Se eu visse um ipê florido
Na frente de outro ipê florido
Ao lado de outro ipê devastado
Se eu visse uma floresta iluminada pela metade
Com uma antena em seu corpo beijando o céu
Casas desbotadas ainda querendo amá-la
Com janelas e portas abertas
O homem glorificando sua única natureza
Se eu visse roupas coloridas no varal da mulher de cabelos verdes
Ou um pneu furado no carro amarelo do jovem careca
Eles dariam um ótimo casal, se eu visse
E se eu visse cortinas balançando em um porão abandonado
Algumas mariposas grudadas nas paredes mofadas de julho
Se eu plantasse um ipê na frente desse porão
E convidasse a mulher de cabelos verdes e o jovem careca para um jantar
Mariposas alho e óleo, uma cerveja preta pra cada
Se eu continuasse cego, ainda teria tempo para ouvir o rádio desligado
Se eu ouvisse uma velha de braço engessado contar uma piada para seu cão
E se ele risse ao mijar no poste e errar o alvo
Se eu escutasse uma pedra quebrar o telhado e alguns pássaros saíssem voando pelo buraco
E se o lavador de telhados não visse o buraco e caísse dentro
Se eu fosse borracheiro e estivesse trocando o pneu do jovem careca
Enquanto ele roubava algumas roupas coloridas do varal da mulher de cabelos verdes
E se o lavador de telhados fosse filho da velha de braço engessado
E se fosse marido, e se ele tivesse inventado a piada
Se o cão latisse
E se eu continuasse
Não estaria aqui
Onde?
Autor: Ramon Carlos
Peça uma peça ( VII )
O personagem aciona o relógio para voltar a jogar com o adversário imaginário. Faz um lance. Plic. Concentrado no tabuleiro, continua seu diálogo.
– Chegou a ganhar troféus e medalhas?
– Muitos e muitas. Mais individualmente do que por equipe. Nosso time era muito bom, infelizmente tinha um azar de causar inveja. Um merda entre nós sempre dava um jeito de perder a única partida que não podia, e geralmente para um adversário mais fraco. Perdi a conta das vezes em que ficamos no quarto lugar por conta disso.
– Isso não é azar, é incompetência. Mas me diga, era sempre o mesmo merda que perdia?
– Não. Revezávamos. Na maioria das vezes creio que eu fui o merda ocasional. Sua vez.
– Vou jogar. Você era o pior da equipe?
– Não, o melhor.
As luzes se apagam no palco, e um narrador diz:
Tarde abrasiva, com soluços de vapores invisíveis chacoalhando as saias das moças que transitavam monotonamente espalhando toda a crueldade das fêmeas pelo vão das pernas, embaralhando o odor intrínseco do ambiente como uma brincadeira sacana. Os velhos pigarreando, assobiando, batendo seus jornais velhos nas pernas, lamentavam a idade, lamentavam o esconderijo cheiroso e proibido assim como lamentavam as guerras e o preço das batatas. Lamentavam, fazia parte do jogo. As folhas arrastadas pelo vento pareciam bailarinas ao redor das barracas de caldo de cana e rapaduras. O brilho do Sol latejava na cruz da catedral e como um tapete nas escadas atraía o público, os turistas da sagrada cidade, para mais promessas altruístas. Lágrimas como confetes jogados, risos como bananas soltas no chão. O xadrez valia a pena, outra vez. O menino ranhento com a barriga de fora e umbigo esquisito rodeando o tabuleiro na mais santíssima órbita, não entendendo nada, ungido de inocência e curiosidade, aflito e fascinado pela beleza absurda daquelas peças pretas e brancas brilhando, mesmo sob as sombras das árvores.
Com as luzes ainda apagadas, o personagem acende um fósforo e deixa-o queimando até o fim. Depois acende outro e acende um cigarro, nesse momento as luzes são acesas novamente. Com alguns transeuntes passando pelo fundo do palco e uma criança parada, observando de longe o tabuleiro e o jogador, olhos nem se mexem, um dedo na boca, estática. O personagem concentrado no tabuleiro, nem percebe. A criança da dois passos em direção ao tabuleiro, mas volta um passo. Mais alguns turistas no fundo do palco tirando fotos, falando com sotaque do interior de SC. Um vendedor de picolé entra com o carrinho e para-o ao lado da criança que nem se mexe, continua olhando pra mesa. O vendedor de picolé fica olhando para os turistas batendo fotos. Os turistas vão saindo do palco e o vendedor pega seu carrinho e vai atrás. Saem do palco. A criança corre para trás do personagem, uns dois passos e fica observando.
Peça uma peça ( VI )
Agora se escuta somente a voz do morador declamando outro poema e a voz vai diminuindo de tom como se estivesse se afastando:
Mesmo que o grão disseminado
Conteste a singularidade do plantio
E a terra em desuso
Combata o florescer obscuro
Delírios ácidos acentuarão
Debalde, a irrigação nos poros
Latentes em cada movimento
Mesmo que imortalizar os vícios
Signifique simpatizar a paranoia
Ramas plácidas infinitas
Ainda codificarão o instinto
E os pressupostos doutrinarão a culpa
Se os sapos tivessem asas
Não bateriam com o traseiro no chão
Sempre que pulam
Mesmo que as pupilas dilacerem o razoável
E as bigornas sirvam de peso para papel
Alguma coerência ainda restará
E vibrará como uma víbora
No forno aceso
Jogar fora a própria vida
Significa usá-la da melhor forma
Mesmo que confrontar medo com medo
Seja um blefe da consciência
A confusão enrijece o apetite
Por tudo que se ganha sem razão
Admita que sempre foi hipócrita!
Sendo hipócrita, como posso admitir?
Ousar ou usar
Se em qualquer momento da minha vida
Eu depositar toda minha esperança em alguém
Então podem ter certeza
De que perdi a esperança
Mesmo que nada seja atributo de tudo
Tudo que se escreve sobre nada
Sobretudo
Sobre nada, esse poema
Não quer dizer tudo
Um peixe de sobretudo
Nada nada
Em seu aquário
O cadeirante devolve o documento do personagem e sai novamente anunciando a loteria, enquanto pelo outro lado do palco entra um bêbado com passos largos e desajustados, uma garrafa de cachaça de plástico em uma mão e com a outra gesticulando, como se estivesse sinalizando alguém ou alguma coisa, sem falar nada, apenas emborcando uns goles. Também sai do palco.
Peça uma peça ( V )
Pelo fundo do palco o morador vai caminhando e falando alto, não gritando, declamando esse poema:
O não-gostar é libido
É um caos controlável
É existir na existência, dever aos deuses
É a controvérsia do amor casual, que mal nos acostuma
Tem mais prestígio que um homem limpando a bunda na certidão de nascimento para mudar o nome
Torna-se raivoso, tão pouco contagioso e vingativo
Partiremos daqui logo, deixando sabonetes e talco nos sapatos
Partilhando mais chulé do que paixão
Combinando mais roupas que olhares
Morre-se de preto, desbota-se o corpo
Colam-se os olhos, a boca, as narinas e as pregas
O estilo fica pálido aos que olham para as flores que compraram
Nada tenho pra chorar, nem uma caixa d’agua
As pessoas boas racham lenha a vida toda e queimam
Seus pudores não são vaidosos e desrespeitosos
O não-gostar é instintivo e prematuro
E para que isso acabe, acendem-se algumas velas
Tornando as noites vagas e perfeitas
De fora do palco, lado contrário de onde sai o morador uma voz grita: Vai te foder, o seu maluco!
O morador volta um pouco pra dentro do palco, esticando o pescoço como se procurasse quem tinha gritado com ele do outro lado.
(Enquanto isso acontece, em primeiro plano o cadeirante vai pegando os dados do personagem, preenchendo a loteria. O senhor levanta e sai, dobrando os papeis e colocando no bolso traseiro da calça. Antes de sair completamente do palco, se abaixa e coça os tornozelos pela última vez.
Peça uma peça ( IV )
Personagem cruza os braços e se vira para a platéia, observando. No fundo do palco uma transeunte tropeça e cai. O cadeirante chega rápido para ajudá-la a levantar, tudo isso em silêncio. Os dois saem do palco e o personagem continua observando a plateia, sem perceber o que aconteceu. Acende outro cigarro.
Um senhor de boina e barba branca entra em cena e senta no lugar do adversário imaginário, também de frente pra plateia, coçando os tornozelos. O personagem para o relógio olhando para o senhor, mas nada fala.
– Devo estar com sarna – diz o senhor, coçando bastante os tornozelos por dentro das meias.
O personagem da uma tragada e se afoga com a fumaça, tossindo muito ao ponto de lacrimejar. Ambos, um se coçando sem parar e o outro tossindo sem parar virados para a plateia. O personagem sai do palco tossindo. O cadeirante entra e para ao lado da mesa.
– E aí coroa, comprar uma trimania hoje?
O senhor ainda se coçando e sem olhar pra trás:
– Quanto tá pagando?
– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios.
O senhor para de se coçar e se vira pro cadeirante.
– Qual valor?
– 10 pila.
O cadeirante começa gritar olhando pra trás, fazendo propaganda da loteria.
– Me vê duas.
– Escolhe ou escolho?
– Escolhe.
– Preenche ou preencho?
O senhor tira um documento da carteira e dá para o cadeirante sem falar nada.
O personagem volta tomando um caldo de cana e senta em sua posição.
– Comprar uma também amigo? Pergunta o cadeirante enquanto preenche os dados do senhor em uma prancheta no colo.
– Qual o prêmio? Pergunta o personagem.
– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios – Responde o cadeirante ainda preenchendo os dados.
– Qual valor?
– Dez pila
– Me vê uma.
O cadeirante pergunta pro senhor os dados que faltam, como endereço e telefone. O senhor responde.
Peça uma peça ( III )
O personagem observa o morador saindo do palco. Recoloca as peças na posição original e para o relógio. Pega-o na mão, ajeita os tempos (demora um pouco pra conseguir) e devolve na mesa. Enquanto isso, no fundo do palco alguns turistas tiram fotos e riem. Falando em outra língua. Acende outro cigarro. Aciona o relógio para jogar contra si mesmo.
Jogando e falando com seu adversário imaginário ( a palavra Plic significa a batida no relógio, logo após um lance no tabuleiro…e4 e c5 são anotações reais de xadrez).
1 – e4
Plic
1 – …c5
Plic
– Siciliana, ham?
Plic.
– É a melhor.
Plic.
– Concordo.
Mais lances em silêncio, apenas ouve-se o barulho do relógio sendo acionado a cada lance.
Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic.
– Fazia mais de dez anos que não jogava xadrez.
PLIC! Uma batida mais forte no relógio.
Personagem olha para o adversário imaginário com cara de desaprovação.
– Bate fraco no relógio!
Plic.
– Desculpa.
Plic.
– Por que parou de jogar?
– Virei motoboy.
– Mentira.
Plic.
– Verdade.
Plic.
– Poderia ter continuado paralelamente com o xadrez. Aliás, ainda joga muito bem pelo tempo parado.
Plic.
– Obrigado. Mas fiquei sem tempo pra estudar o jogo e perdi o tesão.
Plic.
– Perdeu o tesão e virou motoboy?
– Virei motoboy e perdi o tesão.
– Por que diabos virou motoboy então?
Plic.
– Salário. Recebia em torno de R$ 250,00 para competir. Me ofereceram R$ 550,00 pra entregar peças de automóveis e caminhões. O dinheiro encerra alguma carreira, ahn?!
– Que puto você. Quantos anos tinha?
– Dezoito.
Plic.
– Foi competidor por quanto tempo?
Plic.
– Comecei jogar com doze, e aos treze já viajava disputando torneios pelo estado. Agora fica quieto uns minutos, preciso pensar na próxima jogada.
Peça uma peça ( II )
Então o primeiro personagem chega e senta com um saco de peças e um relógio de xadrez
Coloca a caixa do relógio sobre a mesa e despeja as peças
Posiciona todas as peças brancas e pretas (ficando com as brancas), retira o relógio e coloca contra a platéia, escondendo o tempo…acende um cigarro com fósforo (o primeiro apaga como o vento)
Voz de auto-falante quase inaudível anuncia venda de ovos caipiras, com música e galinhas cacarejando.
Uma loira de saia passa pela frente da mesa no palco, o personagem dá uma bela conferida na mulher, e nem percebe que o morador de rua sentou como adversário dele, também olhando para o rastro da loira.
Com os dois olhando para o mesmo lugar, o cadeirante passa em alta velocidade com a cadeira pela frente do palco em direção a loira, pra fora do palco, repetindo olhando para os dois “Era melhor ter nascido rico do que bonito”
O personagem volta o olhar e percebe o morador de rua sentado em sua frente, com pose pensativa olhando para as peças do tabuleiro.
– Sabe jogar? Pergunta o personagem
– Só um segundo, tô pensando
Fuma e espera
– Não sei jogar, mas sei fumar, tem um cigarro aí?
Alcança o maço, o morador retira um e coloca atrás da orelha, retira outro e coloca atrás da outra orelha e por fim coloca um na boca e devolve o maço.
– Fogo?!
– Quer acender qual primeiro?
O morador tira o cigarro da boca e troca por um da orelha
– Esse
O personagem risca um fósforo e acende o cigarro
O morador da uma tragada e olha bem pro personagem e diz:
– Engraçado, você parece meu pai
O personagem apaga o cigarro no meio do tabuleiro deixando a bituca
– Em quê? Pergunta
O morador pega a bituca apagada da uma olhada nela e guarda no bolso
– Ele também gostava de loiras
– Quem não gosta?!
– Minha mãe
– Nenhuma mulher gosta de loiras
(Visão de cima do tabuleiro é projetada no fundo do palco, para ver o que acontece em cima do tabuleiro, como em campeonatos mundias)
O morador pega a dama branca e derruba com ela a dama negra, o rei negro e um peão. Coloca a dama branca no mesmo lugar onde o cigarro foi apagado. Bate no relógio para fazer o tempo das brancas rodar.
– Como se chama? Pergunta o personagem
– João – responde o morador e sai andando pra fora do palco
(Projeção desligada).
Peça uma peça ( I )
Primeiro ato – Fotografia de um cotidiano vagabundo
Cenário: Mesa de concreto com 4 bancos no centro do palco com tabuleiro de xadrez (uma espécie de praça)
Passam alguns transeuntes atrás da mesa conversando baixo (fundo do palco) e um cadeirante pela frente anunciando em bom som a trimania (loteria)…um cachorro, alguns pombos (ver possibilidade). Palco vazio.
Um morador de rua senta, escorra um cotovelo na mesa, observa um pouco a movimentação, o cadeirante fora de cena dá um grito (anunciando a trimania), que faz o morador de rua dobrar o pescoço pra ver o que acontece fora do palco…resmunga baixo, olha pro tabuleiro sem peças e faz um lance imaginário, coloca a mão no queixo como um jogador profissional, sem tirar o olho do tabuleiro…levanta e senta como se fosse o adversário, pensativo no lance, mãos na cabeça, olha para o adversário com olhar desafiador, coça a barba inexistente e faz outro lance imaginário, cruza os braços. Morador diz:
– Te conheço de algum lugar
Levanta e senta no outro banco de concreto, com outra pose, pensando na frase
– Engraçado, você parece meu pai ( com uma voz totalmente diferente)
Vai pro outro lugar
– Você parece meu filho
Faz a outra voz e outra pose mas permanece no mesmo banco
– Qual o nome do seu filho?
Muda voz e pose
– João. Qual o nome do seu pai?
Vai pro outro banco.
– João
Faz outro lance imaginário e sai andando pra fora do palco.
Cadeirante passa calado pelo fundo do palco
Haicão IV
Sumindo na fumaça de gelo
Aplaudindo no sono profundo
E sufocando com um perdigoto engolido
Apelando pelando
A alma numa fogueira
Derretendo a febre
Com a ponta do cigarro
Ai de mim pequena!
Meu chão é de centeio
Sentei-o
Incendeio-o
Sem deixar
Marcas
Anestésico
Depois de descobrir
Que os mosquitos têm dentes
Todas as noites,
Quando esses bastardos decidem aparecer
Eu tenho uma certeza, meu bem
De tanto sugarem você
Agora eles precisam de mim
Do meu sangue alcoólico
Para aliviarem suas dores
E é só por isso
Que não os mato
Apenas mastigo
Um que outro
Para velar
Seu sabor