Cada

Conheci um cadáver
Que tentava grudar carne podre com fita crepe
Nos dias mais quentes do ano
Era possível vê-lo com todos aqueles pedaços de fita úmidos e sujos
Semi ou quase totalmente rasgados, amarelados, esverdeados, azuis também
Segurando uma porção de pele, falanges, lóbulos, etc
Como fedia o pobre diabo a partir dos 50 graus
Na segunda semana de agosto encontrei-o dando comida aos pombos elétricos
Pensei em seguir adiante, pois o relógio digital marcava 67 graus
Pelo que diziam os meteorologistas, era um fenômeno raro aquela temperatura
Tinha ouvido isso no rádio, no intervalo entre as músicas:
“Barbarella” e “Deshacer el mundo”
Inclusive, fazia oito anos que não ligava o rádio
Tinha perdido o T
A voz do locutor me fez lembrar o primeiro arroto que ouvi de mamãe
Assustadora no começo, mas confortável e confortante com o tempo
Vesti minhas duas blusas de lã para garantir, estava saindo de um resfriado
Comi um figo e fui passear
Baixei a cabeça quando percebi o “Cada” jogando pilhas ao redor das margaridas
“Ei Bili!” ele gritou ao me ver
Bili sempre foi meu apelido por conta da semelhança física com “Billy Cativo”
O último jogador de Damas ainda vivo
A cidade inteira me conhecia por Bili, menos papai
Para papai era ainda, somente e para sempre Jonas Bello
“Cada! Alguma novidade?”
“Estou com três fitas novas!” Ele disse erguendo uma mão e as duas sobrancelhas
“Está melhor que um fantoche” respondi.
“O que é um fantoche?”
“É um boneco leproso”
“Bili, venha aqui perto”
“Para?”
“Quero desabafar”
“Desabafe daí”
“ESTOU PREOCUPADO COM MINHAS BOLAS!”
“Não se preocupe e não grite”
“Acha que a fita crepe é capaz de suspender minhas bolas?”
“Se não pesarem meio quilo cada uma acredito que sim”
“Estou pensando em por uma na ponta do nariz e a outra na testa”
“Boa ideia. Por que não tenta a fita dupla face?”
“Sou alérgico”
“E a fita dupla face orgânica, sem glúten e sem conservantes?”
“Diabetes”
“Venda as bolas, oras”
“Quer comprar?”
“Quanto cada uma?”
“Cem cruzeiros”
“Jogue-as aqui, quero ver”
“Mas não soltaram ainda Bili. Estou me precavendo”
“Não deve ser tão difícil arrancar uma. Falando nisso, lembrei que preciso de um tornozelo”
“Meus tornozelos estão ótimos, não quero vendê-los”
“Parei aqui por sua causa, vamos negociar!”
“Tenho esse cotovelo que a fita crepe não segura mais”
“Cotovelos são difíceis de revender. Em que ano acha que estamos? Qualquer um nasce com um cotovelo extra hoje”
“Um rim?”
“Um rim? Tá brincando comigo??”
“Porra Bili, me ajuda”
“Teu umbigo é pra dentro ou pra fora?”
“Era pra dentro, agora já caiu, mas a fita ainda segura”
“E quer que eu te ajude? Como estão os mamilos?”
“Pendurados”
“Me venda um câncer então!!!!”
“Uooooooooooouuuuu Bili, jamais. Quem tem não vende, sabe disso.”
“Monopolizaram o negócio seu fedido”
“Ninguém mandou vender os seus antes da crise”
“Eu precisava comer, e os meus não tinham proteínas mesmo”
“Como está sua  mãe Bili?”
“Quase nova, saiu da oficina ontem”
“E seu pai ainda caçando corvos albinos de bicos quadrados?”
“Não é época ainda, só aparecem por aqui no mês 23”
“Quero ven….”
A língua dele caiu
“COMPRO ELA” Gritei
Mostrou-me o dedo do meio da mão direita
Empacotado de fita crepe suja
“O que significa isso?”
Ele grunhiu algo e logo o dedo caiu também
Ajuntou ambos, pôs no bolso
Saiu devagar, caminhando
Precisava de mais fitas

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