A ferramenta do diabo

Toda a ansiedade estava me deixando com náuseas fortes. Na casa do Raul, por volta das 20:00 horas de uma sexta-feira, aquela espera incomodava. A bebida aumentava meu desconforto, o cigarro fedia um esterco nostálgico, das plantações de alface. Tudo era a questão do tempo, as abelhas e o pólen, a seringa e a veia, um cacto, o espinho e a folha furada.
– Que horas elas chegam Raul? Perguntei.
– Daqui a pouco, relaxa, parece que nunca comeu ninguém, fica olhando pra tudo, e segurando o vômito na boca, tá me dando nojo já.
– Estou com pressa cara. Vou enfartar, meu braço dormiu, meu estômago dói, estou com sono. Bem sabe que odeio suas mulheres, porque elas nunca vem. Elas ficam jogando com meu tesão, aí se acaso vierem, vão chegar aqui e reclamar do cheiro desse lugar. Falando nisso, poderia ter limpado esse chiqueiro.
Fazia cinco meses que não visitava o Raul. Sempre gordo. Mudando de casa a cada três meses, conseguia deixar todos os lugares iguais, fedendo os mesmos pontos da casa. Cada porta guardava um amontoado de roupas, seus instrumentos musicais, baldes, plantas, café, meu Deus, quanto café aquele porra bebia. Essa última casa era nos fundos de uma rua sem saída. Perguntei sobre a vizinhança, disse que uma cavala morava ao lado, e em algumas madrugadas ouvia-a gemer e bater na parede com força “ME FODE O TRASEIRO, NO TRASEIRO!”, mas ele nunca viu algum homem sair ou entrar lá, imaginava que era cena, “uma mulher solitária é capaz disso” ele afirmava, “uma mulher solitária te descreve Cristo pelado”, respondi. Outro vizinho tinha o costume de bater em sua porta quase toda noite, por volta das 22:00, com um copo de conhaque e coca, pedia um cigarro, oferecia um gole e voltava pra casa. “Esse cara ainda vai te matar”, falei. E tinha um velhinho e seu cachorro, sempre zanzando pela rua, o cão nunca latia, só cagava e demarcava território. O velhinho falava “Mija Bobby…caga Bobby…mija Bobby”.
– Porra Ramon, vem na minha casa duas vezes por ano, e ainda reclama do cheiro que eu preservo por aqui. Vai pro inferno!
– Qual é gordão, não é o cheiro, mas aquela merda de gato do lado do fogão vai criar asas.
– Tá seca já, nem fede, nem se mexe, tá mais pra um chaveiro caído.
– Enche o copo aí que vou vomitar um pouco. Essas duas estão me fodendo o esôfago.
O banheiro era sempre a parte mais limpa das suas casas, me senti vomitando no limbo. Mas dei só uma esguichada, de joelhos, não tinha bebido quase nada, era a ansiedade, a demora, algo me dizia que elas não viriam, não que me incomodasse, mas a dúvida do sexo sempre me deixa inquieto, preferia saber que elas não apareceriam, ao invés de aguardar seus belos quitutes preguiçosos pela noite inteira.
– Tá bem aí? – ouvi.
– To cara. Você que limpa esse banheiro?
– Sou eu sim. Vomitou dentro da água pelo menos?
– Claro
Abri a porta do banheiro, ele tentava olhar por mim, ver se eu tinha estragado seu altar, enquanto segurava meu copo.
– Vai querer conferir o banheiro agora? Me dá esse copo – falei.
– Ah cara, eu gosto da privada limpa.
– Ok. Entra aí e lambe meu vomito seu porco de merda. Haha.
– Ah cara, não é por mal, sabe que eu só deixo o banheiro limpo sempre.
Peguei meu copo de vinho e segui pra sala. Ele deu uma conferida, eu não tinha feito nada errado dessa vez.
– Hei Raul – falei. Essas mulheres virão? Para de enrolar, to cansado de teatro já. Por isso que prefiro pagar.
– Elas disseram que viriam, só estavam se preparando pra noite. São novas, gostam de sair bonitas e cheirosas. Respeite-as, estão vindo aqui cheirar bosta e vômito, o que você quer mais?
– Isso que me preocupa, todas as vezes que apareço na tua casa, você me promete jovens beldades fodedoras, e o mais perto que cheguei de um rabo até hoje numa casa sua, foi nessa merda de bosta de gato ao lado do teu fogão. Por que insiste em prometer essas coisas? Sabe que venho aqui pra beber e dormir. Não me faça falsas promessas cara, isso está me deixando maluco já. Eu chego aqui e você sempre com a mesma história “Tenho alguém pra ti comer hoje”, e a única coisa que tem pra comer aqui é aquela laranja de um quilo na geladeira. De onde saiu aquilo?
Dei um gole, ácido da pior qualidade.
– Desculpa cara. Sempre parece que vai funcionar. Quando você vem não funciona. É você cara, você traz energia negativa. Vai se benzer, é um conselho.
– Vai lamber o chão do teu fogão.
Liguei a TV, o telefone tocou.
– São elas – disse ele.
– Atende então – respondi.
– Alô…Sim, é o Raul….Tudo bem amor….humm…o quê?…onde?….não, não…um amigo meu….tá bem então doçura…Tchau.
– E aí? Perguntei
– Elas não vem.
– Porra, onde tá o vinho dessa bodega? Vomitei de graça. Um dia ainda te enfio uma peteca no cu e taco fogo nas penas. Foi a última vez que acreditei em ti, barriga de verme. Me traz o vinho.
– Tu também, só fala, e fala. Nunca trouxe mulher aqui em casa.
– É claro que não. Se eu tenho mulher não venho aqui.
– Assim me ofende. Faço o possível por nós.
– Deixa pra lá. Quero sobreviver até ser possível comprar uma buceta e conservá-la num pote de vinagre.
Não transar não é ruim, a esperança de foder que é um castigo.
– Cara, também fiquei abalado. Vou pegar o garrafão.
– Vai lá. Já me sinto melhor.
Foi até à cozinha, trouxe o garrafão de cinco litros, com uns quatro ainda dentro. A TV repetia um filme das antigas. Deixei como som de fundo. Aqueles tiros tornariam a noite mais viva.
– Então Raul – completando meu copo – quero entender uma coisa, você tinha uma moto 150cc e um chevette 86, certo?
– Sim.
– Aí vendeu o chevette por quanto?
– Quatro mil
– Certo. Me explica então, porque comprou uma moto de R$ 14000,00? Se já tinha uma pra andar.
– Também não sei. Achei a moto minha cara. Apareceu lá na loja um cara que devia até os calos das mãos, e como não tinha como pagar, deixou essa moto pro meu chefe, pra quitar a dívida.
– Ainda vende móveis?
– Agora projeto móveis também.
– Então comprou a moto do teu chefe, que ganhou ela de um fodido que prefere andar de pé ao invés de guardar as meias numa sacola?
– Isso. Dei os quatro mil que ganhei do chevette de entrada, e o resto parcelei. To com as duas aí. E você cara, ainda se fodendo pra sobreviver?
– Ainda não acabei meu caro amigo. Por que duas motos? Eu quero muito entender isso.
– Cara, já te questionei por ter comido duas primas minhas? Uma já não estava bom? Você está chato. Me deixa com elas, em paz. Toda vez que aparece aqui tá pior. Mais pirado. Se falar das minhas motos de novo vou te socar a cara..
Rimos e mais ácido dos copos pros corpos. 21:00 horas, o filme tinha terminado, começava algum programa idiota com entrevistas e plateia, música ao vivo. Desliguei a TV.
– Acho que a gente poderia jogar um baralho, valendo uma moto dessas tuas – eu disse.
– Escutou o portão? Acho que é a vizinha cavala, quer conferir?
– Onde?
– Ali fora, vai passar bem aqui em frente, se for ela.
Com passos gordos foi até a porta e abriu, bem quando ela passava em frente.
– Que susto vizinho! – ela gritou.
– Desculpe vizinha. To procurando meu gato. Viu ele por aí?
– Não vi não.
Sequei o copo. Se foi ela, e qualquer reação do Raul.
– Bóris!!… Bóris!! HUIT HUIT HUIT (assobios)
Fechou a porta.
– Viu só que gata? – sentou-se no sofá.
– Como eu poderia ver¿ Tu ficou na minha frente e a voz dela sumiu em seis palavras.
– Hoje ela tá demais! Que peitinho, que cinturinha, que reboladinho.
– Maravilha. E teu gato, vem cagar em casa hoje?
– Não sei. Ele é marronzinho, tem olhos azuis, vive por aí na rua. Um dia ouvi aquele velhinho do cão gritar “Pega ele Bobby, pega ele”. Foi a única vez que Bóris dormiu em casa.
– Então Raul, o que você acha da gente jogar baralho apostando uma das suas motos? – sugeri de novo.
– E o que você tem pra apostar?
– Não tenho nada – eu não tinha mesmo.
– Porra, então vai se ferrar!
Alguém bateu na porta.
– Vai abrir – ele pediu. Vou dormir. Só quero dormir um pouco. Só isso. Dormir. Por favor, eu só preciso dormir – secou seu copo.
Algo deu errado. Acho que ele esperava mais dele com a vizinha. Ou seu gato era o problema. Eu não estava causando problemas ainda.
TOC TOC TOC
– Já to indo! – gritei. Hei Raul, pode ser as tuas putas, anime-se. Eu não posso com elas sozinho. Aguenta aí.
Abri a porta, um homem mais alto que eu parado em frente. Tinha uma cabeça grande e um bigode matemático. Porte de padeiro, era um legítimo padeiro, talvez um encanador ou um presidente, sei lá, era estranho, um estereótipo nada convencional. Carregava um copo de dez polegadas na mão direita.
– Diga – falei.
Me estendeu o copo.
– Quer um gole? Perguntou.
– Quero. O que é?
– Conhaque com coca.
– Maravilha.
Estava doce, muita coca. Não reclamei.
– Escuta – prosseguiu – Tem um cigarro aí?
– Tenho sim. Entra aí.
– Quem é Ramon? – gritou a marmota esticada no sofá.
– Acho que é teu vizinho. Trouxe conhaque.
Vi aquele pescoção do Raul querendo ver quem era entrando pela porta.
– AA! É ele mesmo. Tudo certo vizinho?
– Estou bem Raul, e você?
– Com sono Duarte, muito sono.
– Então vou pra casa Raul. Só queria um cigarro.
– Que nada Duarte. Fica aí, vou tomar um banho. De qualquer forma esse filho da puta não iria me deixar dormir – apontou pra mim.
Sentei numa ponta do sofá, Duarte na outra. A luz deu uma caída de leve quando o chuveiro ligou, mas já estabilizou.
– Então você é o que do Raul? Parente? – perguntou.
– Basicamente eu venho aqui quando acaba a comida e a bebida. Parente é uma boa definição. Me diz uma coisa Duarte, tenho a impressão de que você já foi padeiro. Isso tem fundamento?
– Padeiro nunca fui. Sou eletricista aposentado há cinco anos. Me aposentei e um mês depois vim morar aqui. Minha mulher me expulsou de casa. Dizia que a pior coisa que eu fiz na vida foi parar de trabalhar. Acho que estava certa. Um mês depois já tinha colocado outro pra morar lá. Parece que é advogado, ou médico, tem cara, nem quis saber.
Virou meio copo, vazou um pouco pelo lado da boca. Lambia-se.
– Bom Duarte, nessas horas tem que ver o lado cômico da história. Depois de se aposentar acabou tomando o maior choque da vida.
Não parava mais de rir. Dava um gole, e gargalhava. Risadas frustradas, doloridas, insanas até.
– HAHAHAHAHA….Essa foi boa…GlubGlubGlub…hahahaha….muito boa….
Eu só pensava: Pobre bezerro desmamado.
– Muito boa mesmo hahaha…GlubGlub. Fazia tempo que não ria tanto. Qual teu nome mesmo?
– Ramon…GlubGlubGlub.
– Ramon – enxugando as lágrimas – na verdade, depois que me separei, tenho medo de ser gay.
– Ah, fica tranquilo. Um gay tem coragem suficiente pra ser gay, se tem medo, não é.
– É que depois que me separei, todas as mulheres que dormi foi algo sem graça. Três mulheres, uma que achei num clube de idosos ali depois da ponte, sabe? Uma puta e outra que fui fazer a fiação na casa dela.
– Presta atenção Duarte, não é porque as maçãs estavam podres que vai partir pras bananas, entende?
– Estou com medo. Com medo porque não quero mais transar. Eu pensava em transar enquanto cagava, e agora eu tenho medo.
– Teu medo não é de ser gay, e sim de se tornar assexuado. Mas isso deve-se…
– Me tornar o quê?
– Assexuado
– O que é isso?
– Digamos: É alguém que prefere espremer uma espinha a transar. Não sentem vontade. Mas isso é normal, todo homem em um momento da vida tem esse medo, de perder o sentido, as razões. Porque está incumbido na sociedade que foder é a melhor coisa do mundo, e com certeza é, na maioria das vezes. Eu já passei noites em claro pensando nisso. Mas aí que vem uma oportunidade. Você não precisa querer trepar todo dia, toda hora! Essa pressão só aumenta, todos trepando menos você, mas isso não passa de mentiras exageradas, isso dá graça ao mundo, ao inferno, ou seja lá onde estamos. Quando eu deixei de correr atrás de rabo todo dia, passei a escrever quatro, até cinco contos por semana. Tá me entendendo?
– Você é escritor?
– Ainda não. Hoje eu vim aqui e o capado do Raul, no que cheguei, me prometeu duas jovens trepadeiras. É essa esperança que acaba com os homens. Se todos nós perdêssemos essa esperança, algo me diz que seríamos mais evoluídos, mas nós perdemos o foco, a maioria perde. A buceta é a ferramenta do diabo. Vamos brindar! À ferramenta do diabo!!
TIM TIM
O Raul saiu do banho, vermelho, pegando fogo.
– Duas jovens trepadeiras aqui hoje?
– Não Duarte – respondi. Por que não Raul?
– Elas vão pra uma festa com outros caras.
Enchi o copo.
Ficamos bebendo no sofá, até terminar os quatro litros do garrafão. Lá pela meia-noite, ouvimos:
– ME FODE O TRASEIRO!! NO TRASEIRO!
– Que barulho é esse? – disse o Duarte.
– Minha vizinha – respondeu o Raul.
Levantei com um pouco de dificuldade.
– Vou lá ver se essa piranha ta fodendo mesmo – falei.
– Isso, isso. A ferramenta do diabo! Disse o Duarte erguendo o copo vazio.
– Vai lá Ramon, vou dormir, preciso dormir, por favor, apaguem as luzes.
– Tá bem Raul – respondi.
Saí pela porta, dei cinco passos sofridos pra esquerda.
TUM TUM TUM. Aguardei. TUM TUM TUM. Abaixei a maçaneta e entrei. Ela estava sentada no sofá, na posição budista, com um pijama azul claro e uma bacia de pipoca, sozinha, vendo TV.
– Quer pipoca?
Ergueu a bacia.
– É doce ou salgada? Perguntei
– Salguei demais.
Sentei-me, peguei um punhado e o diabo outro. Enquanto mastigava, minha língua criou uma liga densa, aquela gosma ressuscitou duas aftas no ato. Comecei lacrimejar, o mar morto nunca foi salgado perto daquela pipoca. Pela parede fina, dava pra escutar:
– A FERRAMENTA DO DIABO! A FERRAMENTA DO DIABO! A FERRAMENTA DO DIABO!
Olhei para ela e perguntei:
– Será que posso dormir aqui hoje?

 

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