Passado envelhecido ( XXII )

– Xeque-mate – disse Vences.
– Tá maluco? Posso mover o Rei pra cá – disse Tomás movimentando a peça.
– Não pode, tem esse bispo aqui atacando essa diagonal – falou Vences segurando o Bispo pelas pontas dos dedos da mão direita. Ele era canhoto, mas segurar as peças com a outra mão lhe proporcionava poder, ou prazer, não sabia distinguir o que sentia ao segurar o bispo com a mão “ruim”. Era como apalpar seios com essa mão, meio atrapalhado, machucando às vezes, mas era possível, considerava seu sexo mais complexo nas dificuldades, sacrificava-se pra utilizar seu corpo inteiro, principalmente as partes mentalmente incapazes. Só assim sentia-se vivo e altivo, humildemente um homem completo fisicamente.
Tomás observou o Bispo nas pontas dos dedos da mão direita de Vences e jurou em silêncio que o depravado ria da situação. Pensou em seu pobre Rei humilhado por um principiante a Papa, e possuiu-se de amargura por ele, pela incompetência intelectual daquela diagonal. Por um instante percebeu a suavidade do Bispo nas alturas, e logo soube, seu adversário era canhoto, exacerbadamente confiante pra fazer aquilo com ele. Tomás era um destro fortemente armado, um soco seu de direita derrubaria um avião. Utilizava da mão esquerda somente para lavar a direita nas tantas pias do mundo. Em certa ocasião tentou limpar a bunda com a mão esquerda, mas a bunda rejeitou o movimento grosseiro, seu ser inteiro sacudiu, proporcionando até um pulinho de negação. O que era ele? Um ser divisível? Sim, podiam cortar todo seu lado esquerdo fora. Teve certeza disso ao tentar masturbar-se com a mão esquerda por três horas. Nada de ritmo, somente puxadas doloridas no couro, capazes de rasgá-lo sem uma miserável ejaculação. Também escovou os dentes com a mão esquerda quatro vezes, mas parou, pois morrer de hemorragia bucal parecia idiota demais. Desistiu de seu lado esquerdo, mas não da partida de xadrez.
– Acho que você não esperava por esse lance Vences! Disse voltando o Rei para casa original com a mão polivalente e avançando um peão para tapar o xeque.
Vences teve pena de seu adversário singularmente incompleto fisicamente. Pensou que ao serrar o lado direito de Tomás, possivelmente o mesmo morreria de fome ou sede. Ao contrário do que acabara de ouvir, era claro que esperava aquele lance. Vences não dizia “xeque-mate” em vão. Assim como não dizia “gozei” em vão, nem “te amo” ou “vi um OVNI”. Com a mão “ruim” elevou o outro Bispo, posicionado na casinha ao lado do anterior na sacristia preta e branca chamada tabuleiro e disse:
– Não pode mover esse peão, está cravado “Tomenos”.
– Que religião está criando Vences? Pra todo lado têm Bispos.
– A religião dos ambidestros ocasionais.
– Não poderei fazer parte, querido amigo.
– É uma questão de perseverança. Se sentirá muito mais completo na minha religião. Poderá escolher com qual mão raspar o saco, até mesmo com qual mão descascar uma laranja ou deslacrar uma cerveja.
Tomás não desistia da partida. Voltou o peão cravado para a posição original e fez o roque grande, tudo com a mesma mão firme.
– O que achou dessa Vences?! Lance de mestre.
– Você não pode rocar estando em xeque. Perdeu. Deixa de lengalenga.
– Quem criou as regras desse jogo? Esbravejou Tomás, mais com o lado direito da boca.
– Eu – respondeu Vences com desdém, movendo a boca em sincronia.
– E se eu te der xeque também?! Persistiu.
– Teu Rei já está em xeque, porra.
– Xeque por xeque e ficamos sem fundos – riram.
– Fecha a boca animal. Arruma as peças e vamos pra próxima humilhação.
– Chega dessa merda. Que tal outro jogo?
– O que sugere?
– Queda de braço com os braços esquerdos.
– Você não consegue abrir uma carteira com a mão esquerda.

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