Peça uma peça ( XXV )

Vander dá um tiro pra cima e ri, indo em direção ao centro do palco. Narradora, vai até a cama e começa falar com Salete, que parece não dar muita atenção.

Vander ainda rindo mira as pessoas da plateia com a arma e dispara com a boca: POW! POW! POW!

Fala coisas do tipo “Tudo bem neném?”

Vander começa sua fala, com expressão sorridente e sádica

– Falar, falar, falar (Com pausas entre as palavras)

“Tudo bem?” é a coisa mais estúpida. Ninguém está bem. “Sim, tudo bem” é a coisa mais mesquinha. Quando digo “Tudo bem?”, não quero saber se está bem. Lembre-se disso. Se não for minha mãe ou minha mulher, acredite, não ligo, nem você. A não ser que eu descubra sua malícia pro lado da minha mãe ou que anda fodendo minha mulher, aí seu “Sim, tudo bem” pode ser o último. Quanta besteira, minha mãe é virgem, esse é o clichê da minha infância. Minha mulher não daria pra você, ela também é virgem desde os trinta anos, hoje tem vinte e não quer dar pra mim. O máximo que consegui foi um beijo, não de língua, na fenda. Juro que senti eletricidade lá capaz de iluminar Tóquio. Fiz até cálculos físicos e cheguei à conclusão que sua urina manteria acesas três lâmpadas de 60 watts por treze minutos. Se duvidar traga as lâmpadas e um penico. “Não duvide dos meus cálculos, tudo bem?!” Sou estúpido. “Sim, tudo bem”, você é mesquinho. “Tá de olho em minha mãe?”, “Mas é claro, sou seu pai”, “Trouxe as lâmpadas e o penico?”, “Estão comigo”, “Siga-me”.  Falar, falar, falar. “Qual seu nome?”, “Pinto Mole e o seu?”, “Mole Pinto, xará”. “Legal, tem apelido?”, “Fimose, e o seu?”, “Cancro mole”, “Isso significa que seu primeiro nome faz parte do seu apelido e meu segundo nome também”, “Sim, fimose”, “Não me chame de fimose Mole Pinto”, “Por favor, me chame de cancro mole”, “Me desculpe cancro mole”, “Deixa disso Pinto Mole, somos amigos”. Falar, falar, falar. “Como anda a família?”, “Não andam mais. Somente voam”, “Quanta esperteza”, “Realmente. Somente eu não voo”, “E por que não?”, “Não tenho asas”, “Que situação, hein?!”, “Verdade. E sua família, como vai?”, “Não vai mais. Só vem”, “Mas vem de onde se não vai?”, “Vem do vem”, “Interessante. Você vai ou vem?”, “Vou”, “Pra onde?”, “Pro vem”, “Então vai logo”, “Sim, vou”, “Você disse vou ou voo?”, “Eu disse vou”, “A bom. Pensei que estivesse tirando sarro da minha família”. Falar, falar, falar. “Acredita em Deus?”, “Dizem que Deus está em cada um de nós, pois bem, então é conveniente que cada um tenha sua própria relação com o seu. Religiões querem padronizar o espírito humano”, “Então quer dizer que acredita?!”, “No meu não. E você acredita?”, “Como posso acreditar se o meu me deve vinte paus”, “Cretino”, “Sempre as mesmas desculpas. O eclipse inflacionou, manutenções na Lua, o Sol e suas horas extras, trocar peças na Terra, os carcereiros do diabo…enfim, acho que posso esquecer a dívida”, “Tentou negociar por uns anos a mais vivo?”, “Tentei, mas ele disse que não passo do dia quinze de março desse ano”, “Eita. Que dia é hoje?”, “Quinze de março”, “Puta que pariu. Há quanto tempo lhe deve a grana?”, “Pediu ontem”. Falar, falar, falar. “Viu só quem o Carlão tá traçando????”, “Quem?”, “A Rita!!!!”, “Quem é Rita?”, “Sua mulher, idiota!!”, “Minha mulher não se chama Rita”, “Não?!”, “Não. Chama-se Alfredo”, “Alfredo?!”, “Exato. Minha filha Alfredo Jr. e meu filho Carmem”, “Para com isso Felício”, “Meu nome é Suzana”, “Suzana?!”, “Exato Rui”, “Meu nome é Samanta”. Falar, falar, falar. “Vai fazer o que amanhã?”, “Pretendo comprar uma tesoura e me castrar. E você?”, “Quero comprar uma tesoura e cortar as unhas”, “Que nada, usa a minha”. Falar, falar. “Assistiu o filme ontem?”, “Só o começo e você?”, “Só o final”, “Viu a hora que o pai supostamente vende a filha? Inacreditável”, “Não. Viu a parte do aborto? Te falar, nojento”, “Não vi. E quando o policial chorou porque matou o cara errado? Minha nossa, quase chorei”, “Baaaa, não vi. E aquela velha na cadeira de rodas que se jogou da ponte? Sinistro”, “Perdi essa parte. Me diz uma coisa, eles conseguem explodir o trem?”,“Qual trem?”, “Do começo”, “Não vi o começo”, “Putz, o plano principal era explodir o trem”, “Devem ter explodido então. No final o extraterrestre salva a garotinha da usina nuclear”, “Enfiaram extraterrestres no filme? Que loucura!”, “Qual era o nome do filme? Quero assistir desde o começo”, “Não lembro. Já era tarde, estava morrendo de sono por isso só consegui ver o começo”, “Que coisa de velho dormir às dez da noite”, “Dez nada, já era três da manhã”. Falar. “Tá namorando?”, “Sim e você?”, “Também”, “Quer matar minha namorada?”, “Quero matar a minha”, “Podemos trocar de namoradas, aí você mata a sua”, “Se trocarmos de namoradas, então posso matar a sua com muito prazer”,“Que sacanagem trocarmos de namoradas e você matar a minha”, “Sacanagem é você sugerir trocarmos de namoradas para eu matar a minha”, “Acho justo trocarmos de namoradas e cada um mata a sua”, “Fechado. Qual o nome da sua?”, “Maribel e da sua?”, “Também”.

Vander percebe que o morto está lhe chamando discretamente. Meio embaraçado, vai até ele e se abaixa, coloca o ouvido bem perto da boca dele, fazem alguns gestos como se discordassem de alguma coisa. Vander levanta e vai até a narradora e parece explicar alguma coisa. A narradora vem até o morto e se abaixa para ouvir o que ele tem a dizer. Também discordam, e a narradora começa expulsar o morto do palco, que a princípio recusa sair, mas é convencido pela narradora (tudo isso em sussurros, ninguém sabe o que está acontecendo). O morto e a narradora saem do palco ainda em discórdia, e logo a narradora volta pro palco com um boneco idêntico ao morto (nu, cabelo, barba). Ela o coloca na mesma posição no chão (coloca uma carteira ao seu lado e as mesmas roupas que antes já estavam com o morto). E a cena vai recomeçar. Narradora vai até Salete e Vander que estão sentados na cama e parece dar umas instruções. Volta para fora do quarto, seu lugar habitual e faz um positivo para ambos. Os dois recomeçam a rir loucamente e se levantam da cama.

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