Peça uma peça ( XIX )

No terceiro dia eu tinha certeza que era 7:45 da manhã, enquanto carregava um cigarro na mão direita, pensava e ia a passos apressados  com minhas pernas longas ao trabalho. Chamou-me atenção um acidente envolvendo uma kombi branca e uma bicicleta na avenida. Aparentemente ninguém se feriu. A ciclista conferia os estragos da bicicleta parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, justamente onde o motorista avaliava a kombi estacionada. A lei não permite parar ali. Na kombi não aconteceu nada, nem arranhão. Pelo que consegui ver, os pneus da bicicleta estavam vazios, as espias dos freios desconectadas e as marchas todas trocadas. A ciclista abriu sua bolsa, retirou uma garrafa e deu um gole na água, ao que me viu passando.

– Quer comprar? Ela me perguntou rindo, apontando para a bicicleta.
– Hoje não – respondi.
– O cigarro mata – ela disse.
– Assim como as kombis.

Segui em linha reta na calçada que delimita a entrada no matagal. Um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos fez sinais que sugeriam para eu ouvi-lo.

– O que aconteceu ali? Perguntou.
– Nada demais – respondi.
– Sabe de alguém que queira comprar um terno? Tenho um aqui na mochila pra vender.
– Aquele motorista da kombi branca – eu disse.
– Vou falar com ele. Agradeceu a informação e recolocou os fones de ouvido.

Logo atrás do homem vinha uma velhinha sorrindo, segurando um pote cheio de terra com um girassol plantado nele. Não perdi tempo, velhos morrem facilmente. Fui em direção a ela esboçando um sorriso cativante e terno ao mesmo tempo. Queria passar essa combinação. Ela parou e sorriu mais ainda, mas era uma combinação que não consegui decifrar.

– Quer vender o girassol?
– Quero – ela respondeu e mudou a combinação do sorriso. Aquilo não me atrapalhava.
– Quanto a senhora quer por ele?
– R$ 50,00.
– Antes me diga uma coisa. Esse girassol gira mais rápido na calçada ou no mato?
– Conforme o Sol.
– E quando chove?
– Na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Gira mais rápido no mato.
– E quando chove no mato?
– Gira mais rápido na calçada.
– Entendi. Faremos uma aposta. Colocaremos esse girassol aqui na calçada e depois ali no mato. Quem adivinhar em qual dos lugares ele gira mais rápido fica com ele.
– Mas ele já é meu. Eu não ganho nada com essa aposta – a velha relutou. 
– Se eu perder, lhe pago os R$ 50,00 e a senhora pode ficar com a planta. Se eu ganhar, lhe pago os R$ 50,00 e fico com ele.
– Mas você não estaria ganhando nada com essa aposta – a velha disse. R$ 50,00 é o valor que quero dele agora. Paga, pega e depois você compara onde gira mais rápido.
– Dou R$ 30,00 se eu vencer a aposta.
– Assim sim – ela consentiu. – Parece justo. 

Primeiro deixamos na calçada. Ela cronometrou em seu relógio minúsculo do pulso esquerdo. Eu deveria ter tentando comprar o relógio. O negócio do girassol estava complicando minha imaginação.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata, ou uma trilha, tanto faz. Já era quase 8:00, tinha que acabar logo com aquilo, estava atrasado. Havia perdido muito tempo com a kombi, a ciclista e o homem de terno. Acelerei todo o processo e ao dar o primeiro gole no café, exatamente 8:01, a velha jazia morta com o girassol plantado na boca, girando à procura do Sol.

Personagem fecha os olhos. vai até a cama, senta, pega o caderno e dita o que escreve de lápis:

Recomeçar do zero a cada três dias.    

A lâmpada começa piscar sem parar, o personagem encara-a, até ela apagar completamente.

Luzes do palco se apagam. É possível ouvir ruídos de um choro de mulher.

Passos na escada, a porta abre e se fecha.

Fim do segundo ato

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