Passado envelhecido ( IX )

Eu havia puxado a cordinha, queria descer no próximo ponto, logicamente. Coloquei-me em frente às portas de desembarque do transporte coletivo. Já eram oito e pouco da manhã, estava atrasado, mas nem tanto, como de costume. Paramos no semáforo, faltava pouco, uns vinte metros, somente uma pessoa iria descer ali, bem insignificante por sinal. Corpos atravessaram pela faixa de pedestres, mas como eu estava lá no final do corredor só conseguia ver suas cabecinhas miúdas através do para-brisa, o vai e vem que já estamos saturados de observar, indo e vindo, escorregamos todos pra mesma vala, e viver parece ser a maior idiotice nessas horas. Em uma espécie de painel colocado sobre as portas, em vermelho luminoso o seguinte alarme “Parada Solicitada”. Fui eu, pensei, ainda mantenho algum poder nas mãos. Engano meu. Com um repentino solavanco o ônibus partiu lentamente. Balancei como uma carga de gado, senti uma dor no dedão do pé esquerdo, unha encravada, encravada na alma. Vagamente lembrei-me do meu primeiro pacto com o diabo, que não deu certo, cerca de quatro anos antes e aconteceu mais ou menos assim:

Conheci Marta em um posto de gasolina. Entrei comprar cigarros e ela discutia com o atendente. Fiquei atrás dela ouvindo tudo. Bêbada, queria porque queria passar cigarros no vale-alimentação, mas o cara recusava. Coisa tola, cada um se alimenta com o que quer.
– Escuta aqui seu frentista do caralho, eu tenho 27 anos, moro ali no bairro São Pedro, e saí de casa só pra isso. Vai me vender por bem, ou então eu quebro teu nariz.
– Desculpe senhora, mas não passamos cigarros no vale-alimentação. Nenhum posto da nossa rede faz isso. É melhor a senhora se acalmar.
Ela olhou pra trás e me viu quase encostado nela.
– Ouviu isso?! Esse chupador de gasolina não quer me vender cigarros.
– Ouvi. Qual cigarro você quer, bebê? Perguntei.
– Marlboro maço.
– Deixa que o papai te paga essa.
– Te espero ali fora.
Quase deu de cara na porta eletrônica, mas conseguiu sair. Seu cabelo moreno flutuava, a sua boca tinha um brilho molhado, tipo gelo derretendo numa fogueira, seus olhos eram pequenos, do tamanho de uma moeda de cinco centavos, mas valiam mais, uma tonelada de nobres desejos de tê-los fechados ao redor da virilha. As roupas não a deixavam mentir, só tinha saído de casa praquilo mesmo, e pra me deixar de pau duro num posto de gasolina.
– Acho que você escutou né chupador de gasolina? Dois maços, por favor.
– R$ 11,00 senhor.
– Hei cara, te livrei duma hoje hein? Essa mulher iria te explodir o bigode. Só tenho dez reais. Então sejamos justos como Jesus e tudo acabará bem.
Estendi a nota, como quem não queria pagar nada no fim das contas.
-AH! Tudo bem, obrigado – ele disse.
Dei o maço pra ela, acendi um pra mim.
– Papai, pra onde está indo?
– Pra casa. Papai está cansado.
– Aaaaa….vamos lá em casa brincar de papai e mamãe.
Fui pra lá. Papai e mamãe ralaram os genitais.
Paloma, Isis, Roberto e Dirceu eram seus amigos, vim conhecer dias depois. Eu tinha poucos amigos, e tinha preguiça de apresentar, o único que apresentei foi Antônio, e junto veio sua mulher religiosa. Pra começar, a Paloma tinha uma tatuagem nas costas, um grande beija-flor beijando uma pequena folha de maconha. Começava aí sua simbologia exacerbada, era de poucas palavras e sua linguagem pra tentar se expressar, notoriamente era difícil de entender, por vezes saía de uma conversa e ia sentar numa cadeira o mais longe possível “Que que deu agora?” eu perguntava, “Nada, só deixe estar” respondia Marta. Uma vez ficou só de calcinha na minha frente, enquanto eu tentava matar uma mosca e Marta tomava banho. Não falou nada, só ficou. Abaixei sua calcinha, ela ergueu, e fez um “não não não” com o dedo indicador. “Paloma sua esquisita, vou tatuar um pinto na tua pomba”, “Não não não” com o indicador. Vestiu-se e foi embora. “Onde está a Paloma?”, “Olha Marta, saiu voando por aí”. A Isis gostava de tagarelar, se passava por ninfomaníaca, mas dava pra ver que suas fodas decepcionariam até um padre cego. Tinha um corpo dos bons, mas exagerava tanto nas palavras que perdia toda a sensualidade, ficava fútil de tanto pau e buceta que citava. Mas eu até que gostava de ouvi-la, tinha a imaginação de uma criança prostituta. O Roberto era um cara sensível, apaixonado, o vi chorando umas três vezes. Pintava quadros um tanto abstratos, vermelhos e cinzas, e distribuía para seus amigos. “Ô Roberto, isso aqui pelo que vejo é um pastel peidando” – falei olhando pra um que tinha dado à Marta. “Você se engana, é um machado partindo um coração ao meio”, “A tá, mas o cheiro é o mesmo”. Dirceu era o mais velho de todos, tinha uns trinta e cinco anos. Formado em engenharia elétrica, o único que havia sido casado e tinha um filho, que não via muito. Falava-me de toda a situação, do amor perdido, dos sonhos, do caco e do vidro. O amor deve ser dosado em um conta gotas pra cada um, uma gota a mais e morrem afogados, uma gota a menos e acabam.
O pacto se sucedeu no dia em que Marta entrou pela porta da casa dela eufórica, tinha ido encontrar Paloma enquanto fiquei sentado no sofá espantando moscas.
– Meu bem, vamos acampar final de semana? Perguntou.
– Não – respondi.
– Aaaaaaa…por que não? Vamos sair um pouco desse nó universal, eu não aguento mais, todas essas calçadas e muros pichados. O cheiro, a fumaça, essas faixas de pedestres idiotas. Esses pombos folgados..aaaaa……não suporto mais. Se a gente ficar aqui, vamos acabar indo na casa do Antônio, e me dá enjoo só de pensar. Você bebendo num canto, eu suportando a mulher dele contar dos tricôs e da bíblia. AAAAAA…não, não. E depois a gente sai de lá, volta pra cá, tu tá com preguiça demais pra qualquer coisa, eu vomito meia hora, tu ri meia hora, e depois ainda fica me pedindo um boquete atrás do outro. Meu bem, por favor, só dessa vez. Quem nos convidou foi a Paloma. Já confirmaram o Dirceu e o Roberto, e tu já me disse que vê estilo neles. Ainda vai um cara que só a Isis conhece. A Isis você lembra né? Aquela puta galhuda que dá detalhes da vagina pra todos. Você já me disse que gosta dela também. Vamos??Ahn? Ahn?
– AAAA, tá porra, vamos.
– AAAA, meu bem. Não faz essa cara. Quer um boquete?
– Não.
Saiu saltitando e cantando uma musiquinha chata. Foi avisar Paloma por telefone. Voltou com a mesma musiquinha, um inglês moído estava famosinho com ela. Todos cantavam aquilo, e saltitavam, uns até rodopiavam. Imaginei que esse cantor tivesse um pacto com o diabo e fiz essa contraproposta: “Ouça-me seu diabo, você já fez pactos muito melhores que esse, algumas almas que você colheu valiam a pena, de verdade, mas duas coisas novas estão realmente me tirando do sério. Essa unha encravada, que só pode ser obra sua, e essa canção mela cueca, mela calcinha, mela meu humor, mela a paciência dos gafanhotos. Portanto, quantas virgens você precisa pra acabar com tudo isso? Aguardo resposta. PS: Por favor não esqueça da unha”. Nunca obtive resposta.

O ônibus parou no ponto que solicitei, mas não por minha causa. As portas da frente abriram e uma mulher saltou rapidamente pra dentro. Fecharam-se as portas e logo um repentino solavanco de arrancada. Minhas portas nem sinal de serem abertas.
– COBRADOR!! COBRADOOOR!!!
Minha voz saiu aguda e engasgada. Os olhares emburrados e devastadores se encheram de graça.
– COBRADOOOOOR!!! COBRADOOOOOR!!!
O filho da puta estava com fones de ouvido e o ônibus só não saía do lugar por estar em uma avenida movimentada. Saí correndo pelo corredor, até que ele me viu e tocou a sineta secreta, aquela que somente os motoristas entendem. Consegui sair do ônibus. Caminhei por no máximo dois minutos até me deparar com um cabeludo cheio das artes me pedindo cigarro. Já tinha um bafo de cachaça forte, por isso não era nada tímido. Dei um cigarro e perguntei:
– E o que você tem aí pra minha mãe?
Não entendeu.
– Dessas artes suas aí. Me dê uma – falei.
– Aqui é maluco de estrada camarada!!
– De qual estrada?
– De todas. Vou lhe dar uma, claro, porque sou maluco de estrada. Não me importo, ontem dormi embaixo da ponte, vivo de camaradagem. Raaaaaaa, qual você quer?
– Qualquer uma, estou atrasado, mas nem tanto.
Com muita dificuldade conseguiu retirar uma pulseira verde atada a uma coisa branca com dentes, uma pedra talvez, carnívora. Alcançou-me, agradeci.
– Aqui é maluco de estrada! Raaaaa – ele disse.
– Ok. Até amanhã.
Já tinha cruzado vários desses, sempre iguais. Certa vez, meses antes, foi com um malabarista sentado em um gramado ao lado do semáforo. Tinha tatuagens no pescoço, piercings na boca e no nariz, um cheiro azedo vinha do cabelo rastafári. Passando ele puxa papo:
– Não tenho dinheiro irmão, ninguém valoriza minha arte. Estou passando fome. Tem uns trocados?
– Tenho cigarro. Quer um?
– Pode ser irmão.
Retirei do bolso o maço, dei uma olhada, só mais cinco.
– Infelizmente irmão só tenho mais um – falei.
Guardei o maço, demonstrei interesse:
– Então irmão, faz tempo que manda esses pinos de boliche pro ar?
– Me dá esse crivo aí.
– Sem chances.
– Pô irmão.
Levantou-se. Cerrei o punho direito.
– Vou lá que o sinal fechou – ele disse.
Observei sua arte. Deixou cair um pino no meio da apresentação, mas no mais tinha se saído bem. Passou pelos carros com uma mão na posição de concha de sopa. Não recebeu nada. Veio sentar de novo, com uma cara de abóbora em depressão pós-colheita.
– Porra irmão, ia te dar cinquenta reais se não deixasse aquele pino cair – falei pra ele.
– Que? Respondeu.
– Olha só cara. Tu tá fazendo isso errado. Essas pessoas te acham uma sanguessuga, e eles não deixam alguém assim como você sugar o dinheirinho deles, eles preferem serem comidos pelos patrões, entende? O que você vai fazer daqui pra frente é o seguinte. Escolha uma esquina da cidade, movimentada, e fique nela durante três meses, todos os dias. Faça teu malabarismo como nunca fez, aperfeiçoe, e ao acabar, não vá pedir dinheiro, porque é isso que eles esperam, porque eles são assim, tudo que fazem colocam preços. Apenas cumprimente os motoristas da primeira fila, saia andando e sente ao lado da rua. Mostre superioridade, eles amam isso. Logo logo sua fama irá se espalhar. Chegarão na roda de amigos e esposas e citarão você. “Vocês viram aquele paspalho que faz malabarismo de graça no sol e na chuva? Como alguém consegue fazer isso?” Sem demora alguns vão te chamar pra lhe dar alguns trocados pela janela e te apertarão a mão, vão querer te igualar a eles, cada vez mais. Você se tornará personalidade, aquela esquina ficará congestionada, haverá palmas, você será um herói, dando alegria para humanos de graça, tipo Deus.
– E como eu faço pra comer nos primeiros meses?
– Sei lá, vende um piercing por dia.
– Tu tá maluco. Vou pro lá pro sinal.
Ainda fiquei olhando, continuando meu trajeto, e lá foi ele com sua conchinha.

Com a pulseirinha verde em mãos andei mais uns cem metros até encontrar uma árvore e amarrá-la no galho mais fino.

Passado envelhecido ( VIII )

Saí do bar e passei por entre as mesas agrupadas na calçada. Todos felizes, sempre. Atravessei a rua e desci os três degraus de uma escada até entrar no território. Uma árvore me deu vontade de mijar, então me apoiei nela e reguei, ao que uns sons mínimos de violão harmonizavam aquela intimidade homem/natureza. Só quando parei de mijar que vi o músico, voltei pra sentar na escada e logo ao lado um cabeludo com boné militar dedilhava seu violão, concentrado no instrumento, sem cantar.
– Hei cara – falei – toca mais alto.
– Não quero tocar mais alto – ele respondeu. Com toda razão, eu era uma platéia ignorante e surda.
– Ok cara, toque baixo, logo uma mulher chegará aqui com uma cerveja e uma mão desinfetada pra te ouvir também.
– Sua mulher?
– Sim. Não a conheço mas é minha.
– Pode crer.
– O que está tocando?
– Uma música minha.
– Uma música sua só pra você ouvir? Acho justo.
– Quer ouvir?
– Sim, eu e a árvore.
Agora mais alto era possível ouvir o violão e seus tons obscuros. O local padecia de luminosidade, uma coleção de sombras organizava o lugar pra ninguém ver. Ouvi sua música sem falar nada, nem a árvore, nada de aplausos, somente a última nota satisfeita.
– Essa é minha música – ele disse.
– Show, e essa que vem vindo aí atrás é minha mulher.
– Essa de touca?
– Touca e cerveja. Bem ela.
Ela sentou ao meu lado, então lhe dei o primeiro beijo da noite e apalpei-lhe os peitos firmes por baixo da blusa. Seios feitos pela medicina, a segunda mulher com silicones na minha vida que tocavam a palma da minha mão, batendo palmas para Ramon, palmas para a música do cabeludo, palmas para a árvore mijada, palmas para a nova vida e bunda de Dóris, palmas para os trinta e um dentes do Jaimir, a mesma mão de uns dos piores escritores do mundo alisava a pele costurada de Glória no sentido horário e anti-horário, apertando e sugando o tempo, a sombra e as notas musicais do violão. Por fim, nos desvencilhamos antes que os silicones começassem a rolar pela escada.
– Trouxe cerveja. Quem é esse cara? Ela perguntou-me.
– Não sei – respondi.
– Hei cara! Quer cerveja?
– Quero.
Levantou-se e levou a garrafa até ele, que estava há uns três passos da gente. Ele bebeu no bico e agradeceu.
– Qual seu nome? Ela continuou.
– Claudio e o seu?
– Glória. E esse daí é o Ramon – apontou o dedo pra mim.
– De onde vocês se conhecem?
– Do bar – eu disse – tirei a touca dela e se apaixonou por mim.
– Haha – ela riu – Toca algo pra gente ouvir Claudio.
– Pode ser – falou preparando as próximas notas.
Ele não cantava, só tocava, isso criava um ambiente funeral, e porra, eu não podia morrer antes de comer a Glória. Esperei ele acabar sua música instrumental e pedi o violão. Não conseguia lembrar de nenhuma música que sabia inteira e devolvi o violão.
– Hei Cláudio – eu disse – toque algo que você possa cantar também.
– Vou tentar.
– Glória, me alcança a cerveja.
– Tá aqui Ramon.
Queria ir pra casa já, pra dela, pra minha, pra qualquer casa, mas ela permanecia mais elétrica do que nunca, suas pernas eram boas e o violão entusiasmava sua noite ao lado de um músico mudo e um trabalhador exausto. Era o pó, eu não teria chances com ela. Comecei cogitar a hipótese de perder a mulher pro músico, e isso sim naquela hora seria pior do que perder um dente da frente. Deixei Glória falando com ele um tempo e fiquei bicando a garrafa até acabar.
– Hei vocês dois – eu disse – ficamos sem cerveja.
– Sem problemas Ramon, vou até o bar pegar mais uma – ela disse.
Mijei na árvore por longos segundos. Às vezes alguma pessoa passava por ali, mas era raro e ninguém notaria três milímetros a menos, se bem que mole parecia ter um quilômetro abaixo da média.
– Me empresta esse violão.
Toquei umas notas até onde conseguia lembrar delas, depois tentei lembrar de uma música que tinha composto aos vinte um ou vinte dois anos, a letra dela era assim:
“Nove meses abra os olhos
Indiferente do que ver e verá
Os sorrisos não são falsos ali
Não é tempo de se preocupar
Que coisa linda é o que dizem de ti
A bondade estampada em si
Um fantoche bem cuidado
Em anos vira zumbi
Obedecer, se defender, criar seus próprios momentos de lucidez
Geralmente é algo passageiro
Tornando visões reais
Ao seu jeito e ao seu modo de ver
Você ainda é capaz de obedecer, se defender, criar seus próprios momentos de lucidez”
Era impossível lembrar, realmente estava cansado. Pensava comigo que já tinha meio conto pra escrever, mas seria muito melhor terminá-lo com uma trepada. Ela voltou com a cerveja e sugeriu descermos até um gramado que se situava em nossa frente, há uns dez metros. Concordamos e fomos lá. No que sentamos pude ver uma alma transportando alucinações por perto da escada que recém tínhamos deixado, com um jeito peculiar de andar e observar.
– Ô filho da puta! Gritei pra alma.
– Quer ver um filho da puta na minha zorba? Quer? Quer?
Ele não conseguia distinguir quem éramos, ou melhor, quem era o filho da puta que o chamava de filho da puta.
– Eduard seu pateta! Junte-se a nós!
Deu uns passos por meio das sombras e começou rir quando me viu.
– Porra Ramon! Quase tiro o pau pra fora.
– Senta aí e bebe essa cerveja. Onde estava indo? Perguntei.
– Saí pra dar uma volta. Quem são eles?
– Essa é a Glória, aquele é o Cláudio, e o violão não sei o nome.
– Vamos pra praia? Já indagou Eduard.
– Vamos!! Respondeu calorosamente Glória.
– Não vou – respondeu o aborrecido Cláudio.
– Vamos pra qualquer lugar – respondi.
– Hei Cláudio, anima e vai tocar um violãozinho na praia! Estou de carro – continuou ela, realmente excitada com a proposta.
– Não quero Glória, podem ir, vou pra casa.
Bom, não perderia a mulher pra um músico, no máximo pro meu único amigo. Nos encaminhamos ao seu carro, até então desconhecido, em um estacionamento. Até o momento eu encarava Glória como aquela história de alguém indo fazer uma entrevista no hospício e encontrando um paciente conversando com uma árvore no meio do pátio. O entrevistador pergunta:
– Sinceramente, pensa comigo agora, você não acha maluquice um ser humano conversar com uma árvore?
E o paciente responde:
– Maluquice seria se ela não estivesse me respondendo.
E pra mim, nós dois éramos as árvores.
Antes de entrarmos em seu carro, ficamos dando instruções pra ela conseguir manobrar. Quando conseguiu virar e endireitar a ponta do carro, parecia em fuga.
O Eduard voou para o banco traseiro e eu sentei na frente.
– Preciso ir pra casa trocar de roupa – disse ela.
– Acelera isso aí Glória!! Disse Eduard, chegando a Marte flutuando.
Eu queria rir, rir do dia inteiro. Éramos todos marionetes impulsionados pelo fervor das emoções. Podia ver nas manchetes “Metido a escritor morre afogado antes de comprar seus livros. Editora contata a família, e mãe responde: Não sei de nada, não pagarei nada. Meu filho escritor? Pra mim não passava de uma grande decepção que não queria estudar e nem tomar água”. E eu vazando água salgada pelo cu, provando mais uma vez que se a sede mata, a água também.
Enquanto ela dirigia eu passava minha mão em suas coxas, suas sensações a faziam dar uma pisadinha a mais no acelerador, o carro então parecia um coração com arritmia, bombeando Ramon, Eduard e Glória pelas vias circulatórias, três glóbulos vivos boiando através do álcool, maconha e pó respectivamente.
– Acelera Glória, acelera! Continuava o Eduard.
– Não anda mais que isso! É 1.0! Qual seu nome mesmo?
– Eduard. Já esqueceu?
– Me desculpe.
Que belas pernas. Enfiei a mão por dentro do shorts e só aí que percebi, estava sem calcinha e não se depilava há tempos, talvez essa fosse a promessa, raspo a cabeça e encabelo a buceta. Deixei que meus dedos ficassem presos, dando nós e nós. 1.0, pé no fundo, rumo a sua casa, precisava trocar de roupas.
Chegamos lá em torno de sete minutos após sair do estacionamento. O portão foi aberto pelo controle de dentro do carro, por ela óbvio. Acelerou e subimos uma rampa até a garagem. A casa era imensa só de olhar por fora. Dois andares, uma porta frontal, uma sacada no segundo andar com mais algumas janelas ventilando o ambiente. Embaixo somente uma janela, a do seu quarto. Dois carros a mais que o 1.0 estavam estacionados na rampa. Um gramado ainda completava o terreno até as cercas laterais.
– Podem entrar – ela disse. E foi correndo pro seu quarto.
Por dentro era surreal a visão. Uma guerra com mais de quinhentos combatentes não teria bagunçado tanto a sala. Algumas facas espalhadas pelo chão, com panelas, travesseiros, em torno de trinta maços de cigarros lacrados, cobertores, um pau de borracha, belas calcinhas, e tantas coisas absurdamente agrupadas naquele espaço sagrado, afinal, por trás de tudo ainda havia um altar montado, com uma santa abençoando anjinhos menores e cheirando a fumaça das velas queimando lentamente.
– Que loucura! Disse Eduard.
– Podem entrar aqui! Ela gritou do quarto.
Seguimos a voz. O quarto também, cenário de uma guerra, a guerra de Glória contra o mundo, e dois soldados sobreviventes faziam o reconhecimento do terreno, pisando devagar, tentando encontrar uma simples razão pra tudo aquilo antes que explodíssemos em uma mina terrestre, uma mina loira de cabelos curtos, extremamente receptiva e amável. Ela já vestia uma calça preta com uma camiseta branca, olhava-se no espelho e não se agradava com o que via.
– Está linda Glória – falei.
– Está demais! Disse o Eduard.
– Estou horrorosa – completou ela.
– Você disse que não queria ficar bonita mesmo.
– É Ramon, nem bonita nem horrorosa.
Abriu uma porta do seu guarda-roupa e retirou três perucas. Uma vermelha, uma rosa e uma loira. Fiquei somente observando sua naturalidade em desviar das tralhas e pisar nos poucos pontos vagos do piso, só com a ponta dos pés. Granadas, granadas, granadas em sua vida, e ela usaria todas pra se defender e pra ganhar sua guerra, a guerra de Glória contra o mundo, Glória contra Glória.
– Qual peruca você prefere Ramon?
– Preciso vê-la com todas pra saber.
Primeiro vestiu a loira.
– Tenta outra – falei.
Vestiu a rosa, parecia uma boneca com olhos de bruxa, nada tinha a ver com ela.
– Não gostei – eu disse.
– Também não.
Então só restava a vermelha, a mais comprida, chegava até sua bunda e a tornava demoníaca, uma espécie de brasa queimando seu corpo, fazendo-a brilhar em meio à guerra, como um sinalizador único, mantendo-se aceso por trinta e um anos e fervendo suas entranhas, conservando suas volúpias aquecidas e endurecendo meu membro.
– É essa – falei. Agarrei-a pela cintura e nos beijamos.
Acariciou meu pau por cima da calça e disse:
– Vamos pra praia!
Fui pra fora da casa enquanto foi procurar a chave de outro carro. O clima era mais gelado que o normal, o vento batia em mim e no Eduard, fazia a chama dos cigarros iluminarem-se, a noite seria longa, Ramon não escreveria nada naquele dia, se era um conto que procurava naquela tarde quando se juntou aos parceiros de emprego para uns goles, havia encontrado muito mais.
Ela saiu pela porta, trancou-a, estava apressada e entusiasmada, uma bunda apressada e entusiasmada, peitos apressados, entusiasmados e siliconados, que antro feminino e diabólico.
– Desculpem a demora – ela disse.
– Posso dirigir? Perguntei querendo um “não” como resposta. Estava tonto, consciente mas tonto, ao ponto de querer dirigir após dois anos parado e bêbado.
Jogou-me a chave e disse de qual carro era. Podia ver nas manchetes “Metido a escritor arrebenta carro em árvore com mais dois ocupantes, mas só ele morre, graças a Deus antes de publicar um livro inteiro. Editora e os dois sobreviventes do acidente cobram suas dívidas e mãe responde: Meu filho escritor? Nunca ouvi falar. Um carro novo? Não sei de nada. O imprestável só morreu porque não sabia beber água”.
Fomos até a minha antiga moradia pegar a vodca e a erva.
– Já volto aí – disse Eduard ao fechar a porta traseira do carro.
Tirei os peitos dela pra fora e comecei mamá-los no banco do carona.
– Para! Para que tá frio!
Estupendos, uma cirurgia bem feita.
– Huuummm Ramonnn Huuummmm.
Mordi e lambi, enquanto deslizei a mão, soltei os botões de sua calça e com certa dificuldade infiltrei minha mão até o molho. Que sensação ótima molhar os dedos, morriam afogados como um caldo de galinha. “Afogue-nos Ramon! Afogue-nos!”, e eu afoguei-os.
– Huuuummm Huuuummmm
– Vou te foder Glória, vou te foder aqui.
– Não vai, huuuuummmm, não vai Ramon, huuuuummmm
Tirei a mão do molho e abri o botão da minha calça, foi quando a porta traseira se abriu e o Eduard entrou.
– Pronto – ele disse – podemos ir.
– Vamos lá Ramon, vamos pra praia!
Abotoei as calças e desci o morro íngreme, dava graças a Deus por não precisar subi-lo a pé todos os dias.
– Pra qual praia vocês querem ir? Não sei chegar a nenhuma – falei.
Eu era guiado por ela, só andava devagar, virava e parava nas esquinas.
– É por ali.
– Ok Glória.
Não lembro depois de quanto tempo chegamos. Nem que horas eram, mas lembro do vento e do cachorro solitário que guardava a praia pra si, sentado na areia, somente ele naquela imensidão que fazia sua curva sem pressa entre o mar e as rochas. O cão rosnou ao nos ver pisando na sua areia, no seu momento de reflexão. Sentamos em uma parte mais escura, eu com a vodca, Eduard tentando acender seu fumo e Glória olhando para todos os lados.
– Vou procurar um lugar pra cheirar essa bucha – ela disse.
Foi se arrastando contra o vento, contra a areia, contra a guerra e o mundo, Glória e sua glória. Deslacrei a vodca, dei um gole pra esquentar.
– Que incrível esse céu – ele disse.
– É o mesmo – eu disse – só está carregado e escuro.
– Pra onde ela foi?
– Não sei. Tô cansado.
– Para com isso. Relaxa e aproveita.
– Quero dormir.
– Que horas são?
– Hora de dormir.
– Também to com sono. Quer dar uma bola?
– Não.
– Então dá uma cheirada e acorda.
– Não vou cheirar nada. Quero dormir cara, gosto de encher a cara e dormir, é como um pacto, depois de encher a cara dormir, dormir pra sempre.
– Não vai trepar?
– Trepar e dormir. Ou talvez dormir enquanto trepo, ou trepar enquanto trepo, ou dormir enquanto durmo, to acabado.
Nesse instante ouvimos uns gritos parecidos com uivos, vinham de uma escuridão atracada em nossas costas. Era Glória correndo e gritando, no caminho desvencilhou a peruca da cabeça e continuou gritando, uivando e correndo. Passou por nós erguendo areia por trás dos calcanhares e seguiu em direção ao mar. Estava possuída, derrubaria um trem dos trilhos, mantinha uma linha reta. Alcançou a água, o oceano notou seus pés afundando e apavorando suas águas frias e poderosas.
– O que ela está fazendo? Perguntei pro Eduard.
– Não sei. Acho que foi nadar.
– Porra, nesse frio?
– Ela não sente frio. O mar que cuide dela.
Dentro do mar ela ainda gritava e batia as mãos. Passava as mãos sobre a cabeça quase careca.
– Entrem vocês também! Ela gritou de lá.
– Se entrar eu durmo! Gritei de volta.
Passados uns dois minutos ela não aguentava mais o frio. Saía do mar na mesma velocidade com que tinha entrado. Sentou-se ao meu lado tremendo e molhada. Me deu um beijo e me chamou para ir atrás da sua peruca.
– Já voltamos – falei pro Eduard.
Ele concordou com a cabeça e deitou-se na areia. Caminhamos um pouco, peguei sua peruca e coloquei na minha cabeça, mas nem aquele vermelho me fazia esquentar, pensei que ela morreria na volta, toda molhada, mas ela tinha algo que a mantinha mais viva do que eu.
– Vamos até aquele muro ali em frente. Quero cheirar o resto. Depois vamos pra casa – finalizou.
Eu estava a ver navios, concordaria com qualquer coisa desde que fossemos pra casa. O vento começava me sufocar e abalar minhas tripas. Calafrios corriam dos calcanhares até os cabelos. Queria dormir, só isso, trepar e dormir, ou só dormir já estava bom. Ela deu sua cheirada milagrosa e estufou os olhos.
– Você fica lindo com essa peruca Ramon. Eu te amo.
– Sim Glória, podemos ir pra casa agora?
– É sério, eu te amo.

Van grogue

O sotaque das andorinhas
Enquanto flutuam molhadas
Entre o nevoeiro, os postes e as chaminés
O pingo de chuva
Que ressoa alto ao cair
Sobre a panela jogada ao lado da lixeira
PIM!……….PIM!……….PIM!
Imagem recortada por pilastras
Onde o mar mais parece
Uma pista de cimento
Incontáveis cores desbotadas
Que misturam-se, não vibram
Essa faca que rasga o DNA de um homem
Esse humor que suporto em mim
PIM!……….PIM!……….PIM!……….

Passado envelhecido ( VII )

Falar, falar, falar. “Tudo bem?” é a coisa mais estúpida. Ninguém está bem. “Sim, tudo bem” é a coisa mais mesquinha. Quando digo “Tudo bem?”, não quero saber se está bem. Lembre-se disso. Se não for minha mãe ou minha mulher, acredite, não ligo, nem você. A não ser que eu descubra sua malícia pro lado da minha mãe ou que anda fodendo minha mulher, aí seu “Sim, tudo bem” pode ser o último. Quanta besteira, minha mãe é virgem, esse é o clichê da minha infância. Minha mulher não daria pra você, ela também é virgem desde os quarenta anos, hoje tem vinte e não quer dar pra mim. O máximo que consegui foi um beijo, não de língua, na fenda. Juro que senti eletricidade lá capaz de iluminar Tóquio. Fiz até cálculos físicos e cheguei à conclusão que sua urina manteria acesas três lâmpadas de 60 watts por treze minutos. Se duvidar traga as lâmpadas e um penico. “Não duvide dos meus cálculos, tudo bem?!” Sou estúpido. “Sim, tudo bem”, você é mesquinho. “Tá de olho em minha mãe?”, “Mas é claro, sou seu pai”, “Trouxe as lâmpadas e o penico?”, “Estão comigo”, “Siga-me”.  Falar, falar, falar. “Qual seu nome?”, “Pinto Mole e o seu?”, “Mole Pinto, xará”. “Legal, tem apelido?”, “Fimose, e o seu?”, “Cancro mole”, “Isso significa que seu primeiro nome faz parte do seu apelido e meu segundo nome também”, “Sim, fimose”, “Não me chame de fimose Mole Pinto”, “Por favor, me chame de cancro mole”, “Me desculpe cancro mole”, “Deixa disso Pinto Mole, somos amigos”. Falar, falar, falar. “Como anda a família?”, “Não andam mais. Somente voam”, “Quanta esperteza”, “Realmente. Somente eu não voo”, “E por que não?”, “Não tenho asas”, “Que situação, hein?!”, “Verdade. E sua família, como vai?”, “Não vai mais. Só vem”, “Mas vem de onde se não vai?”, “Vem do vem”, “Interessante. Você vai ou vem?”, “Vou”, “Pra onde?”, “Pro vem”, “Então vai logo”, “Sim,  vou”, “Você disse vou ou voo?”, “Eu disse vou”, “A bom. Pensei que estivesse tirando sarro da minha família”. Falar, falar, falar. “Acredita em Deus?”, “Dizem que Deus está em cada um de nós, pois bem, então é conveniente que cada um tenha sua própria relação com o seu. Religiões querem padronizar o espírito humano”, “Então quer dizer que acredita?!”, “No meu não. E você acredita?”, “Como posso acreditar se o meu me deve vinte paus”, “Cretino”, “Sempre as mesmas desculpas. O eclipse inflacionou, manutenções na Lua, o Sol e suas horas extras, trocar peças na Terra, os carcereiros do diabo…enfim, acho que posso esquecer a dívida”, “Tentou negociar por uns anos a mais vivo?”, “Tentei, mas ele disse que não passo do dia quinze de março desse ano”, “Eita. Que dia é hoje?”, “Quinze de março”, “Puta que pariu. Há quanto tempo lhe deve a grana?”, “Pediu ontem”. Falar, falar, falar. “Viu só quem o Carlão tá traçando????”, “Quem?”, “A Rita!!!!”, “Quem é Rita?”, “Sua mulher, idiota!!”, “Minha mulher não se chama Rita”, “Não?!”, “Não. Chama-se Alfredo”, “Alfredo?!”, “Exato. Minha filha Alfredo Jr. e meu filho Carmem”, “Para com isso Felício”, “Meu nome é Suzana”, “Suzana?!”, “Exato Rui”, “Meu nome é Samanta”. Falar, falar, falar. “Vai fazer o que amanhã?”, “Pretendo comprar uma tesoura e me castrar. E você?”, “Quero comprar uma tesoura e cortar as unhas”, “Que nada, usa a minha”. Falar, falar. “Assistiu o filme ontem?”, “Só o começo e você?”, “Só o final”, “Viu a hora que o pai supostamente vende a filha? Inacreditável”, “Não. Viu a parte do aborto? Te falar, nojento”, “Não vi. E quando o policial chorou porque matou o cara errado? Minha nossa, quase chorei”, “Baaaa, não vi. E aquela velha na cadeira de rodas que se jogou da ponte? Sinistro”, “Perdi essa parte. Me diz uma coisa, eles conseguem explodir o trem?”,“Qual trem?”, “Do começo”, “Não vi o começo”, “Putz, o plano principal era explodir o trem”, “Devem ter explodido então. No final o extraterrestre salva a garotinha da usina nuclear”, “Enfiaram extraterrestres no filme? Que loucura!”, “Qual era o nome do filme? Quero assistir desde o começo”, “Não lembro. Já era tarde, estava morrendo de sono por isso só consegui ver o começo”, “Que coisa de velho dormir às dez da noite”, “Dez nada, já era três da manhã”. Falar. “Tá namorando?”, “Sim e você?”, “Também”, “Quer matar minha namorada?”, “Quero matar a minha”, “Podemos trocar de namoradas, aí você mata a sua”, “Se trocarmos de namoradas, então posso matar a sua com muito prazer”,“Que sacanagem trocarmos de namoradas e você matar a minha”, “Sacanagem é você sugerir trocarmos de namoradas pra eu matar a minha”, “Acho justo trocarmos de namoradas e cada um mata a sua”, “Fechado. Qual o nome da sua?”, “Maribel e da sua?”, “Também”. Fal….
Saí de casa no sábado pela manhã com uma ressaca infinita, o que todos sabem não ser aconselhável, ainda mais quando o Sol está fazendo suas horas extras. Pensei em como seria bom um eclipse, mas a Lua parecia velha demais pra esse tipo de coisa. O calor era infernal e o diabo certamente havia fugido do cárcere. Meu destino único era uma dessas lojas que vendem de tudo, desde trens, a abortos, extraterrestres e cadeiras de roda.
Cada um tem seu jeito de lidar com a ressaca, o meu é dormir exaustivamente, ao ponto de nenhuma explosão nuclear acordar-me, mas quebrei o ritual, pois precisava comprar duas coisas fundamentais, coisa rápida, afinal, encontrar uma loja dessas não é difícil hoje. A competição moderna fez mercados venderem pneus, farmácias venderem pneus, igrejas venderem pneus, borracharias venderem mercados, farmácias e igrejas, assim por diante, vocês sabem onde quero chegar, claro que sabem, na loja pra acabar logo com isso e voltar a dormir.
Adiantando a história, cheguei ao lugar. Que sacrifício ter que falar naquela situação de corpo e mente. Cadê a modernidade nessas horas? Leia meus pensamentos, por favor, implorei telepaticamente pro primeiro vendedor que visualizei, ele foi em direção a um pneu, e eu pensei: “Que diabos estou pensando em pneu numa hora dessas?”.
– Hei senhora – ele disse erguendo o pneu – não vai esquecer seu pneu.
Fui em sua direção matutando freneticamente minhas duas coisas fundamentais.
– Bom dia. Tudo bem? Ele disse mirando-me.
Que estúpido, óbvio que não estava tudo bem.
– Sim, tudo bem – respondi.
– Em que posso ajudá-lo?
– Quero comprar duas coisas, mas estou em dúvida se vendem aqui.
– Aqui tem de tudo. O que precisa?
Rui dizia seu crachá. Se eu fosse seu pai teria lhe dado o nome de Pinto Mole e o apelidaria de fimose ou cancro mole. Cacete de vendedores convencidos.
– Preciso de três lâmpadas 60 watts e um penico – falei.
– Mas é claro que temos. Temos lâmpadas capazes de iluminar Tóquio, além de penicos personalizados. Vou pegar as lâmpadas e umas amostras de penicos pro senhor olhar, são uma beleza!
Aguardei. Os crachás passavam por mim: Rita, Alfredo, Alfredo Jr, Carmem, Suzana e Samanta. Todos com seus sorrisos matinais desanimadores insistiam na mesma pergunta, “Tudo bem?”, “Sim, tudo bem” eu respondia. Estúpidos, com certeza me acharam mesquinho. Que calor! Até emprestaria meus últimos R$ 20,00 pra Deus parar com aquilo, mas conforme informações nunca mais veria o dinheiro. Olhei para o calendário da parede, já era quinze de março, algo me dizia que morreria nesse dia.
Rui trouxe as lâmpadas e alguns penicos coloridos. Colocou-os sobre um balcão.
– Pode olhar o tempo que quiser, pegar na mão se quiser – falou.
– Farei isso – respondi.
Sem conseguir ficar quieto e percebendo minha indecisão nos penicos, puxou papo. Desgraçado.
– Você é natural daqui?
– Não.
– Também não sou daqui. Nasci no Rio de Janeiro. Vim pra cá com minha namorada, a Maribel, as vezes tenho vontade de matá-la, mas sabe como é….me falta coragem.
– Compreendo.
– Poderia matá-la pra mim! Hahahaha.
Nem respondi.
– E sua família onde está? Continuou.
– Em casa esperando o penico. Preciso me apressar antes que se caguem nas calças.
– Me desculpe, mas preciso rir disso.
– Tudo bem Rui, pode rir. A sorte deles é que só conseguem cagar com a luz acesa, por isso as lâmpadas.
– Família complicada, hein?!
– Naturalmente. Vou levar esse aqui mesmo.
– Posso colocar tudo em uma só sacola?
Iria castrá-lo com uma tesoura caso ouvisse mais perguntas.
– Embrulha pra presente – falei.
– Sem problemas.
Até continuaria o conto, mas passam das três da manhã, já é dezesseis de março e não aguento mais.

Estava em apuros

Por onde olhava via formigas, caminhavam por toda quitinete, e o pior, eram todas iguais, portanto tinha que odiá-las igualmente, se matasse uma, teria que matar todas, nada de privilégios. Um grande grupo circulava por cima da pia da cozinha, esperavam a “casca” do pedaço de salame diário ser jogada lá, para adiante carregarem com dificuldade, pra onde não sei, mas levavam. Já o grupo que cuidava do chão da cozinha esperava farelos, de qualquer coisa. Elas me conheciam a esse ponto. Sabiam tanto sobre mim que jamais arriscavam entrar no banheiro. Grande erro, pois era lá que traçava o plano de exterminá-las. Primeiramente, pra ter certeza que meu cativeiro estaria longe de espiãs, comia uma fatia de pão com salame, interpretando uma farta refeição na mesa, sem vestígios de genocídio próximo. Quando a “casca” em cima da pia movia-se discretamente, “sem querer” empurrava farelos de pão da mesa pro chão. Então, seguindo com o teatro abria a porta da geladeira e tomava um copo de água, com os olhos fixos nos farelos, que logo se moviam discretamente também. Só nesse momento entrava no banheiro e sentava no vaso. Era difícil ter uma contagem exata, por isso fixei o número em um bilhão de formigas, todas com o mesmo tamanho 8 milímetros, nascidas no mesmo dia. Criei três perfis:
Formigas da pia: astutas, persistentes, pacientes, famintas e organizadas. Nunca andam sozinhas, estão sempre acompanhadas de duas ou mais parceiras. Sua comida predileta é “casca” de salame. Detestam fumaça de cigarro, bagaço de limão e respingos d’água da torneira. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora e mínima 2 quilômetros por hora.
Formigas do chão da cozinha: egoístas, desorganizadas, prepotentes e desequilibradas. Não gostam de companhia, carregam seu próprio pedaço de pão e se for preciso morrem por ele. Além de farelos, demonstram interesse em açúcar, gotas de suco de limão e raras se arriscam na cerveja preta. Abominam chulé e gordura. Velocidade máxima 9 quilômetros por hora e mínima 3 quilômetros por hora.
Formigas do quarto: alegres, receptivas e sonhadoras. Geralmente nem sabem onde estão, nem com quem, mas isso nunca parece ser problema. Sem preocupações na vida, comem o que aparece, desde insetos mortos até migalhas de bolacha recheada. Se coçam por uma cervejinha e cinzas de cigarros. Ainda não descobri o que execram. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora sem beber, e mínima 4 quilômetros por hora sem beber. Ponto relevante: quando bebem muito, permanecem no mesmo lugar por horas.
A partir destas constatações, meu primeiro plano foi confundir os grupos, criar um caos generalizado na casa, gerar conflitos de satisfações íntimas ou grupais. Testei a seguinte solução: largar a “casca” de salame no quarto, farelos de pão sobre a pia e derramar cerveja no chão da cozinha. O que aconteceu:
Formigas da pia: reuniram todos os farelos em um só monte, fizeram uma breve contagem percentual, e em círculos andaram todas a 7 quilômetros por hora, realizando um ritual de agradecimento aos seus deuses. Sem demora, quatro formigas apareceram carregando um pedaço de “casca” de salame, não sei de onde, e se alimentaram ali mesmo, uma refeição completa.
Formigas do chão da cozinha: Houve troca de empurrões e pisoteamento por cada gole da cerveja. Aquelas raras da cerveja preta aguentaram mais trago, as outras saíram rastejando e vomitaram nos pés da mesa. Somente um grupo de dez formigas negou-se a beber, mas quando notaram o fim da cerveja brigaram entre si para saber de quem tinha sido a ideia idiota de não beber.
Formigas do quarto: não perceberam a “casca” de salame. A única muvuca ocorreu quando uma formiga de ressaca caiu de cima do guarda-roupa. Boatos sobre tentativa de suicídio se espalharam, promovendo uma rápida passeata perto do ventilador por direitos homossexuais, porém a própria formiga que caiu acabou contando os verdadeiros motivos do tombo. Pra não passarem por bobas, as formigas da passeata aceleraram para 10 quilômetros por hora, exigindo mais insetos mortos, cerveja cara e cinzas de cigarros brandas. No fim da noite organizaram uma suruba de confraternização.
Sem sucesso, tive que voltar para o vaso e pensar um novo plano. Em minha mente, ainda permaneci com a ideia de caos e guerra entre elas para o extermínio total. O que resolvi fazer foi o seguinte: capturar três formigas, uma de cada grupo e desloca-las para outro território, assim, proporcionaria divergências de opiniões e atitudes, quem sabe até um assassinato brutal, isso seria capaz de gerar nocividade, e por fim, o holocausto tão desejado por mim. Uma formiga do quarto introduzi no grupo do chão da cozinha, uma formiga do chão da cozinha foi pra pia e uma da pia foi pro quarto. Eis o que se sucedeu:
Formigas da pia: estranharam a presença de uma individualista. Se dirigiram em grupo ao encontro para saber quem era, e afinal, o que acontecia com ela. A egoísta evitou cerimônias, dizendo não saber o porque de estar ali, e afirmou que o egoísmo era a cura pra qualquer loucura. As formigas da pia, por sua vez, sabiam o que fazer. Carregaram a formiga do chão nas costas e lhe ofereceram uma farta refeição com farelos e “casca” de salame. Dançaram pra ela, lavaram suas antenas, e por fim, lhe deram um cargo importante entre elas. Foi inevitável a aceitação.
Formigas do chão da cozinha: se perguntavam intimamente quem era aquela formiga correndo pelada e batendo a cabeça na parede. Sentiram, todas, uma imensa vontade de imitá-la, mas tinham vergonha, vergonha dos risos, por isso contentaram-se observando. Essa pelada correndo a 12 quilômetros por hora (tinha bebido), para se enturmar resolveu promover uma suruba. E o que aconteceu foi que todas formigas brocharam perante a pressão imposta. Percebendo aquilo, a impostora que agora estava no chão da cozinha resolveu voltar pro quarto, mas acabou se perdendo e entrou no banheiro, onde morreu por asfixia. No laudo consta overdose. Heroína.
Formigas do quarto: acordaram com ordens e gritos da formiga da pia, “Vamos acordar”, “Está na hora”, “O que temos pra hoje?”, “Casca ou farelo?”. Sem ligar praquilo, todas se dirigiram ao cinzeiro e às garrafas de cerveja. Fiquei só observando. Como as ordens não paravam, uma sugeriu “Que tal uma suruba pra acordar?”. E todas foram pro canto do quarto, inclusive a da pia, que acabou se apaixonando no meio daquilo tudo. Sentimental demais.
Sentado no vaso resolvi apelar pra crueldade. Estava em apuros mesmo. Despertei no meio da madrugada pra matar uma formiga de cada grupo e deixar a cena com evidências claras de assassinato por alguma facção rival. Finalmente a rebelião iria começar. No quarto não foi difícil, sempre tinha uma quase morta por perto. Dei uma chinelada nas ancas, ela dobrou-se toda, estava morta. Como pista, deixei resquícios de “casca” de salame ao redor do corpo simulando um possível latrocínio. Sobre a pia, um pequeno grupo de cinco perambulava observando a escuridão e sentindo a brisa. Esperei pra ver se ao menos uma se dispersava da turma, o que não aconteceu, por isso, só por isso, com duas chineladas matei todas.Após, arranquei pernas e antenas de todas, sugerindo uma chacina seguida de esquartejamento. Para parecer serviço de outro grupo, deixei rastros de cerveja preta contínuos. As da pia não bebiam bebidas alcoólicas. Perfeito. No chão, achar uma formiga andando sozinha foi a coisa mais fácil. Derramei álcool sobre ela e acendi com um fósforo. Como eu sabia que dificilmente aquelas egoístas iriam ligar pra formiga carbonizada, saí pela porta da quitinete e fui procurar uma formiga menor, com no máximo 2 milímetros. Queimei-a da mesma forma e pus os restos mortais ao lado da anterior. Matar uma mãe e sua filha tostadas teria que despertar revolta. Como prova fiz um caminho de cerveja, dos corpos até o quarto. Reações:
Formigas da pia: chocaram-se ao ver a cena, teve até tentativa de ressuscitação em vão. Organizaram uma missa dentro de um prato, gritaram por justiça divina, e concordaram em passar um dia sem comer para demonstrar o luto. No dia seguinte deixaram cinco pedaços de “casca” de salame onde as mortas foram encontradas.
Formigas do chão da cozinha: trafegaram normalmente ao redor dos corpos, até que duas formigas passaram por perto ao mesmo tempo e começaram brigar pelo pedaço maior de farelo do pão torrado. A vencedora levou a mãe, a perdedora contentou-se com a filha.
Formigas do quarto: praticaram necrofilia por horas. Quando perceberam que havia um óbito, partiram para uma passeata, reivindicando melhor sinalização no azulejo.
Diante das consequências, tomei outra decisão. Chega de caos. Usaria veneno. Uma seringa com líquido transparente. Resultado:
Formigas da pia: mortas.
Formigas do chão da cozinha: mortas.
Formigas do quarto: mortas.
Eu: relatei os acontecimentos e fui promovido para o próximo verão.

Passado envelhecido ( VI )

Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade.
– Como não sente as pernas?
– Mas como é que vou saber?!
– Está deitado?
– Mas é claro.
– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.
– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.
– Tá brincando comigo Ramon?
– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.
– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.
– Acordei aqui, não lembro de nada. Parece uma casa, estou deitado sobre uma cama box muito confortável. Não sinto dores. A porta do quarto está aberta, logo rastejarei pra fora daqui. Antes queria que soubesse minha situação supervisor. Desculpe-me, se conseguir irei rastejando até aí. Só preciso me localizar.
– Para de brincadeira Ramon! Se não quer vir trabalhar, apenas não venha diabo! É só um dia descontado, que palhaçada por R$ 20,00.
– Ouvi barulhos. Preciso desligar.
Desliguei. Ergui-me do meu colchão no chão, acendi um cigarro e comi cinco biscoitos de água e sal. Uma chuva torrencial tocava o calçamento da rua onde moro, também tocava o telhado, um fusca e três cachorros molhados que se divertiam às 07:30 da manhã. Meu ciático e seus eletrochoques permanentes nas nádegas faziam-me ficar balançando no banquinho, enquanto comia mais biscoitos. Na próxima ligação daria mais ênfase ao drama. Palhaçada R$ 20,00? Palhaçada era trabalhar fazendo força o dia todo por R$ 650,00 ao mês, sem plano de saúde e insalubridade. Palhaçada sair de casa naquela chuva, com dores irradiando até o final das pernas. Palhaçada era estar escrevendo um conto enquanto tudo isso acontecia, com o dia transcorrendo negro, e a brisa movendo a cortina plástica e curta que comprei quando vim morar aqui. Em qualquer trabalho é necessário faltar. Quem não falta um dia pira, coloca par de meias com cores diferentes, chega com a camiseta pelo avesso, com cheiro de trago, com os pentelhos altos, com dores, muitas, com medo, com as unhas grandes, com fome, com vontade de matar, de queimar, de aleijar, não dá pra cair e rastejar por eles, “O Teodoro sim era um exemplo de funcionário, nunca faltou! Veio trabalhar até com as hemorróidas expostas!”, e o Teodoro está lá, sangrando por eles. Não, não, a paciência em excesso faz bem para tolos ou religiosos. Sou um bom sujeito. Deveras mais complicado que bom, quando minto me complico, mas não perderia meus R$ 20,00. Voltei para o quarto e liguei novamente:
– Diga Ramon.
– Não estou entendendo nada. Ouvi barulhos por perto, mas logo afastaram-se. Fiquei com medo, por isso não chamei ninguém. Consegui descer da cama pelo lado do guarda-roupa e fui rastejando paulatinamente, mas aí fodeu tudo. Tem um velho desacordado no chão do quarto, respira, cutuquei nas costelas, não sei o que ele tem.
– Vai continuar com essa história? Vou agora na tua casa e te pego pelo pescoço.
Ele nem sabe onde moro. Apenas três pessoas que sabem meu nome também sabem o lugar que passo as mais longas noites. Uma ex-namorada, uma prostituta e o proprietário da casa. No cadastro da empresa consta meu antigo endereço e não recebo visitas. O entregador de bebidas do bairro também sabe, mas nunca disse meu nome para ele, me chama de “Esponja”, e eu o trato como “Drácula”. Formalidades genuínas.
– Vai lá então. Digo a verdade. Vai me ajudar ou não? Passos, passos, me ajude, por favor!
Desliguei. Tive que rir. Liguei de novo:
– Sim?!
– Ei Drácula, bandido, pode me trazer três garrafas de vinho?
– Agora não dá pra sair daqui.
– Por quê?
– Faleceu um tio da minha mulher. Só estou organizando pequenas coisinhas aqui e logo iremos ao velório. Se correr, espero você chegar aqui.
– Não sinto minhas pernas. Fica pra próxima.
– Fico te devendo essa “Esponja”.
– Tranquilo “Drácula”, sem formalidades.
Resolvi escrever. Na maioria das vezes ouvia música para desenvolver algo, principalmente blues, mas desta vez encontrei a harmonia necessária nos estampidos da chuva no telhado. De um modo estranho e bonito, lembrei-me daquela vez, quando tinha meus sete anos no máximo e uma tempestade colossal caiu sobre nossa velha casa de madeira, construída ao lado de um barranco onde minha mãe extraordinariamente conseguia plantar mandioca. Meu pai não estava em casa, já era noite, já era hábito. O céu reluzia temor, e em todos os novos trovões era possível sentir a fossa em frente à casa tremendo. “Estou com medo mãe”, “Deixa de ser bobo piá, já passa”. Logo um vento poderoso fez a madeira das paredes estalarem, como se estivessem rachando aos poucos. Os fios elétricos mal esticados por fora da casa davam voltas como crianças brincando de pular corda e faziam sons de fantasmas. “Vamos todos morrer, mãe”, “Vai brincar com alguma coisa, só não liga a TV que pode queimar”. Foi ficando pior, fui pro quarto, mas quando faltou luz saí correndo de lá. Na cozinha minha mãe acendeu duas velas sobre a mesa e depois formou um ramo de folhas compridas que levou até à janela fechada. Com um fósforo ateou fogo nas folhas, abriu a janela e esticou o braço direito pra fora com o ramo na mão. Sua boca movia discretamente enquanto observava a fumaça sendo arrastada pelo vento. “O que está fazendo?”, “Logo vai passar, logo, logo…” ela respondeu. Se eu tinha desenvolvido algum tipo real de fé na vida já, estava todo voltado praquele ramo queimando, “Logo vai passar, logo, logo…” pensava. De repente um tremendo estrondo fez a casa balançar e a janela bateu com toda força no braço de minha mãe, mas ela persistiu até queimar metade do ramo. Depois recolheu o que sobrou e jogou dentro da pia, abriu a torneira e o fogo apagou. Agarrou as folhas e colocou-as dentro de uma sacola pendurada na parede. “O que vai fazer com elas?”, “Guardar pra próxima”. A tempestade ficou tão intensa e assustadora que comecei chorar abraçado nela, “Por onde anda teu pai agora?! Oh Deus, que esteja protegido no bar”.
Mas bem, não era sobre isso que queria escrever, então iniciei o conto assim:
“Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade”.
O telefone tocou, atendi, mas não disse nada, apenas respirei forte.
– Ramon, pode me ouvir?
– Fale, rápido.
– E aí?
– Ouvi passos até uma porta. Duas pessoas saíram conversando. Tentei acordar o velho, mas acho que precisa de um médico. Rastejei até a porta, está aberta. Consigo ver uma padaria daqui mas o nome é muito pequeno.
– Grite homem!! Chame alguém!!!
– SOCOOOORRO!!! SOCOOOORRO!!!
Ainda bem que não tenho vizinhos, pensei.
– Ligue pra polícia!!
– E direi que estou aonde?
– Pelo amor de Deus, rasteje até a rua.
– Farei isso. Vou desligar.
Queria rir por cinquenta anos, mas fui interrompido por batidas rápidas na porta. TOTOTOTOTOTOC. Não era possível, não, não era. Ao abrir dei de cara com ele:
– Tudo bem “Esponja”?
– Que susto me deu “Drácula”. Precisa bater tão forte na porta?
– Ouvi gritos de “Socorro, socorro”. Imaginei o pior.
– Ah, sim. Nunca ouviu essa música? “Socoooorro, socoooorro, roubaram meu bife pra apoio de mesa”.
Cantei pra ele. Cantei bem. Duas vezes.
– Desculpe, mas só ouvi “Socorro, socorro”, o resto da música passou despercebido.
– É que esse é o refrão e é cantado desse jeito. Grita-se na hora do socorro entende?! Só não gritei de novo porque perdi a voz.
– Trouxe as três garrafas de vinho. Minha mulher está ali no carro, vamos até o velório. Pode pagar amanhã “Esponja”. Melhorou das pernas?
– Melhorei. Obrigado “Drácula”.
– Até mais.
Que querido, pagar amanhã, falou por falar, sabia que só quitaria toda dívida final do mês, como todos anteriores. Velórios não melhorariam nossos negócios. Levei uma garrafa pro quarto. Continuei o conto bebericando no bico:
“…
– Como não sente as pernas?
– Mas como é que vou saber!
– Está deitado?
– Mas é claro.
– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.
– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.
– Tá brincando comigo alemão?
– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.
– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.”
Telefone tocou novamente:
– Alô – eu disse.
– E aí? Conseguiu?
– Sim chefe, estou indo para o hospital de ambulância.
– Está tudo bem? Onde estava?
– No centro.
– E o velho? Morreu?
– Morreu.
– Hahaha. Que ambulância silenciosa.
– Estamos parados.
– Hahaha. Vou até o hospital te ver.
– Não sei pra qual estão me levando. Deixa pra lá.
– Irei em todos.
– Boa ideia.
– Vai continuar com isso?
– Com isso o que?
– Tudo bem. Traga-me um atestado quando puder.
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
“R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
…”