Peça uma peça ( XXIV )

Narradora com a cara um pouco preocupada e voz minimamente trêmula  

Um quarto perfumado e adocicado pelas tramas sexuais e viscerais, cativante entre ambos, acostumados àquele mar azedo e fabuloso de mantras sórdidos. O sangue quente deslizava do corpo frio e duro como um cofre, derramando mais uma lata de vermelho tinto. Simples assim para Salete, uma ruiva envenenada, traumatizada com um mundo tão paralelo ao seu. Desde sempre fora aniquilada, e agora usava de todo seu corpo robusto para satisfazer seus instintos ferinos e mordazes. Fazia uma bela dupla com seu irmão Vander, um ladrão e assassino de primeira, extremamente eficaz, só sabia fazer isso, e no mais, orgulhava-se por soltar peidos bonitos, elegantes, sonetos de lua cheia.     

Salete sai do quarto em direção à plateia, desvia do corpo no chão e empurra de leve a narradora. Vander deita-se na cama olhando para o teto.

Salete desfilando na frente da plateia, sensual, olhar desafiador, cumprimenta, provoca alguns com piscadas de olhos.

– Meu nome é Salete, mas não se apaixonem por mim. Suguem o máximo que puderem, e eu serei grata por poder culpá-los das minhas culpas. É sempre um dia de fúria, as emoções saem do compasso e o menor detalhe causa estrago. Sou apenas falsidade, a mesma que comprei. Os resultados são sempre os mesmos, apenas mudam as equações. Explorei os limites da minha essência e ativei meu poder de autodestruição, é complicado quando o pior se torna aceitável. Particularmente falando, prefiro ser acomodada querendo ficar longe das burocracias do ser, do que inconformada e precisar provar todo dia a sensação de estar perdida. Aprendendo a chorar eu aprendi a sorrir, e hoje muito mais que isso, lutei com o tempo e fui esmagada ao ponto de não sentir mais o gosto salgado das lágrimas. Depois de cumprir meu dever, irei passear nas lembranças que me ajudam a recuperar os sentimentos de ódio e de amor. Estou cansada de fugir das poucas coisas que me alegram. Ando rindo das mesmas piadas que um dia ainda quero ouvir, afastando a imortalidade em minha direção. Procuro não ser rigorosa, mas chega uma hora em que falar sozinha perde a graça. A evolução é uma arte que desconheço. Quando estou parada estou a mil por hora, sou quase um beija-flor jovem e rápido, mas com a carcaça de um urubu podre. Uma loucura interminável, um sentimento que foi guardado no silêncio das minhas decisões.

A narradora faz um sinal chamando Vander, que pega a arma e vem em sua direção. Os dois ficam conversando (em silêncio), parecem estar falando sobre qualquer coisa, ora sobre o morto, ora flertando, ora ouvindo Salete.

Salete prossegue

– O que acho de vocês? Sentem-se exaustos, mas tudo bem. São levados pela fantasia, carregados de insegurança e traídos pela bondade. São honestos demais para viverem suas vidas. Podem me achar uma palhaça sem graça. Exijo verdade até das suas borboletas de estimação. Porcos! (Cospe no chão) São ratos e reis encenando uma peça, sem ensaios, cheia de erros, propósitos, boas e más intenções. O POVO É COMO UMA PROSTITUTA QUE NOS DIAS DE FOLGA OCUPA-SE FODENDO DE GRAÇA!  

Salete com a voz serena

– Gostaria de me virar do avesso e enxergar as cores do meu corpo misturadas com os efeitos da minha alma formando um arco-íris preto e branco. Por que isso? Para apalpar o que destruo sem as mãos. Meu nome é Salete, mas não se apaixonem por mim. Mostrem-me o começo e eu acabarei com o infinito. 

Salete se volta pro quarto bem devagar, desvia do corpo no chão. Empurra a narradora não com muita força, dá um beijo na boca de Vander e volta pra cama.

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