Passado envelhecido ( VII )

Falar, falar, falar. “Tudo bem?” é a coisa mais estúpida. Ninguém está bem. “Sim, tudo bem” é a coisa mais mesquinha. Quando digo “Tudo bem?”, não quero saber se está bem. Lembre-se disso. Se não for minha mãe ou minha mulher, acredite, não ligo, nem você. A não ser que eu descubra sua malícia pro lado da minha mãe ou que anda fodendo minha mulher, aí seu “Sim, tudo bem” pode ser o último. Quanta besteira, minha mãe é virgem, esse é o clichê da minha infância. Minha mulher não daria pra você, ela também é virgem desde os quarenta anos, hoje tem vinte e não quer dar pra mim. O máximo que consegui foi um beijo, não de língua, na fenda. Juro que senti eletricidade lá capaz de iluminar Tóquio. Fiz até cálculos físicos e cheguei à conclusão que sua urina manteria acesas três lâmpadas de 60 watts por treze minutos. Se duvidar traga as lâmpadas e um penico. “Não duvide dos meus cálculos, tudo bem?!” Sou estúpido. “Sim, tudo bem”, você é mesquinho. “Tá de olho em minha mãe?”, “Mas é claro, sou seu pai”, “Trouxe as lâmpadas e o penico?”, “Estão comigo”, “Siga-me”.  Falar, falar, falar. “Qual seu nome?”, “Pinto Mole e o seu?”, “Mole Pinto, xará”. “Legal, tem apelido?”, “Fimose, e o seu?”, “Cancro mole”, “Isso significa que seu primeiro nome faz parte do seu apelido e meu segundo nome também”, “Sim, fimose”, “Não me chame de fimose Mole Pinto”, “Por favor, me chame de cancro mole”, “Me desculpe cancro mole”, “Deixa disso Pinto Mole, somos amigos”. Falar, falar, falar. “Como anda a família?”, “Não andam mais. Somente voam”, “Quanta esperteza”, “Realmente. Somente eu não voo”, “E por que não?”, “Não tenho asas”, “Que situação, hein?!”, “Verdade. E sua família, como vai?”, “Não vai mais. Só vem”, “Mas vem de onde se não vai?”, “Vem do vem”, “Interessante. Você vai ou vem?”, “Vou”, “Pra onde?”, “Pro vem”, “Então vai logo”, “Sim,  vou”, “Você disse vou ou voo?”, “Eu disse vou”, “A bom. Pensei que estivesse tirando sarro da minha família”. Falar, falar, falar. “Acredita em Deus?”, “Dizem que Deus está em cada um de nós, pois bem, então é conveniente que cada um tenha sua própria relação com o seu. Religiões querem padronizar o espírito humano”, “Então quer dizer que acredita?!”, “No meu não. E você acredita?”, “Como posso acreditar se o meu me deve vinte paus”, “Cretino”, “Sempre as mesmas desculpas. O eclipse inflacionou, manutenções na Lua, o Sol e suas horas extras, trocar peças na Terra, os carcereiros do diabo…enfim, acho que posso esquecer a dívida”, “Tentou negociar por uns anos a mais vivo?”, “Tentei, mas ele disse que não passo do dia quinze de março desse ano”, “Eita. Que dia é hoje?”, “Quinze de março”, “Puta que pariu. Há quanto tempo lhe deve a grana?”, “Pediu ontem”. Falar, falar, falar. “Viu só quem o Carlão tá traçando????”, “Quem?”, “A Rita!!!!”, “Quem é Rita?”, “Sua mulher, idiota!!”, “Minha mulher não se chama Rita”, “Não?!”, “Não. Chama-se Alfredo”, “Alfredo?!”, “Exato. Minha filha Alfredo Jr. e meu filho Carmem”, “Para com isso Felício”, “Meu nome é Suzana”, “Suzana?!”, “Exato Rui”, “Meu nome é Samanta”. Falar, falar, falar. “Vai fazer o que amanhã?”, “Pretendo comprar uma tesoura e me castrar. E você?”, “Quero comprar uma tesoura e cortar as unhas”, “Que nada, usa a minha”. Falar, falar. “Assistiu o filme ontem?”, “Só o começo e você?”, “Só o final”, “Viu a hora que o pai supostamente vende a filha? Inacreditável”, “Não. Viu a parte do aborto? Te falar, nojento”, “Não vi. E quando o policial chorou porque matou o cara errado? Minha nossa, quase chorei”, “Baaaa, não vi. E aquela velha na cadeira de rodas que se jogou da ponte? Sinistro”, “Perdi essa parte. Me diz uma coisa, eles conseguem explodir o trem?”,“Qual trem?”, “Do começo”, “Não vi o começo”, “Putz, o plano principal era explodir o trem”, “Devem ter explodido então. No final o extraterrestre salva a garotinha da usina nuclear”, “Enfiaram extraterrestres no filme? Que loucura!”, “Qual era o nome do filme? Quero assistir desde o começo”, “Não lembro. Já era tarde, estava morrendo de sono por isso só consegui ver o começo”, “Que coisa de velho dormir às dez da noite”, “Dez nada, já era três da manhã”. Falar. “Tá namorando?”, “Sim e você?”, “Também”, “Quer matar minha namorada?”, “Quero matar a minha”, “Podemos trocar de namoradas, aí você mata a sua”, “Se trocarmos de namoradas, então posso matar a sua com muito prazer”,“Que sacanagem trocarmos de namoradas e você matar a minha”, “Sacanagem é você sugerir trocarmos de namoradas pra eu matar a minha”, “Acho justo trocarmos de namoradas e cada um mata a sua”, “Fechado. Qual o nome da sua?”, “Maribel e da sua?”, “Também”. Fal….
Saí de casa no sábado pela manhã com uma ressaca infinita, o que todos sabem não ser aconselhável, ainda mais quando o Sol está fazendo suas horas extras. Pensei em como seria bom um eclipse, mas a Lua parecia velha demais pra esse tipo de coisa. O calor era infernal e o diabo certamente havia fugido do cárcere. Meu destino único era uma dessas lojas que vendem de tudo, desde trens, a abortos, extraterrestres e cadeiras de roda.
Cada um tem seu jeito de lidar com a ressaca, o meu é dormir exaustivamente, ao ponto de nenhuma explosão nuclear acordar-me, mas quebrei o ritual, pois precisava comprar duas coisas fundamentais, coisa rápida, afinal, encontrar uma loja dessas não é difícil hoje. A competição moderna fez mercados venderem pneus, farmácias venderem pneus, igrejas venderem pneus, borracharias venderem mercados, farmácias e igrejas, assim por diante, vocês sabem onde quero chegar, claro que sabem, na loja pra acabar logo com isso e voltar a dormir.
Adiantando a história, cheguei ao lugar. Que sacrifício ter que falar naquela situação de corpo e mente. Cadê a modernidade nessas horas? Leia meus pensamentos, por favor, implorei telepaticamente pro primeiro vendedor que visualizei, ele foi em direção a um pneu, e eu pensei: “Que diabos estou pensando em pneu numa hora dessas?”.
– Hei senhora – ele disse erguendo o pneu – não vai esquecer seu pneu.
Fui em sua direção matutando freneticamente minhas duas coisas fundamentais.
– Bom dia. Tudo bem? Ele disse mirando-me.
Que estúpido, óbvio que não estava tudo bem.
– Sim, tudo bem – respondi.
– Em que posso ajudá-lo?
– Quero comprar duas coisas, mas estou em dúvida se vendem aqui.
– Aqui tem de tudo. O que precisa?
Rui dizia seu crachá. Se eu fosse seu pai teria lhe dado o nome de Pinto Mole e o apelidaria de fimose ou cancro mole. Cacete de vendedores convencidos.
– Preciso de três lâmpadas 60 watts e um penico – falei.
– Mas é claro que temos. Temos lâmpadas capazes de iluminar Tóquio, além de penicos personalizados. Vou pegar as lâmpadas e umas amostras de penicos pro senhor olhar, são uma beleza!
Aguardei. Os crachás passavam por mim: Rita, Alfredo, Alfredo Jr, Carmem, Suzana e Samanta. Todos com seus sorrisos matinais desanimadores insistiam na mesma pergunta, “Tudo bem?”, “Sim, tudo bem” eu respondia. Estúpidos, com certeza me acharam mesquinho. Que calor! Até emprestaria meus últimos R$ 20,00 pra Deus parar com aquilo, mas conforme informações nunca mais veria o dinheiro. Olhei para o calendário da parede, já era quinze de março, algo me dizia que morreria nesse dia.
Rui trouxe as lâmpadas e alguns penicos coloridos. Colocou-os sobre um balcão.
– Pode olhar o tempo que quiser, pegar na mão se quiser – falou.
– Farei isso – respondi.
Sem conseguir ficar quieto e percebendo minha indecisão nos penicos, puxou papo. Desgraçado.
– Você é natural daqui?
– Não.
– Também não sou daqui. Nasci no Rio de Janeiro. Vim pra cá com minha namorada, a Maribel, as vezes tenho vontade de matá-la, mas sabe como é….me falta coragem.
– Compreendo.
– Poderia matá-la pra mim! Hahahaha.
Nem respondi.
– E sua família onde está? Continuou.
– Em casa esperando o penico. Preciso me apressar antes que se caguem nas calças.
– Me desculpe, mas preciso rir disso.
– Tudo bem Rui, pode rir. A sorte deles é que só conseguem cagar com a luz acesa, por isso as lâmpadas.
– Família complicada, hein?!
– Naturalmente. Vou levar esse aqui mesmo.
– Posso colocar tudo em uma só sacola?
Iria castrá-lo com uma tesoura caso ouvisse mais perguntas.
– Embrulha pra presente – falei.
– Sem problemas.
Até continuaria o conto, mas passam das três da manhã, já é dezesseis de março e não aguento mais.

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