Peça uma peça ( XIX )

No terceiro dia eu tinha certeza que era 7:45 da manhã, enquanto carregava um cigarro na mão direita, pensava e ia a passos apressados  com minhas pernas longas ao trabalho. Chamou-me atenção um acidente envolvendo uma kombi branca e uma bicicleta na avenida. Aparentemente ninguém se feriu. A ciclista conferia os estragos da bicicleta parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, justamente onde o motorista avaliava a kombi estacionada. A lei não permite parar ali. Na kombi não aconteceu nada, nem arranhão. Pelo que consegui ver, os pneus da bicicleta estavam vazios, as espias dos freios desconectadas e as marchas todas trocadas. A ciclista abriu sua bolsa, retirou uma garrafa e deu um gole na água, ao que me viu passando.

– Quer comprar? Ela me perguntou rindo, apontando para a bicicleta.
– Hoje não – respondi.
– O cigarro mata – ela disse.
– Assim como as kombis.

Segui em linha reta na calçada que delimita a entrada no matagal. Um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos fez sinais que sugeriam para eu ouvi-lo.

– O que aconteceu ali? Perguntou.
– Nada demais – respondi.
– Sabe de alguém que queira comprar um terno? Tenho um aqui na mochila pra vender.
– Aquele motorista da kombi branca – eu disse.
– Vou falar com ele. Agradeceu a informação e recolocou os fones de ouvido.

Logo atrás do homem vinha uma velhinha sorrindo, segurando um pote cheio de terra com um girassol plantado nele. Não perdi tempo, velhos morrem facilmente. Fui em direção a ela esboçando um sorriso cativante e terno ao mesmo tempo. Queria passar essa combinação. Ela parou e sorriu mais ainda, mas era uma combinação que não consegui decifrar.

– Quer vender o girassol?
– Quero – ela respondeu e mudou a combinação do sorriso. Aquilo não me atrapalhava.
– Quanto a senhora quer por ele?
– R$ 50,00.
– Antes me diga uma coisa. Esse girassol gira mais rápido na calçada ou no mato?
– Conforme o Sol.
– E quando chove?
– Na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Gira mais rápido no mato.
– E quando chove no mato?
– Gira mais rápido na calçada.
– Entendi. Faremos uma aposta. Colocaremos esse girassol aqui na calçada e depois ali no mato. Quem adivinhar em qual dos lugares ele gira mais rápido fica com ele.
– Mas ele já é meu. Eu não ganho nada com essa aposta – a velha relutou. 
– Se eu perder, lhe pago os R$ 50,00 e a senhora pode ficar com a planta. Se eu ganhar, lhe pago os R$ 50,00 e fico com ele.
– Mas você não estaria ganhando nada com essa aposta – a velha disse. R$ 50,00 é o valor que quero dele agora. Paga, pega e depois você compara onde gira mais rápido.
– Dou R$ 30,00 se eu vencer a aposta.
– Assim sim – ela consentiu. – Parece justo. 

Primeiro deixamos na calçada. Ela cronometrou em seu relógio minúsculo do pulso esquerdo. Eu deveria ter tentando comprar o relógio. O negócio do girassol estava complicando minha imaginação.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata, ou uma trilha, tanto faz. Já era quase 8:00, tinha que acabar logo com aquilo, estava atrasado. Havia perdido muito tempo com a kombi, a ciclista e o homem de terno. Acelerei todo o processo e ao dar o primeiro gole no café, exatamente 8:01, a velha jazia morta com o girassol plantado na boca, girando à procura do Sol.

Personagem fecha os olhos. vai até a cama, senta, pega o caderno e dita o que escreve de lápis:

Recomeçar do zero a cada três dias.    

A lâmpada começa piscar sem parar, o personagem encara-a, até ela apagar completamente.

Luzes do palco se apagam. É possível ouvir ruídos de um choro de mulher.

Passos na escada, a porta abre e se fecha.

Fim do segundo ato

Peça uma peça ( XVIII )

Personagem se mostra satisfeito com a situação, vibra por seu ato descrito. Vai até a porta da quitinete calmamente e cola um ouvido nela. Barulho de gatos brigando. Personagem fica ouvindo até os sons pararem. Vai até a garrafa de vinho e bebe uns goles, depois pega seu caderno em cima da cama e escreve um pouco com um lápis. Folhei-a páginas, e de costas para a plateia começa a ler o seguinte texto (aos poucos vai caminhando pelo palco):

Carta ao suicídio
Caro confidente
Escrevo-lhe a partir daquela cautela exacerbada citada na última carta
Embora pareça que não pensei em você nos últimos meses
Ressalto, com minhas mais sinceras palavras
Que nunca estivemos em maior sintonia
Deixe-me contar algumas novidades
Antes que eu esqueça, sim, ainda sofro com sorrisos
No último contato não fui bem claro, até porque, imaginei-o também rindo da situação
Senti-me coagido pelo nível três, seu vizinho de porta
Mas quero esclarecer tais notas, antes das novidades
Pode não acreditar, porém, as mulheres têm sido ainda mais demonstrativas
Lembra daquela lésbica com fones nos ouvidos de quem falei?
Pois é, nunca mais a vi, e mesmo assim sua boca suspeita e aberta ainda me confronta
Sei que parece loucura não esquecer aquele riso
Mas permita-me salientar uma coisa
Foi na minha cara!
Por seis segundos
Sem contato visual, entretanto, o que mudaria?
Nada! Ela me deve explicações
Blá, blá, blá pra você também
Amigo, as mulheres estão me mostrando os dentes diariamente
Sei, sei, sei que tudo isso lhe parece estúpido
Não, não estão flertando, eu conheço um flerte
Esse conluio feminino me pegou desprevenido
Uma gordinha pálida e sem escrúpulos faz parte
E quer saber o pior, a vejo quase todas as manhãs
Imagino que trabalha aqui perto
É uma tortura, nunca mais olhei-a nos olhos
Ela me assusta
Pra finalizar esse assunto de mulheres
Rosana acha que sou assassino
Rosana trabalha no mesmo prédio que eu
Nunca falei com ela
Mas notei que deixou de ir ao banheiro quando bebo água
Como posso não ter razão? O bebedouro fica ao lado da porta!
Laura do supermercado me deu “Bom dia” com a voz baixa e depois riu brevemente
Percebi a maldade correndo pelas artérias dos olhos
Ahhh, mas nada comparado ao que Lúcia do mesmo supermercado fez
Perguntou-me se eu não gostaria de ter um cartão fidelidade para adquirir descontos!!
Impressionante não?!
Chega de mulheres, vamos às novidades
Fui estuprado enquanto dormia
Ora, não percebi porque estava bêbado!
Quatro vezes!!
Claro que não lembro, mas acordei em casa todas as vezes
Em três ocasiões não sei quem foi, na última foi um amigo
Que amigo ahn?
Não tenho provas, nas três primeiras vezes tenho certeza que foi alguém com uma cópia  da chave da casa, o antigo morador quem sabe?
Fui ver o preço de uma fechadura nova, mas decidi que pegaria o cara
Então montei uma armadilha na porta com duas garrafas de vinho e um banco
Fazem seis meses que aguardo o desgraçado tentar abrir a porta
Não preciso de provas! Afinal acordei sem cueca nas três vezes!
Na primeira vez estava no banheiro ao lado do papel higiênico
Na segunda sobre a pia da cozinha, e na terceira no lixo
Maldito doente!!
Meu amigo ao menos teve a decência de me vestir depois
Mais novidades?
Estão atirando pedras na minha sacada
Não falei pra ninguém, mas acho que isso tem a ver com os estupros
Assim como um pedaço de guardanapo que encontrei dentro do tênis
Quer mais provas que isso?
Tem sim!
Na última vez que peguei o ônibus um homem estranho disse me conhecer do trabalho
Jesus, era o antigo morador!
Estive tão perto dele, não sei como consegui perdê-lo
Não fui mais de ônibus trabalhar
Fiquei com medo de adquirir a síndrome de Estocolmo
Mas estou de olho
Bom, no mais, minha mulher me deixou por achar que bebo demais
Disse que crio teorias demasiadamente
Só porque tenho um histórico familiar de alcoolismo e hipocondria
Pode isso?
Queria que eu acreditasse em Deus e em todas suas baboseiras
Não sou tão ingênuo
Minha saúde continua a mesma, um câncer por dia, uma cura por dia
Analisei um catarro preto meu por vinte minutos
Nada de sangue!
Estou ótimo! Concorda?
Desculpe a demora, andei ocupado
Espero lhe encontrar o mais breve possível
Será um dia especial

Atira o caderno e o lápis sobre a cama e volta para continuar seu monólogo.  

Peça uma peça ( XVII )

Já na outra manhã tive êxito em matar. 7:45, um cigarro na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Vindo em minha direção na calçada que delimita a entrada no matagal, há uns vinte metros, um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos. Uma moça de bicicleta estava parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, procurando algo em sua bolsa. Ouvi um barulho alto de motor passando, era uma kombi branca. Vi que a moça retirou uma água da bolsa e dava goles desesperados. Parei perto dela e perguntei:

– Quer vender a bicicleta?

Ela engoliu o que tinha na boca e disse:

– Não. Tem um cigarro sobrando?
– É o último – respondi.

Ela foi e eu fui. Ao me aproximar do homem de terno fiz um sinal que sugeria tirar os fones e me ouvir:

– Quer vender o terno? Perguntei.
– Quero – ele respondeu.   
– Quanto você quer por ele?
– R$ 350,00.
– Me diz uma coisa. Se eu cair com esse terno aqui na calçada ou dentro do mato, vai rasgar?
– Depende. Quanto você pesa?
– 82 quilos. Perdi um quilo essa noite.
– Esse terno aguenta uma queda na calçada sem danificar vestido numa pessoa de até 95 quilos. No mato até 87 quilos não rasga.
– E se eu engordar seis quilos?
– Melhor cair na calçada.
– E se eu engordar quatorze quilos?
– Não caia mais.
– Costumo cair vestindo terno mais no mato. Quero testar antes de comprar. Posso vestir e cair aqui ao lado?
– Claro.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata. Ofereci um cigarro.

– Não fumo – ele disse.

 Três minutos pela trilha até pararmos. Vesti o terno que usava enquanto ele retirou da mochila outro terno e o vestiu também.

– Quer vender esse terno? Perguntei. Gostei mais desse que está usando agora.
– Esse não vendo.
– Por quê?
– Pois sua capacidade/quilo de não danificar em uma queda na calçada ou no mato é maior.
– Qual exatamente?
– Na calçada 110 quilos. No mato até 97 quilos.
– E como você sabe dessas capacidades/quilos dos ternos?
– Acho que li na garantia.
– E se por acaso um cachorro me morder? Vai rasgar?
– Te morder na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Vai depender do peso do animal.
– E no mato?
– Qual mato?
– Nesse.
– Nesse não vai rasgar.
– Entendi – falei. Mas não entendi. – Agora vou testar o terno.

Dei uns dez passos para trás enquanto ele observava.

– Vou fingir que corro de um cachorro em um daqueles matos, que segundo você, a mordida acabaria com minha roupa. Quando eu chegar perto de você me jogarei no chão simulando um tombo. Se não rasgar lhe pago R$ 400,00. Se rasgar, lhe pago R$ 350,00 independente do estado que ficar.
– Amigo, você não estaria ganhando nada com essa proposta – ele disse. R$ 350,00 é o valor que quero dele, assim como está.
– Mas terei uma boa ideia da velocidade que posso alcançar fugindo de um cachorro, sem riscos. 
– Fechado então – ele disse.

Disparei em alta velocidade nos dez passos de distancia dele, e ao invés de simular um tombo, acertei-lhe um soco direto na cara. O desgraçado saiu rolando na trilha, desmaiado, e só parou quando seu corpo mole esbarrou em uma árvore. Senti vontade de mijar e fiz isso na cara dele. Nem reagiu. Balancei o pau e umas gotas ainda caíram sobre seus olhos. Percebi um pequeno rasgo em seu terno, além de um botão danificado. Ainda bem que tinha garantia. Bati sua cabeça na árvore até abrir uma fenda larga na testa. Deixei-o com seus dois ternos e fui trabalhar. Cheguei ás 8:00 em ponto, sem sangue nas mãos. Bebi um bom café.

Peça uma peça ( XVI )

Personagem começa a se lamentar  no palco, anda pela quitinete, mexendo os lábios, impaciente. Abre o forno do fogão e olha, enfia a cabeça dentro, grita: Conseguem me ouvir?? Abre a torneira da pia, lava as mãos, enxágua o rosto. Vai até a geladeira, pega a garrafa de vinho e segue bebendo no gargalo até a frente do palco. Gargalha. Coloca a garrafa em cima da mesa, pega seu caderno, folhei-a algumas páginas, até que encontra o que estava procurando e começa declamar:

Orgia de um homem só

Na frente do espelho, nua
Vira, desvira, lamenta e vibra
“O que você acha da minha bunda?” Pergunta
“Grande e mole” Respondo
“Sério?”
Vira-se, dobra o pescoço por cima do ombro direito, depois por cima do esquerdo
Apalpa as duas nádegas, como bolinha para estresse
“Merda” diz
“O que foi?”
“Grande e mole”
Desvira
“O que você acha dos meus peitos?”
“Médios e moles”
Ergue-os até perto do queixo, e prensa um contra o outro
Sorri, sabe que estou blefando com os peitos
Fica de perfil para o espelho, não tira o olho dele
Entorta-se um pouco, com as mãos na cintura
Levanta a perna esquerda, deixando o dedão do pé esquerdo tocando o chão, a ponta dele
“O que acha da minha perna esquerda?”
“Curta e grossa”
Pousa o pé esquerdo, troca de lado, faz o mesmo movimento com pé direito
“E minha perna direita?”
“Curta e grossa”
Vira-se de frente pro retângulo refletivo e joga os cabelos por cima dos peitos, alisa
“E meu cabelo?”
“Longos e encaracolados”
Levanto nu, coloco-me atrás dela, apalpo seus peitos por baixo dos cabelos
Como bolinha para estresse
“O que você acha do meu pau?”
“Curto e mole”
Puxo seus cabelos e cubro suas costas
Nua no espelho, eu a vejo, mas não me vejo
O reflexo é só dela
Parece um quadro, com tintas incandescentes
“O que você acha do meu pau agora?”
“Curto e duro”
E as cortinas permaneciam fechadas
Enquanto a intimidade fluía nos alicerces
Uma dose de intimidade compartilhada tem mais valor que uma garrafa de amor lacrada
E há tantos que amam por anos, e acabam como sapo e galinha
Provando perereca e medo, ganhando ovos e pedradas
E eu, todo desprovido de amor ferino, ainda a tenho íntima
E posso cerrar minhas cortinas
Sabendo que o amor não faria falta perto de nossas intimidades
Que as coisas sim
São síndromes definitivas ou temporárias
Mas que felizmente serão lembradas
Como agora

Joga o caderno sobre a cama e continua seu monólogo.

Peça uma peça ( XV )

Barulhos de uma pessoa subindo a escada em passos lentos, abre a porta, fecha.

Personagem fecha a geladeira e vai em direção à plateia novamente. E começa seu monólogo:

Pessoas andam sendo atacadas em uma pequena mata que se estende junto ao mangue perto do shopping. Não por coincidência, os macabros ataques acontecem no mesmo caminho que me leva ao trabalho. Faço isso há algum tempo já, todas as manhãs. No começo tive algumas dificuldades, não sabia ao certo as trilhas por entre as árvores, nem se pessoas andavam por ali, faziam piqueniques, estudavam plantas, fodiam, absolutamente nenhum dado físico eu tinha daquele lugar, mas resolvi confiar na imaginação, e por enquanto nada deu errado.  Meus crimes não saem nos jornais nem na televisão, pois sou um assassino em série, estuprador e torturador que usa o cérebro, somente ele. Nada de armas além de um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Não guardo remorsos nem troféus das vítimas. Elas fazem parte da câimbra sadomasoquista e sustentável que o mundo adquiriu. Todos os crimes acontecem por volta das 7:45 da manhã, pois devo estar no emprego às 8:00. Ninguém suspeita dessas minhas caretices matutinas. Chego no horário, sem sangue nas mãos, apenas outro cigarro aceso e uma leveza cruel recém mastigada. Tomo um café preto, às vezes forte, muitas vezes doce demais. Nem lembro o que fiz há poucos minutos atrás. Rio o máximo que posso, pois além de matar, é a única coisa que me coloca perto do equilíbrio pelo resto do dia. À noite bebo e escrevo poemas pelas memórias vivas.

Meu primeiro ataque foi desastroso. Eu caminhava às 7:45 pela calçada que delimita a entrada no matagal, com um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Uma mulher vinha pela ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra. Pedalava forte, dava impressão que sua velocidade era a mesma que a de uma kombi branca que trafegava no mesmo sentido. Talvez minha velocidade também fosse a mesma. Ela – a ciclista – parou há uns dez metros de mim, e vasculhava sua bolsa em busca de algo. Quando eu estava há uns três metros dela, percebi que era água o que ela procurava e já bebia. Aproximei-me com tranquilidade e falei:

– Quer vender a bicicleta?
– Quero – ela respondeu. Bebericou mais água. Eu suava, ela também, a kombi era rastro de fumaça.
– Quanto você quer pela bicicleta?
– R$ 100,00.
– Posso beber um pouco da água?
– Posso dar um pega nesse cigarro?

Trocamos gentilezas. Acabei com a água, ela acabou com o cigarro. Mas eu tinha mais cigarros e ela não tinha mais água. Seria fácil matá-la. Continuei o papo:

– Me diz uma coisa. Essa bicicleta é só para andar na cidade ou ela aguenta trilhas?
– Quanto você pesa?
– 83 quilos – respondi.
– Então aguenta. Ela suporta até 85 quilos em trilhas e 102 quilos na cidade.
– E se eu engordar três quilos? Perguntei.
– Anda na cidade.
– E se eu engordar vinte quilos? Perguntei.
– Aí você vende a bicicleta.
– Posso testar ela nas trilhas desse mato?
– Pode. Vou com você. Tem mais cigarros?
– Tenho.

Ofereci o maço. Ela saltou do banco e fui empurrando a bicicleta uns metros até achar uma abertura na mata, que de fato era uma trilha, na minha imaginação. No caminho ela pediu o isqueiro, me devolveu o maço, acendeu um cigarro e depois me devolveu o isqueiro.

Antes de sentar no banco lhe fiz mais perguntas:

– Como você sabe a carga máxima da bicicleta?
– Acho que li no manual.
– Então caso eu queira fazer uma trilha com alguém sentado no quadro, terei que emagrecer no mínimo trinta quilos!
– A não ser que amarre um bebê no quadro. Aí nem precisa perder tanta massa.
– Quanto você pesa?
– 50 quilos.
– Quanto é 50 + 83?
– Não sei.
– Vamos fazer o seguinte – continuei – se ela aguentar eu e você nessa trilha, lhe pago R$ 150,00. Se quebrar no caminho, compro por R$ 100,00 independente dos estragos. 
– Você não estaria ganhando nada com essa proposta – ela disse. R$ 100,00 é o valor que quero, assim como está.
– Posso ganhar a certeza que a carga da bicicleta em trilhas é 50 + 83 ou mais.
– Fechado então.

Subi no banco, ela no quadro, comecei pedalar. Seria fácil matá-la. Freei após uns três minutos na trilha.

– Preciso mijar – falei.
– Eu também. Muita água bebemos.    

 Me posicionei atrás de uma árvore e fingia que mijava, por outro lado, pude ouvir sua urina tocando as folhas no chão. Fingi mais, até balancei o pau seco. Aproximei-me enquanto ela ajeitava a calcinha. Agarrei-a por trás, com uma mão na boca e um braço em volta do pescoço. Minha inexperiência imaginativa fez com que ela conseguisse desvencilhar a boca e gritar uma reza doentia.

– ESTUPRE-ME! POR FAVOR, ESTUPRE-ME! IMPLORO! SÓ NÃO ME MATE!

Que coisa mais óbvia essas palavras, pensei, perdi o ânimo. Esvaziei os pneus da bicicleta, desconectei as espias dos freios, troquei as marchas. Estuprei sua bicicleta e cheguei ao trabalho às 8:00, sem sangue e nem graxa nas mãos. Tomei um café, doce demais naquele dia. 

Peça uma peça ( XIV )

Lê um poema que indica ser seu:

Ritmo sincronizado
Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
É uma loção para hemorroidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram pra fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível

Personagem abaixa o caderno, olha pra plateia e solta uma gargalhada que se estende enquanto ele joga o caderno em cima da cama e vai até a geladeira beber mais goles de vinho direto na garrafa.

Peça uma peça ( XIII )

Segundo ato – Assassino em série (Pequeno monólogo)

Cenário – Uma quitinete com fogão, pia, geladeira, mesa e uma cama

Luzes apagadas, sons de passos em escadas. Barulho de chave na fechadura e de porta abrindo e fechando. Personagem aperta o interruptor da quitinete e as luzes acendem no palco. Uma lâmpada com falha pisca de vez em quando durante o ato inteiro.

Personagem com uniforme de empresa terceirizada joga a chave em cima da mesa e senta na cama, tirando os sapatos.

Barulho de porcelanas quebrando e mulher gritando (personagem vai até a geladeira e bebe vinho direto da garrafa). O quebra quebra continua:

Voz de homem fora do palco (mesma voz do personagem que jogou xadrez no primeiro ato)

– Para de quebrar as coisas mulher! Já não temos nada! Só porque estrago sua vida acha justo estragar a minha?

Silêncio.

Personagem volta a sentar na cama e pega um caderno, onde abre e parece ler.

Voz de homem fora do palco (mesma voz do personagem que jogou xadrez no primeiro ato)

– Você é louca!!

Barulho de porta abrindo e passos apressados na escada.
Barulho de porta fechada com violência.

Voz de mulher fora do palco

– Eu te mato!!

Passos apressados na escada. Silêncio. Personagem se levanta e vai de encontro à plateia com o caderno na mão.

Janela indiscreta

Ela limpa suas escadas
Como quem enverniza o Sol
Ou escreve de trás pra frente
Com grafite na língua
Seu pijama por dentro das meias de lã
Inspira o inverno a doer sem culpa
As árvores negras de papelão
Soltam folhas de baixo para cima
Subindo como penas em travesseiros molhados
Se a Lua vem da Ásia, em Campos
Aqui ela jorra escarlate nas pontas dos cabelos
E ninguém pisa sem anunciar os pés

Segura seu bebê alugado
Para que ele trepide junto com a rua
Nessa aquarela barulhenta cheia de anjos sem cores
Escondo-me atrás da cortina
Empunhando um copo de whisky com coca, meu bebê alugado
Acabei de comprar trinta ovos brancos por 7,99
E recebi a notícia que um conhecido matou-se enforcado e sentado
A vida insiste em ficar por perto

Peça uma peça ( XII )

Após poucos minutos, com as cortinas fechadas para a montagem do segundo cenário e as luzes acesas, o mesmo bêbado que surgiu durante o Ato, surge pelo lado, na frente das cortinas, com a garrafa de plástico na mão e meio confuso olhando para as cortinas.  Ele cambaleia, coça a cabeça, olha em direção à plateia, olha para as cortinas fechadas, dá um gole na cachaça, e estupefato vai dizendo coisas do tipo: “Mas que diabos?!”, “Tinha uma praça aqui”, “Cadê a praça?”. Cambaleando vai até a divisa das cortinas e bota só a cabeça pra investigar. Continua olhando pra dentro: “Ei, você, não tinha uma praça aqui?”, “Ei, ei, ei”. Ele entra para trás das cortinas e prossegue procurando a praça, conversando supostamente com quem organiza o próximo cenário. Esbraveja: “Tinha uma praça aqui!”. Surge a voz de um homem, que parece interagir com o bêbado: “O camarada, me ajuda aqui a levantar essa geladeira”. O bêbado responde: “Não, não quero trabalhar, tô procurando a praça”. O homem rebate: “Larga essa garrafa no chão e pega desse lado aí”. Ambos fazem sons de fazendo força, o bêbado resmungando “Não tinha uma praça aqui?”. Após alocarem a geladeira homem agradece: “Obrigado, camarada”. O bêbado vai transitando por trás das cortinas, ainda falando: “Era aqui, tenho certeza”, “Mas que diabos”. Silêncio por alguns instantes. O bêbado surge do lado oposto de onde entrou, ainda na frente das cortinas fechadas. Ele está usando o chapéu do malabarista do primeiro ato, numa das mãos a garrafa e na outra um facão também do malabarista (deixar visto pro público). Ainda confuso, vagarosamente atravessa o palco até sumir.