Passado envelhecido ( XXV )

1 – e4
Plic no relógio de xadrez.
1 – …c5
Plic no relógio.
– Siciliana, ham?
Plic.
– É a melhor.
Plic.
– Concordo.
Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic.
– Faziam mais de dez anos que não jogava xadrez.
PLIC!
– Bate fraco no relógio!
Plic.
– Desculpa.
Plic.
– Por que parou de jogar?
– Virei motoboy.
– Mentira.
Plic.
– Verdade.
Plic.
– Poderia ter continuado paralelamente com o xadrez. Aliás, ainda joga muito bem pelo tempo parado.
Plic.
– Obrigado. Mas fiquei sem tempo pra estudar o jogo e perdi o tesão.
Plic.
– Perdeu o tesão e virou motoboy?
– Virei motoboy e perdi o tesão.
– Por que diabos virou motoboy então?
Plic.
– Salário. Recebia em torno de R$ 250,00 para competir. Me ofereceram          R$ 550,00 pra entregar peças de automóveis e caminhões. O dinheiro encerra alguma carreira, ahn?!
– Que puto você. Quantos anos tinha?
– Dezoito.
Plic.
– Foi competidor por quanto tempo?
Plic.
– Comecei jogar com doze, e aos treze já viajava disputando torneios pelo país. Agora fica quieto uns minutos, preciso pensar na próxima jogada.
– Ok.
Dois minutos depois. Plic.
– Chegou a ganhar troféus e medalhas?
– Muitos e muitas. Mais individualmente do que por equipe. Nosso time era muito bom, infelizmente tinha um azar de causar inveja. Um merda entre nós sempre dava um jeito de perder a única partida que não podia. E geralmente para um adversário mais fraco. Perdi a conta das vezes em que ficamos no quarto lugar por conta disso.
– Isso não é azar, é incompetência. Mas me diga, era sempre o mesmo merda que perdia?
– Não. Revezávamos. Na maioria das vezes creio que eu fui o merda ocasional. Sua vez.
– Vou jogar. Você era o pior da equipe?
– Não, o melhor.
As folhas arrastadas pelo vento pareciam bailarinas ao redor das barracas de caldo de cana e rapaduras. O brilho do Sol latejava na cruz da catedral e como um tapete nas escadas atraía o público, os turistas da sagrada cidade, para mais promessas altruístas. Lágrimas como confetes jogados, risos como bananas soltas no chão. O xadrez valia a pena, outra vez. O menino ranhento com a barriga de fora e umbigo esquisito rodeando o tabuleiro na mais santíssima órbita, não entendendo nada, ungido de inocência e curiosidade, aflito e fascinado pela beleza absurda daquelas peças pretas e brancas brilhando, mesmo sob as sombras das árvores.
– Tio, me ensina jogar? Perguntou o menino.
– Não enche, pilantrinha. Estou pensando.
– É. Se manda moleque.
– Ainnnn…Brrrrrr…Buá, Buá, Buá.
– Vai chorar pra lá, porra!
– Some daqui.
Plic.
– Se era o melhor da equipe não deveria ter parado. Ligar uma moto qualquer um consegue, agora ser um bom jogador de xadrez é muito difícil.
– Fazer o quê, quero ser um qualquer. Essa disparidade fictícia entre pessoas não me interessa. Se nascer um jegue azul, os humanos acham extraordinário, mas para os outros jegues é simplesmente um jegue. Disso que estou falando, penso como um jegue. Pra finalizar esse assunto meu caro, experimente somente um dia amarrar três molas de caminhão nos pedais de uma moto e sair andando.
Plic.
– Não entendi o que quis dizer, mas enfim. Chegou a jogar contra atletas de nível internacional?
– Sim, se não me engano foram três.
– Vou pensar um pouco para o próximo lance. Depois continuo o assunto.
– Certo. Vou até ali comprar uma rapadura. Quer também?
– Não, obrigado.
Tarde abrasiva, com soluços de vapores invisíveis chacoalhando as saias das moças que transitavam monotonamente espalhando toda a crueldade das fêmeas pelo vão das pernas, embaralhando o odor intrínseco do ambiente como uma brincadeira sacana. Os velhos pigarreando, assobiando, batendo seus jornais velhos nas pernas, lamentavam a idade, lamentavam o esconderijo cheiroso e proibido assim como lamentavam as guerras e o preço das batatas. Lamentavam, fazia parte do jogo.
Plic.
– Foi comprar essa rapadura onde? No México?
– Tinha uma baranga burra de dar febre na minha frente. Levou rapadura pro ano todo.
– Olha essa moreninha gostosinha que vem vindo. Ai, ai. Chupava inteira. PSIIIIIIT..PSIIIIT…EI POTRANCA, TE CHUPAVA INTEIRA….PSIIIIIT….PSIIIITT….EEEEEIIII….VAI A MERDA TRANQUEIRA.
– Que rabo. Rapadura terrível.
– Ganhou de algum dos três jogadores de nível internacional?
– Ganhei de dois, mas também perdi para os três. Um, andei lendo notícias ultimamente, tornou-se o mais jovem brasileiro a conseguir a norma de Grande Mestre Internacional. Quando enfrentei-o pela primeira vez era apenas Mestre FIDE. Perdi. Lembro-me vagamente daquela partida, foi a que melhor joguei contra ele, nas outras duas vezes passei vergonha, fui judiado como um peru de guri novo. Outro também era Mestre FIDE quando venci, pura sorte, estava mais perdido que papagaio mudo na posição, mas encontrei um golpe tático e ele caiu como amador. Em outras ocasiões fui triturado. Já com o terceiro, joguei duas, ganhei a primeira, perdi a segunda.
Plic.
Pombos atrozes e vigaristas entre transeuntes, magnífica convivência singular. Poeira nos olhos, grudada nos chinelos, dentro do caldo de cana, dentro dos corpos úmidos. Calamidade são aranhas voadoras. O menino tenta aprender dominó, mas só sabe contar até cinco, então dão-lhe uns trocados pra comprar rapadura, mas se engana de barraca. Os taxistas erguem as mangas das camisetas, um é tatuado e não usa meias. A magnitude é volátil, trabalhadores consertam um cano cavoucando a calçada, o craqueiro seduz o vendedor de picolés, enquanto o pombo defeca sobre o banco de pedras.
– Devo admitir que foram grandes vitórias as suas.
Plic.
– Passado.
– Qual é seu enxadrista preferido?
– Fischer e o seu?
– Paul Morphy.
– Ambos incríveis e meteóricos. Acho que se vivessem na mesma época, plantariam flores no jardim da casa do Bobby e beberiam chá até os noventa anos. Sabe como é, doidos se entendem.
Plic.
– Concordo. Você só tem mais cinco minutos no relógio.
– É o suficiente pra ganhar.
Sirene de polícia no vácuo dos becos abafando a sonoridade pitoresca. Versatilidade espontânea nas solas dos pés. O craqueiro confuso corre pra dentro da catedral. O menino chora porque acabou a rapadura no momento exato em que o vencedor ficou sem pedras de dominó. Um homem em cadeira de rodas sai do bar e ajeita o boné. Coça as pernas e causa dúvidas. A sirene vai ficando cada vez mais baixa, até que todos esquecem o perigo.
Plic,Plic,Plic,Plic,Plic…Plic.
– Agora está em maus lençóis.
– Nem tanto. Teu peão cravado em d6 compensa.
– Fiquei com o bispo bom.
– Incapaz de tirar meu cavalo de d5. Tenho mais tempo no relógio. Ganharei no tempo.
– Duvido. Ainda tenho dois minutos e você cinco.
Plic,Plic.
– Já esperava por esse é?!
– Imaginei que tentaria abrir essa coluna.
– Meu plano não era esse. Haha. Muito pelo contrário, meu plano é esse sacrifício de cavalo.
Plic,Plic.
– Sempre soube desse plano. Mas é furado.
– Aé?! Vamos ver então.
Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,PLIC,Plic,“Merda”,Plic,Plic,Plic,Plic, “Cacete”,Plic,PLIC,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque-mate”,“Merda”
– Não era furado o sacrifício. Haha.
– Sorte sua.
– Mais uma?
– Vou embora. Quem sabe amanhã se eu passar por aqui.
– Como se chama?
Disparates viscosos na primeira curva. A porta não tem maçaneta mas abre com o vento. O vapor quente não seca o suor e sim espalha as gotículas. A tarde ainda seria longa, mas nada aconteceria.

Deixe seu comentário