Trapaça

O tempo perdido, uma prostituta de fundo falso
Lowell, como um gambá, traçou minha garota
Mordeu minhas costas, roubou meus poemas
Fugiu acenando e confessou-se
Numa tribo que comia minhocas
Essa vizinha nova insiste em desligar meu ventilador
Enquanto durmo ao lado das latas de tinta
Ela diz que se quisesse ouvir um vento artificial
Teria sopro no coração ou uma buzina nos mamilos
Com um tiro de sinalizador dentro da boca
Reivindico o direito de ficar calado
Até que a sorte nos separe
O rabo do lagarto
Contorce-se mais solto
Do que unido
A sobrevivência preserva a toca
O rabo do lagarto
É um batom vermelho  na ponta do alfinete
O rabo do lagarto
É a segunda descarga no banheiro público
Poeira e carvão no marfim inalado
Eu estive longe nessa semana longa
Absorvi o mínimo do ópio
Que as vozes viciam
Minhas cinzas grudaram nos dejetos
O  tomate pela metade
Atirei nas costas do gato
Que cagava na sacada
Agora me faz falta

Zoometarquia

Chinelos vermelhos
Tramas na geladeira
Quinta da carne
Terça das verduras
Papai e mamãe perderam a posição
Há sangue nas gavetas
Quarta do frango
Sexta da cerveja
Há umbigos roçando desonestos
Cristina chora no quarto escuro
Ao lado da goteira, afirmando:
“O mundo perdeu-se por andar em círculos”
Domingo teatro
Segunda folga
Feriados, sacolas cheias de água
Chico empresta dinheiro para a esposa
Com juros abusivos
Há um frasco de remédio vazio
Pendurado como um guarda-chuva
Na hélice do helicóptero
Urubus são anjos que deram certo
Sábado
A colheita, a colheita, a colheita
Dias, sabores
Quinta da carne
Terça das verduras
Kama sutra além do livro de receitas para colorir
Ingredientes sem giz de cera
Carnes, verduras
Tramas na geladeira
Chinelos vermelhos
O palhaço do semáforo
Após deixar seu nariz de plástico cair
Embute:
“Contudo,
Com nada
Se perde tudo”
Eu deixei as moedas em casa hoje

Quinhão

Quietos
Recebo uma baforada de cigarro na cara
E logo após, uma risada branca, iluminada
“Hahahaha, vi Oz!”
Não reajo
Não tiro os olhos da sombra
Na parede
Os botões secos dos lírios mortos
Criam essa face
Soprando um apito
“Vi Oz! Tenho um pedido!”
O vento balança o pote cheio de terra
Os lírios estão mortos mas dançam
O apito cai da boca
Volta pro nariz
A sombra jorra um líquido
O homem é banguela
E careca
Mesmo assim canta
Sem encostar a língua no céu da boca
“Tem o que?!” Pergunto
“Tenho um pedido Oz”
Quietos
As roupas estáticas no varal
Trégua
O apito na boca
“Que pedido?”
“Quero que mate uma barata”
No outro dia
Enquanto meus cabelos caíam
No chão do banheiro
E uma barata era velada
Dentro do lixo
Enrolada num papel higiênico
Eu lembrava daquela face
Apitando conforme o vento
E cantando sem tocar a língua no céu da boca:
“Os navios partiram deixando as âncoras
Somente quando quiserem atracar
Saberemos o peso delas”

eco verdadeiro

você acorda em meio ao nevoeiro
com Villa Lobos ecoando
em sua mente e
um cigarro pela metade
queimando pendurado no canto
da boca
e antes de descobrir
de onde vem a música
superior
você percebe que:
o que te alimenta
o que te mantém vivo
não só respirando, mas gritando
fodendo, resmungando
vivendo ou ao menos
tentando
o que te faz acordar
e ainda, levantar
da cama
mesmo nos dias de muito sol
e poucos cachorros
na rua, na lua
é também o que te mata
cada dia mais

mas é a vida, você bem sabe
por isso sorri sozinho
internamente – não facilita
sabe que teve sorte em achar
algo que te alimenta
verdadeiramente
algo que dinheiro algum
pode comprar
ou guia algum
te levar
algo que hoje já não existe mais
por si só – assim como você
de forma que morrer de fome
morando em uma caixa de papelão
lhe parece apenas mais uma
maneira de morrer
entre tantas
outras

então você aceita de bom grado
e brinda sozinho
enquanto a maioria simplesmente desiste
evitando viver
evitando morrer – é claro!
acabam por depositar suas vidas
em pequenas e insustentáveis
caixinhas de fósforo
que carregam por aí, em seus
limitados bolsos
caixas que serão protegidas até os últimos
dias
de chuva ou sol
até os últimos dias
de vida?

isso não interessa
nem ao mais desocupado
dos insetos
e você apenas agradece
pela Bachiana brasileira n° 4
mesmo não sabendo de onde
ela ecoa
exatamente.

Guizo

Trato
          Pacto
                     Ato
Eles mentem quando dizem que é o próximo da fila
Eles sucumbem perante uma cortina de ferro
Eles são ondas no aquário
As onças desconfiadas e desbotadas pela velhice
Suspeitam que valham menos que 50
Pagam pelo valor do troco
Dividir a dúvida pela dívida é uma dádiva duvidosa
Quantos já tentaram pisar na sombra da Lua
E caíram num buraco do espaço
Pombais, sótãos, quartos de vidro, coberturas amanteigadas
Asilos, monumentos, faixas pretas no cemitério das borboletas
Parto
          Parto
                    Parto
Resiliência como a arte de tornar-se impróprio
Eu sei, eu sei
Amanhã uma idosa de 80 anos falará com sua mãe
Uma coisa qualquer
E todos ao redor nem se darão conta
Que a vida pode ser realmente longa
Cheia de ninhos criados entre espaços de tempo livres e discretos
Raízes  que o Templo não apagará
Parto, trato
                     Parto, pacto
                                            Parto, ato
Assim parto
Devorando dentro de mim
A beleza do esquecimento

Ritmo Sincronizado

Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
É uma loção para hemorroidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram para fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível