
Osmose
Enquanto a cerveja desce gelada:
Sou a Suprema Corte
Réu
Promotor
Juiz
Testemunha
Defesa
Vítima
Fiança
Prova
Circunstância
Protesto!
Indeferido
Indefinido
Enquanto a cerveja desce gelada
Ainda sou o veredicto
De uma vida criminosa sem crimes
Culpado!
Coitado
O réu tem algo a declarar?
Sim, Meritíssimo
Tem três segundos
Quem são vocês que sempre aparecem enquanto a cerveja desce gelada?
Levem-no!
Leve-me!
Levei-me!
Ao palco
E alguém assustadoramente parecido comigo gritou:
Tirem esse cara daí!!!
Tirei-me
Sentei entre a plateia
Aguardei as cortinas abrirem
E o espetáculo terminar
Sem aplausos
Por hoje
