Petardo

Meu nome deve ser Antônio, visto que todos me chamam de Tonho. E Tonho não é nome, ou ao menos, não deveria ser. Meu nome de fato, esqueci. Mas calculei e sei que existe oitenta e seis por centro de chance de ser Antônio. Então, pode me chamar de Antônio ou oitomeia. Ou Tonho, como todos me chamam. Isso caso precise me chamar, é claro.

– Tonho?

– Diga.

– Nada.

Segundos depois:

– Oitomeia?

– Que foi agora?

– Nada…

– Vá se foder, infeliz…

Minutos depois:

– Antônio?

– Vou te queimar o cu, desgraçado.

E o queimei, antes que viesse novamente com nada pra cima de mim.

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Só tenho um problema na vida e com a vida propriamente dita: SOY MUY LOCO. Loco de trincar as bochechas, cair o queixo e queimar o cu. Como dizem as boas ou más-línguas, tanto faz.

Ontem mesmo botei fogo lá no barraco. Queimei mulher, filho, cachorro, gato, canário, eucalipto, rato, barata, buceta, cu, talco, palmilha fedorenta, tênis furado, fogão podre, geladeira estragada, colchão duro e colchão mole, shampoo usado, mel de abelha, meia nova, bota velha, queimei tudo, tudinho. Não deixei nada de fora. Nada pra virar história. Nenhuma prova pra crime algum.

Hediondo mesmo é deixar vestígio.

Por isso foi tudo apagado. Até as plantas que a ordinária mantinha no quintal, joguei tudo pra dentro e toquei fogo. Foi mosquito e dengue no mesmo churrasco. E tudo porque não aguentava mais ouvir vossas lamentações. Era todo dia a mesma história:

“Tonho, temos fome. Tonho, temos frio.”

Como se eu fosse Deus pra controlar o clima ou multiplicar os pães. Ó, Deus, quanta lamentação ouvi daquelas malditas bocas. Era fome e frio dia e noite, noite e dia e vice-versa, quando não era o contrário.

Foi por isso, inclusive, que antes de queimar geral, enfiei toda comida que encontrei no barraco, em seus rabos. No rabo da minha mulher, óbvio, coube muito. Couve-flor tinha bastante e couve também. Mas foi de tudo. Foi de rabada a rabanete. Foi de borbulhar o cintilante opaco e quebradiço da maldita.

Com ela foi com ódio mesmo, visto que sua vozinha de laringe já não saia da minha cabeça.

“Tonho, você é o responsável e o irresponsável por tudo. Tonho, temos fome. Tonho, temos frio. Tonho, Tonho, Tonho…”

Não aguentava mais ser Tonho. Queria ser outro. Qualquer outro pobre diabo. Já sonhava há muito com o dia da libertação, assim, confesso. Foi tudo calculado, planejado e friamente, inevitável.

Depois que toquei fogo no barraco, me sentei no asfalto e fiquei só admirando as labaredas quentes e macias que subiam nos mais diversos formatos. A fumaça esticando até as nuvens, os desenhos que se formavam acima de toda aquela cena.

Aquilo me fez um bem danado.

Senti cheiro de frango assado e brócolis escaldado. Cheiro de buceta, de cachorro queimado, quem sabe até de cachorro-quente, de sovaco de borracha e pão de batata. Tudo queimando, tudo queimando. Até que veio a chuva e lavou a todos com uma grande lágrima quente e confortável no canto do olho.

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Hoje, depois de tudo, fechei os olhos e revivi cada detalhe. Pude até sentir o gosto salgado da lágrima despejada pelos céus em nosso encontro, mas não antes de sentir seu calor em minha face gelada.

O momento todo se fez em minha cabeça. Os cheiros voltaram ainda mais fortes e as imagens ainda mais vivas, como se tudo tivesse ocorrido hoje, embora ontem tenha sido.

O crepitar se apresentando ainda mais alto e nítido aos meus ouvidos, me deixou eufórico por uns bons momentos.

Ainda assim, não podia voltar lá para contemplar da forma como gostaria. Foi por isso, por todas estas boas lembranças, e, principalmente por não ter como aparecer por lá outra vez, que acabei ateando fogo naquela senhorinha hoje cedo. Claro que, não foi só por isso…

Primeiro pedi uma carona e fui completamente ignorado:

– Carona, velhota?

– Além de velha é surda?

– Vou te queimar o cu, velhota maldita.

Ela vinha em um Fusca 66, cor-de-rosa, rodas pretas e sem calotas. E vinha praticamente na mesma velocidade que eu vinha. Sou rápido, sim, mas nem tanto. Ela que vinha em marcha lenta.

Foi por isso que pedi carona. Caso estivesse mais rápida ou mais lenta, não pediria. Afinal, não queria mudar de velocidade, apenas continuar no mesmo ritmo, porém, poupando a sola dos sapatos e ganhando algumas tragadas de cigarro.

Mas ignorado e ignorante, permaneci passo a roda a seu lado. Embora não me respondesse em momento algum, continuei questionando.

Ela é uma predadora. Foi o que conclui após 42 km ao lado do Fusca e, em consequência, da velhota.

Como havia chego ao meu destino e a velha iria continuar sem supervisão, ateei fogo no Fusca com a velha presa ao cinto. Se tivesse gentilmente me dado carona eu pensaria até duas vezes antes de fechar o cinto.

No fundo, só queria relembrar meu filho, minha esposa, meu cachorro, meu gato, o canário, dos cheiros, da fumaça, de ontem, da iluminação, do milagre, da salvação, de mim.


Labaredas passageiras,

é isso que tenho.

Nunca duradouras,

é isso que tenho.

Desejo de arder no fogo,

é isso que tenho.

Desejo de fazer com que ardam no fogo,

é isso que tenho.


Tenho muito, tenho de sobra. Por isso continuo na busca eterna pela Luz? Eterna não digo, afinal, sou muito preguiçoso. Mas continuo na busca, ainda assim. Mas só porque tenho muito.

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Parei na estrada. Meus pés doíam e meu estômago ululava sem parar.

Almocei carne de alce ao molho de batatas deslizadas no leite condensado caramelizado com flocos crocantes e coberto com o mais puro leite de vaca magra e doente. Foi quase um chokito leptospiroso. E por isso me lembrei da velha queimada no Fusca rosa. Mas nem isso pra me animar.

A sombra do incêndio me consumia dos ossos pra fora. E isso realmente dói.

E embora soubesse que amanhã outras mulheres e filhos queimariam, hoje estava difícil. Então resolvi fazer, como dizem por aí, por aqui e por acolá: uma loucurinha bê-á-bá.

Levantei o som no volume máximo de forma a ensurdecer todos ao meu redor. Funcionou. Rapidamente estavam todos sintonizados no som azul celeste ecoante e aí, bom, foi até sacanagem. Simplesmente os tinha na palma de minhas mãos. De forma que foi inevitável não dar um pulo com direito a soco no ar no melhor estilo Maradona brasileiro, esmagando a todos.

Todos esmagados na palma de minhas mãos e nada de me sentir melhor.

Freneticamente minha mente seguia no ritmo da música. E a saudade. Ah, como estava com saudades. Saudades do gato, do cachorro, do canário, do tênis macio e quentinho, do fogão conhecido, do mel da abelha, da abelha e seu mel.

Só não sentia saudade das vozes.

E agora já não precisava das vozes. Eu tinha algo maior, muito maior. Eu tinha música. Uma frenética e contagiante música de tambores berimbaus e oboés. Das guitarras a baixos, muito baixos e até altos. Com bateria reversa. Onde o baterista sempre toca de costas e no escuro, sem se importar com baquetas ou banquinhos. Toca de pé, no escuro e de costas. Grande baterista reverso.

Mas sem vocal. Nunca tem vocal. Nunca tem porque quem deveria cantar sou eu & eu sempre estou ocupado. Ocupado em ouvir a música esqueço de cantar. É impossível criar quando não se para de contemplar. Jamais conseguirei. É impossível não se entregar aos prazeres da carne, da mesma forma. Então, tentar se controlar me parece apenas mais uma forma de perder o meu tempo, com corda ou sem corda? Oh, discórdia.

E que o som continue, sem voz alguma, sem vocal algum. Porque o importante é seguir, seja como for. Não é mesmo? Nem sempre, talvez. Então, assim, repetireis:

– Posso queimar teu cu?

– Não.

– Por quê?

– Por quê? Cê tá maluco?

– Não. Mas eu preciso. Precisamos de um vocal sem cu e você canta bem.

– Obrigado. Mas, não. Obrigado.

– E se não te queimar o cu, cantas?

– Também não.


E o queimei o cu.

Mas com motivo ou razão, ou ambos. Triste foi que perdemos outro bom vocal.

E não me alegrei novamente. Mas nada me alegraria tão cedo, ao menos até o final do almoço, quem sabe da sobremesa ou mesmo da tarde. Doce ilusão seria pensar diferente. Por isso ainda sentado à mesa, escrevi em meio aos pratos sujos um poema para minha finada esposa:


entrei na gaiola do louro,

você lembra?

ele me ignorou por um bom tempo,

mas eu sabia,

sabia sim,

que seu jogo era esse,

primeiro me atrair para sua gaiola,

depois me ignorar,

frio,

simplesmente frio e perturbador…

.

abri a portinha da gaiola e a chamei,

você lembra?

venha comigo, eu disse,

e você veio,

entrou e dançou,

dissimulada,                                                                                      

bailou em seu vestido cinza de cigarros,

marcou a mim e ao louro,

fria e calculadamente…

.

precisas lembrar,

pois você queria cantar,

queria dançar,

e com ele aprendeu,

e depois me arrastou,

você lembra?

.

agora cante e dance na gaiola,

se você lembrar,

ela está pendurada no topo,

se você recordar,

abaixo só o fogo,

para vos queimar,

por isso agora,

com o louro, o cachorro, o gato,

nosso filho, o canário

meu tênis macio, a geladeira fodida

o fogão sem boca,

a ovelha sem cu,

arda por inteiro,

se você restar…

.

você resta?

espero que sim.


Não gosto do resultado e mando tudo para o quinto dos infernos. Endereçado, contudo, somente o poema para minha amada queimada. Que permanece a balançar na gaiola sobre o fogo. Queimando ou não. Realmente não sei. Apenas desejo que sim. Em silêncio, a partir de agora.

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