vá à merda

sabe dançar música
clássica? – eu me pergunto

não.. e você? – eu me respondo

também não, mas acordei
com vontade de dançar – eu
penso

depois quebrei uma
costela, talvez duas, além da mesa
puta estrago da porra
e eu só estava dançando sozinho
um pouco alcoolizado demais
talvez..

lá fora a vizinha continua gritando:

“vá à merda!”

parece que é para o marido
mas no fundo todos sabemos

quem sou..

feito água

lá fora, há poucos instantes
sentindo os frios pingos de chuva na face
novamente me lembrei dos peixes mortos
nadando na contramão
do riacho
gelado

e me peguei pensando
no quanto costumo lutar por meus sonhos
enquanto durmo
e no quão facilmente
esvaíam-se
quando acordo

tudo parece resumir-se
aos pingos abafados da goteira
que nos estruturados sonhos nascem distantes
e vão aproximando conforme tudo vai
inevitavelmente escorrendo
feito água no esgoto

assim, feito água corrente eu me sinto
sem saber direito para onde vou
apenas seguindo, abrindo caminho
deixando meu rastro, ora límpido
ora turvo.. qualquer hora
inundo.

no vagão da meia-noite

você continua
bebendo e fumando
um atrás do outro
feito um guaxinim
neurótico
chutando rabos
você acende um
no rabo do outro
e você pensa
e pensa
e pensa
enquanto os olhos
saltando para fora
buscam o suicídio
buscam a salvação
quando toda mentira é verdade
quando as cartas estão marcadas
mas ganhar não te interessa
você pensa
e fuma mais uma carteira
e o estrAbismo só aumenta
então se pega lembrando
daqueles que desistiram
no caminho
daqueles que resistiram
até o fim
e por um momento
você percebe que desistir
não é uma opção
ao menos não agora
enquanto a cerveja desce
gelada, a fumaça sobe
e o vagão
continua..

precisava parar

ele criava como GODzilla destruía
abria o editor de textos e não parava
cada página um poema
cada poema
uma nova droga no mundo
estava viciado
e tinha seu próprio laboratório
tudo
mas tudo
virava poema

precisava parar
parou?
sim

veio o natal, veio o final
veio o pão e o vinho
veio a ressurreição em desalinho
bucetas, cus, paus
todos enrijecidos pela doença
vieram os pássaros
apenas canários
ordinários da vida
perdidos no eco de seus cantos
loucos de surtar o estavam
enlouquecendo

precisava parar
parou?
sim

veio a velhice
e o cheiro de morte
que se misturou com seu cheiro
cheiro de cigarro, álcool, penas
bucetas, cus, sovacos e solavancos
doença, sangue, pus
de humano demasiado
a canário ordinário
não tinha jeito

precisava parar
parou?
não.

quase completo

“BUÁÁÁÁÁÁÁ”

o bebê acaba de nascer
e apesar do parto penoso,
passa bem.
contudo, é preciso avisar aos pais
os felizardos

“seu filho nasceu sem coração”

os pais parecem bem
um pouco atônitos, talvez
talvez só estejam preocupados
em parecer preocupados

“como pode isso, doutor?”

“mas ele vai ficar bem?”

“vai sim, ele está bem, apesar..”

eles sorriem aliviados, comemoram
não precisam ouvir mais nada
estão completamente satisfeitos
com o resultado daquelas trepadas
vazias, sem nenhum
amor.

a mesma mulher

“arruinei minha vida
casando com a mesma mulher
duas vezes” – disse
W. Saroyan

ouvi e digeri. marquei a página
tatuei o poema, e mesmo assim
acabei ludibriado
novamente
arriscando-me no mesmo fogo
na mesma chuva
ácida, pelo mesmo desejo
imponderável de viver
e sofrer – consequentemente

“sempre haverá alguma coisa
para arruinar nossas vidas?”
que vidas arruinadas são normais
eu sei, sou prova
mas quantos arruinados
otimistas
você conhece? sábios
ou não?

já não sei o que ela quer de mim
já lhe entreguei meu fígado
meus rins
minha garganta
meus pulmões, meu sangue
o pior de mim já nem me pertence
parece estar todo concentrado
nela
que finge não me enganar
enquanto finjo não saber
que sou enganado
e fingimos tão bem
que a coisa toda até parece andar
perfeitamente bem
como se tudo fosse verdade
como se Saroyan fosse o único
de fato
à arruinar sua vida
duas vezes
com a mesma
mulher.