A noite de quarta
estrelada
como pingos de tinta fresca
que mancham a tela negra de um pintor boêmio
que implora inspiração divina para que, finalmente, escoe por seus dedos uma obra,
não necessariamente prima,
apenas uma obra,
que possa trazer alguns trocados para sustentar seus vícios.
Todos na casa já estão dormindo,
a única certeza que tenho até então é que será uma daquelas noites quentes de insônia.
Entro pela porta da frente e caminho lentamente até o quarto onde estão dormindo minha filha e esposa,
beijo o rosto de uma, e a testa doutra.
Volto então ao quintal e sento em uma daquelas cadeiras de praia,
apesar de não ser um daqueles admiradores assíduos da natureza,
volto a olhar para cima.
Esse céu realmente está fantástico!
Se fumasse,
aposto que seria o momento perfeito para uma bela tragada.
Que privilegiado sou eu!
Mesmo que por 5 dias no ano, aqui estou, com minha família,
em um lugar esplêndido como esse,
logo eu,
logo de onde vim.
Até poucos anos atrás o mais distante que conseguia estar eram a 2 ou 3 metros dos abraços de minha mãe.
Minha mãe!
Será que ela está bem essa noite?
Já dormiu ou está com a mesma insônia do filho, ou quem sabe uma pior…
Quão privilegiado sou eu diante minha mãe!
Começo a fazer planos, contas,
preciso trazê-la aqui um dia.
Preciso trazê-la logo, antes que seja tarde demais,
e eu tenha que carregar mais um peso que minhas costas, já não tão jovens, possam suportar…
Já não consigo aproveitar o luar,
nem me sinto privilegiado ou sortudo,
apenas penso, penso e tento me concentrar em não pensar.
Preciso trocar pensamentos por passos!
Assim que eu funciono.
Levanto-me da cadeira,
dou a última olhada para o céu e saio,
sem pretensões,
não quero ver o mar,
nem conhecer novas pessoas,
quero apenas sentir se as noites estreladas da aqui
tem o mesmo gosto das de lá.
O chão arenoso,
típico de cidade litorânea
agarra meus chinelos,
os grãos de areia fazem uma fina camada entre eles e meus pés.
Quanto mais eu ando, mais desconforto aquilo me causa.
Por mais estranho que possa parecer
acelero ainda mais meus passos,
concentrar-me no desconforto dos pés, parece por um instante aliviar o desconforto que aqueles pensamentos recentes estavam causando.
Pelo caminho encontro um pequeno bar,
penso em pedir apenas uma água,
mas quando chego até o atendente mudo a pedida:
Uma cerveja por favor
Vai beber aqui?
Vou sim, quero também uma coca cola.
Dou uma breve passada de olhos pelo ambiente,
jovens seguram em uma das mãos sua bebida, noutra revezam grandes mangueiras negras que expelem uma fumaça densa.
Se fumasse, certamente seria um bom lugar para tragar meu cigarro!
Dirijo-me à parte externa do bar,
sento-me em um banco de madeira longo,
abro a cerveja,
encho meio copo,
abro a coca e o completo.
O atendente me olha de um jeito estranho,
penso que a ideia inicial da água poderia ter sido melhor…
Dou o primeiro gole e fico ouvindo aquelas pessoas falarem, e por Deus, como gosto de fazer isso!
As conversas são trocadas com a rapidez de seus goles e suas tragadas,
namoros mal-sucedidos,
empregos ruins,
roupas caras,
brincos e pulseiras,
investimentos tentadores!
Que maravilha!
Por um instante passa pela minha cabeça,
“se fosse mais sociável encostaria esse velho banco de madeira em uma dessas mesas”.
Mas que assunto trago eu que poderia interessar a eles?
Quem sabe queiram saber quantas batidas por minuto o coração de um homem saudável de 35 anos poderia dar.
Ou então quais os sintomas iniciais de uma pessoas com esclerose.
Já sei, que tal quais tipos de câncer acometem mais pessoas entre 30 e 40 anos…
Deixa pra lá.
Termino então aquele copo,
deixo a metade da cerveja na garrafa, e com um gole apenas termino de vez com a lata de coca.
Levanto e aceno com a mão para o atendente,
que retribui o gesto com o balançar da cabeça,
como um consentimento para que eu me retire do seu bar.
Volto então para casa,
exatamente pelo mesmo caminho,
torcendo para que aqueles grãos de areia voltem a trazer desconforto a meus pés,
e que ao menos por alguns segundos
me faça esquecer daquele outro desconforto,
causado por finos grãos de loucura que insistem em causar desconforto em meus pensamentos.