A lagoa proibida matou o “calcanhar de índio”
Afogado
Um jovem epilético apaixonado por caminhões de madeira (miniaturas)
Que trabalhou comigo por alguns meses
E teve ataques carregando o próprio suor
Ele se foi como uma pedra de gelo no chá quente
Soube que enquanto vivo
Entrava em viaturas policiais (outra paixão)
E denunciava todos traficantes do bairro pesado onde morava
Nunca cansou de apanhar no dia seguinte
Sua paixão não era párea para eles
Jurado de morte após as surras
Ainda saía com suas calças largas e curtas
Cantando a única canção que havia decorado:
“Naquela tarde
Que a poeira firmava meus pés no chinelo
O odor das plantas era verde
Palavras surdas enlouqueciam o martelo
O próprio instinto sendo manipulado
Naquela tarde
Naquela tarde
Onde os espinhos me faziam voltar
Para o cochilo colorido da multidão
Em segredo eu perdia a próxima refeição
Num céu irrisório e vermelho sangue
Acima das cobiças de um cego na pista de boliche
Naquela tarde
Sons eram gestos
E a repudia tornou-se pele
Como um rio doce encontrando o mar
Repudia breve com um filhote na forca
Pras próximas tardes
Naquela tarde
O Sol diminuiu
A chuva perdeu o gosto
Os zumbidos foram altos
Mas as bromélias continuavam estáticas
Apontando pra baixo
Como se guiassem
Minhas próximas tardes
E naquela tarde
Povoei todos meus dias
Sem notar
Sem querer”
Sempre era o primeiro a chegar ao trabalho
Ou pelo menos o primeiro daqueles tratados como números
E têm seus nomes apenas como frações de força
“Calcanhar de índio” afirmava incisivamente
Ter trepado com duas prostitutas no centro
Por R$ 60,00
Embora ninguém acreditasse nisso
Não no preço
Lembro de seus olhos ao contar a história
Eles quase lacrimejavam seu sêmen
Eu sabia que seus R$ 60,00
Foram praquele caminhão estacionado
Sobre a cômoda
Os R$ 60,00 eram sua fiança
E mesmo tendo que ouvir todas aquelas risadas
Ele dava de ombros e sorria de lado
Sem justificar as viaturas e o cheiro da madeira em seus dedos
Praqueles homens,
Que de uma forma ou de outra
Mantém seus calcanhares
Imersos no âmago
Da suscetibilidade imolada
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lucro líquido
já tem alguns dias
alguém vem usando o banheiro
aqui em casa. não sei quem ou porquê
até consigo imaginar o motivo
mas não o estrábico
intruso. só sei que toda manhã
tenho vivenciado o mesmo estrago:
esse corvo bicando minha janela
revivendo Hitchcock
e uma bela urinada na parede
confirmando minha sorte.
hoje cedo, enquanto ainda matutava
buscando resolver o mistério
ao abrir a janela, vacilei
e distraído o corvo me levou um olho
na tardinha, tudo pairava indefinido
eu ainda não tinha resolvido
o problema do banheiro muito menos
o do olho, quando ele voltou e levou
meu segundo sapato
me deixando descalço
e ainda mais,
curioso.
Fotografia de um cotidiano vagabundo
Que novela, bem em frente
Um pombo e uma pomba
Pelo tamanho, ela era a toda branca, ele um panda com asas
Nunca vi tamanha indiferença de uma pomba
Impondo um desejo de paz, e ele apenas um desesperado
Ela o deixou sem migalhas e seguiu seu caminho balançando o pescoço
Sem voar, pedindo carona pro céu
Ele era um belo pombo, muitas manchas negras, grande
E não estava ali para comer
Sucumbiu ao desprezo e começou a bicar o asfalto quente
Num ato de penitência
Pensei em oferecer um cigarro, algumas palavras de conforto
Ou até mesmo deixá-lo cagar na minha cabeça
Eu queria me comunicar com ele
Falar pra tentar aquela pardoca que tomava um banho de poeira do outro lado da rua
Em sinais discretos com os dedos eu dizia:
“Não se culpe amigo, no seu lugar muitos enlouquecem, e tudo isso é por nada. Está tudo bem”
Pensei que ele alçaria vôo antes de eu entrar no mercado
Por isso fiquei ali para me despedir, mas ele permanecia ali
Andando em círculos, embaixo de um sol escaldante e em cima de um asfalto cozido
Pensei comigo: “Era o que faltava, mais um pombo pirado por perto”
Se ele permitisse cagaria nele, só para lembrá-lo que sua diversão ainda não tinha terminado
Que agonia não poder olhar para seus dois olhos ao mesmo tempo
Me aproximei o máximo que pude, e antes de alcançar o céu meio desajeitado, ele soltou um som de pombo, mais pra dentro que pra fora
Como se estivesse me dizendo: “Você escreve pois não sabe voar”
Orgia de um homem só
Na frente do espelho, nua
Vira, desvira, lamenta e vibra
“O que você acha da minha bunda?” Pergunta
“Grande e mole” Respondo
“Sério?”
Vira-se, dobra o pescoço por cima do ombro direito, depois por cima do esquerdo
Apalpa as duas nádegas, como bolinha para estresse
“Merda” diz
“O que foi?”
“Grande e mole”
Desvira
“O que você acha dos meus peitos?”
“Médios e moles”
Ergue-os até perto do queixo, e prensa um contra o outro
Sorri, sabe que estou blefando com os peitos
Fica de perfil para o espelho, não tira o olho dele
Entorta-se um pouco, com as mãos na cintura
Levanta a perna esquerda, deixando o dedão do pé esquerdo tocando o chão, a ponta dele
“O que acha da minha perna esquerda?”
“Curta e grossa”
Pousa o pé esquerdo, troca de lado, faz o mesmo movimento com pé direito
“E minha perna direita?”
“Curta e grossa”
Vira-se de frente pro retângulo refletivo e joga os cabelos por cima dos peitos, alisa
“E meu cabelo?”
“Longos e encaracolados”
Levanto nu, me coloco atrás dela, apalpo seus peitos por baixo dos cabelos
Como bolinha para estresse
“O que você acha do meu pau?”
“Curto e mole”
Puxo seus cabelos e cubro suas costas
Nua no espelho, eu a vejo, mas não me vejo
O reflexo é só dela
Parece um quadro, com tintas incandescentes
“O que você acha do meu pau agora?”
“Curto e duro”
E as cortinas permaneciam fechadas
Enquanto a intimidade fluía nos alicerces
Uma dose de intimidade compartilhada tem mais valor que uma garrafa de amor lacrada
E há tantos que amam por anos, e acabam como sapo e galinha
Provando perereca e medo, ganhando ovos e pedradas
E eu, todo desprovido de amor ferino, ainda a tenho íntima
E posso cerrar minhas cortinas
Sabendo que o amor não faria falta perto de nossas intimidades
Que as coisas sim
São síndromes definitivas ou temporárias
Mas que felizmente serão lembradas
Como agora
PE: Ritmo Sincronizado por Marcos Antônio
quarto fato
avó safada
também
mostarda
-se.
Granada
Da mancha no olho casto
Do prurido na pele branca
Dos calos relevantes no pé 33
Das paisagens que sobram na cama
Leio Azevedo por 3,99
O primeiro livro vendido no bazar
Segundo a caixa
Pedido de ordem nas cruzadas
Não sei a capital do Líbano
Sugiro Lindóia do Sul
Muita letra
“Não sei”, por fim, nos une
Uníssonos
Tocamos cabelos e formigas
Nas paredes mofadas
Nos panos de pia
No pacote de lixo
Na folhagem que atrai abelhas
Nas folhagens que nos une
Que regamos com suco de limão
E adubamos com erva molhada
Assim sentamos à margem
Das tristes notícias do erro comum
Das traças viciadas em naftalina
Dos equívocos das tesouras com ponta
Do nome no lápis sem ponta
Da taça trincada por um erro comum
Dos beijos si-lá-bi-cos
Voltamos a caminhar
Torcemos nossos corpos
Na quina do sofá
Na porta do box
Achamos engraçado esse porte de arma
Quebramos, esparramamos
Os cacos da porcelana verde por dentro
Vamos embora, vamos embora
Nosso chão tem carvão em brasa
Nossos símbolos vestem chapéu
Nossa ternura usa bigode
Nossas extravagâncias estão no sótão
Deixo a toalha de banho marcada de cera
Uso dois pingos de gel
Repito a cueca
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)
Cheio de ilustrações geométricas
Mas saem voando, capazes de orbitar
Vamos embora, vamos embora
Ela deixa rastros de primavera pela casa
Ela queima como um verão bêbado
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego
Seus cigarros ardem como incenso
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca
Das patrulhas pelas travessas
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol
Da noite que embrulha a ópera
Dos centímetros que separam metros
Do último furo no cinto
O álibi como um simples não
À margem, à margem
De um confuso ato
Os espelhos podem marinar
A recompensa que nunca acaba
Ela já está dormindo
Minha lira de 29 anos
consciência apurada
alguns poemas se perdem feito consciência
no sábado à noite, e nunca mais
são recuperados.
em mais uma noite
mal iluminada pelos observadores
postes, movimento meus pés
repetidas vezes, saindo do lugar
decidido a ser alguém
melhor.
já não posso mais.
preciso largar o cigarro
o trago, a erva
a putaria, os tecos
os baques
e todos os outros
vícios.
preciso ter horários
preciso ter amigos
preciso ver meus
filhos
PRECISO MUDAR!
preciso incluir comida
no cardápio diário
compartilhar com a mesma mulher
um almoço farto
alimentar o gato
com comida de gato
no fim das contas;
viver uma vida
mais digna.
afinal, que sujeito ébrio
tenho sido? quem foi
que ainda
não desrespeitei?
quem sou eu
para o gato que atualmente
mudou de cardápio?
e para o rato
que desamarrou
meu cadarço?
no caminho do trabalho,
que já não percorro há alguns dias,
começo a seguir um homem.
um sujeito aparentemente
normal.
com passos precisos
parece saber onde quer
chegar – e isso muito me atrai
por isso apresso o passo
ainda mais
visto que ele caminha rápido
lembrando bem
minhas próprias passadas
meu próprio
ritmo,
a diferença;
parece saber
onde vai – definitivamente
por isso continuo seguindo-o
disfarçadamente
não ousando se quer
tirar as mãos sujas
dos bolsos furados.
preciso ver
onde este homem vai chegar
e como vai se salvar.
eu verdadeiramente não sei o motivo
mas não consigo evitar
sinto que preciso aprender algo
com ele
parece ser a única saída
por isso aperto novamente o passo
quando o vejo
sem nenhuma dificuldade
adentrar em um ônibus
todo vermelho.
eu grito com o motorista
que fechou a porta na minha cara
chuto a porta, faço o diabo
e então ele a abre
novamente, embora que me ignorando
totalmente, como se
eu fosse invisível, ainda assim
antes que eu possa dizer
qualquer coisa
ele me comunica sem dizer
uma única palavra:
“permitimos animais
porém jamais
uma consciência
apurada”
sem reação, observo o ônibus partir
lentamente, a ponto de conseguir ler
em sua lateral em letras sinceras
e amarelas:
ser “normal” é o ideal
dos que não tem
êxito.
John está morto
Foi intencional até certo ponto
Acreditem
Uma questão de sobrevivência avessa
Suicida convicto, chegou aos 30
Sem motivos, segundo sua consciência
Pra viver, pra morrer, pra nada
Mulher com 26, filha com 5
John queria morrer
A única questão que o impedia
Era não saber o real motivo
Esse era o crime para John
Não saber intrinsecamente
O motivo do desejo cadavérico
Tantas foram as regressões
Mas ele sempre via-se “normal”
Em todas fases
Em todas faces
Seu rosto não demonstrava anomalias adotadas
Corria, brincava
Chorava, mamava
Não nos seios de sua mãe
Que não tinha leite
Mamava a vizinha
Mãe de seu melhor amigo por 10 anos
Masturbava-se, media o pau
Comia as primas, rezava de joelhos
Para seu time ganhar
Quebrava os braços, roubava chocolate
Matava pássaros, fazia aviões de papel
Cagava nas fraldas, cagava nas calças
Cagava em qualquer lugar
John insistia nas regressões
Exigia um bom motivo para matar-se
Ia para a igreja, beijava a avó por pressão
Invejava Maicon, amava Cristine
A professora do primário
Fantasiava heróis, odiava ler
Pensou ser comediante, apanhou na cara
Sangrou e ficou envergonhado
Ganhou gincanas, riu de deficientes
Bebia cerveja com açúcar, borrava cuecas
Não tratava o cachorro, tinha ereções com desenhos animados
Broxava com Aline, perdia fichas no fliperama
Porém John desistiu das regressões aos 30
Decidiu criar seu próprio argumento válido
Cortou o pescoço da filha de 5 anos
Deixou jorrar
Queimou o corpo na churrasqueira, foi até a cozinha
A ponta da faca dando voltas em seu pescoço
Sem tocá-lo
Ainda não conseguia
Sua filha em cinzas e em nuvens carregadas não o convenceram
Fez o mesmo com a mulher
Mas uma força incrédula mantinha-o inerte
Amolecendo seus dedos
Largou a faca
Mesmo tendo matado a própria família
Continuava com o devasso vazio
O vazio que o impedia de morrer
A barbaridade de seus atos daquele dia
Em vão, em vão, em vão
Desvanecendo entre lacunas desconhecidas
Fato é, John não desistiu
Cinco dias depois frequentava boates diariamente
Traçando o que podia
Liberando sua mesquinharia estimada
Tudo pelo vírus
Queria e precisava saboreá-lo
Cinco meses passaram até confirmar
Tinha AIDS
Sigilosamente ficou sabendo o resultado
Chorou em frente ao médico
Que entendeu as lágrimas distorcidamente
Em casa, com o resultado aberto sobre o sofá
Regozijou abastecendo o 38, bala por bala
Embora só precisasse uma
O barulho delas entrando no tambor
Significava o fim da busca
Ao que parecia, nada mais justo
Combinar morte lenta e morte breve
Com o cano na fonte, fechou os olhos
Não sentiu um pingo de medo
Coçou a barba, engatilhou o ferro
Retesado mais uma vez
Descobriu-se insatisfeito
Incompleto
Incapaz de puxar o gatilho por aquilo
Um vírus apenas, como a gripe
Pegou o resultado e engoliu sem mastigar
Dirigiu-se até a garagem
Trouxe o machado para a sala
Abaixou as roupas debaixo
Excitou-se com Cristine
Prostrada sobre sua mesa escolar
E com um golpe de machado
Viu seu pênis rolar ainda duro
Pegou-o na mão e mordeu
Desmaiou
Acordou no susto minutos depois
Ainda rejeitado no clube
Correu estancar o sangue
Visualizou seu corpo quase sem cor
Precisava saber o motivo
E agora sem pênis
Faria sentido
Morri porque perdi o pau
Isso que pensava ainda precavido
Impossibilitado
Mate-me John suplicava
Esqueça o porque
Mortes não exigem justificativas
Não! John respondia-se
Busco isso por anos
Agora que criei coragem vou encontrar
Novamente o cano na fonte mostrou-se infrutífero
E de repente percebeu
Que não ter motivos para morrer
Era o maior para matar-se
Finalmente
Saiu de casa e jogou-se de um sétimo andar
Acabou em uma cadeira de rodas
Deu-se um tiro e ficou cego
Bebeu ácido e perdeu todos os dentes
Descobriram seus crimes
Morreu na cadeia
Ninguém sabe como
no frescor da doença
tornou-se
retardado
mentol.
