– Pega a chave lá com a moça Carlinhos – alguém disse.
Uma leve brisa passava por nós, movia algumas palmeiras, mas não chegava a ser frio. Logo o sol apareceria e tornaria nosso dia ainda mais peleado.
– É o vento sul esse – disse o motorista.
Concordei com a cabeça, mas não fazia nem ideia de onde ele vinha nem para onde ia. Sul, norte, leste, oeste, logo estaríamos fritando e carregando bugiganga. Acendi outro cigarro e aguardei, qualquer coisa, já imaginava a situação que estaria aquele depósito, e não estava gostando muito. No que o Carlinhos em posse da chave abriu o depósito só pude ouvir o tom de sua voz misturando-se com a brisa:
– Meu Deus. Estamos completamente fodidos.
Dois outros, Jair e Mario, se aproximaram da porta e bicaram lá dentro. Permaneci fumando escorado na caminhonete.
– Ai, ai ai – disse o Jair ao ver o que nos aguardava.
– Ihhh, lascou. Ramon, venha ver a cacalhada que arranjaram pra gente – completou o Mario.
– Já vou – respondi.
Podia ouvir alguns barulhos vindos de dentro do depósito, coisas sendo arrastadas, derrubadas, atiradas longe, desbravadas pelo cabeça de catuto Jair. Ele tem esse costume de se enfiar no meio das coisas, só pra ver se acha algo interessante pra pegar e olhar. Terminei o cigarro e parti para a porta que separava um dia incógnito de outro um tanto judiado.
– Achou alguma buceta aí dentro? Perguntei olhando pro Jair.
– To procurando – ele respondeu.
– Hei Ramon, olha isso. É um osso de elefante!
Visualizei o Mario metido em um canto do depósito. Segurava algo grande na mão e um cigarro na boca. Olhava pra mim e olhava praquele negócio grande, e assim sucessivamente, esperando que eu também ficasse entusiasmado com aquilo. Nunca tinha visto um osso de elefante, nem mesmo um elefante. Sei que são grandes por fora, mas isso não quer dizer nada.
– Isso aí não é um osso de elefante – falei.
– Claro que é. Vou jogar pra você ver de perto.
– Não quero ver.
– Segura aí – e jogou.
Peguei com as duas mãos. Parecia um osso mesmo, não sei do que. Olhei praquilo, olhei pra ele, que ainda esperava meu entusiasmo com o cigarro na boca.
– Isso aqui não é um osso de elefante – disse pra ele.
– Vai-te a merda. Tu não sabe nada de elefantes.
– O que vocês tão discutindo aí? “Vamo” trabalhar. Mandar tudo isso pra caminhonete logo – disse o Jair, ainda procurando algo de interessante pra olhar, agora por perto do Mario, se ali tinha um osso de elefante, então teria algo pra ele.
O Carlinhos tentava girar um moedor de cana situado bem no meio do depósito, mas sem sucesso. Forçava um pedaço de madeira para girar as engrenagens, elas não obedeciam seu impulso, ficaram travadas por tanto tempo que possivelmente elas mesmas duvidavam que alguém ainda moeria cana naquilo. Joguei no chão o osso de elefante. Muita coisa estranha tinha sido entulhada lá dentro. Bem perto da porta, uma carroça com diferentes tamanhos de balaios dentro, todos completos até a buzina com prateleiras de aço de alguma estante que não estava lá pelada. Havia quadros, cadeiras, protótipos com borrachas e funis entrelaçados com canos de cobre, um caiaque, gaveteiros, mesas, computadores, e poeira, muita poeira. O chão era de terra batida. Não seria um bom dia. Os outros três ainda olhavam pro lugar com os olhos de uma criança pobre deslumbrando vitrines. Fui o primeiro a colocar algo em cima da caminhonete. O motorista havia sumido desde que concordei que realmente era o vento sul. Joguei uma cadeira que tombou bem perto da cabine, depois um gaveteiro e um monitor de computador. Acendi um cigarro, não iria trabalhar sozinho.
– Ramon! Onde colocou meu osso de elefante?
– Enfiei na bunda Mario – respondi.
– É sério.
– Por que a gente não enche a caminhonete e vai embora disso aqui? – falei.
– Relaxa aí galego! Vamos ficar o dia inteiro aqui mesmo – esbravejou o Jair.
– Tu mesmo queria trabalhar agora a pouco cabeça de catuto. Não vai achar nada de bom aí no meio.
– Mudei de ideia. Tô cansado.
– É, relaxa aí galego. Vem aqui ajudar a mexer esse moedor de cana – disse o Carlinhos, com sua voz nada temperamental.
– Se querem saber, ontem trepei por R$ 20,00 e uma maçã.
Nenhum deles queria saber. Continuavam com a mesma cara doente, pareciam três naftalinas rolando de um lado pro outro atrás de tralhas. Mas quem queria trabalhar era eu, então quem era o doente? Joguei mais duas cadeiras ouvindo o som do cigarro queimando. Ts, Ts, Ts. Tentei erguer o maior balaio, sem chances, fui em outro um pouco menor, sem chances. Aproximei-me de um daqueles protótipos, e comecei girar um círculo de cobre bem no topo.
– Escutem aqui – falei – se vocês não começarem a empilhar isso na caminhonete, vou tirar o osso de elefante da minha bunda e enfiar na bunda de vocês todos.
– Hei galego, acho que consegui ajeitar isso. Vem aqui e vamos rodar pra ver como eles moíam cana – disse o Carlinhos naftalina.
– Vou aí te ajudar Carlinhos – disse o Mario naftalina.
– Vamos lá galego, só pra ver – completou o Jair naftalina.
Ramon naftalina foi girar o bagulho também, sem cana, sem moer nada, aquilo rodava e eu estava cercado por uma situação um tanto ingênua e aterradora. Estavam faceiros com aquilo, como se lamentassem por não terem tido uma única chance de moer cana como os antigos. O passado realmente cativa pelas singelas cruezas das coisas como eram.
– Tira o osso da bunda e vamos moer ele aqui galego.
– Não. Deixe-o ali.
Tentei o menor balaio, sem chances.