consciência apurada – Eduard Traste
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Giro
Saudades do futuro que passou
Deixando nada mais que o passado presente
Confinando erros expulso nostalgia
Nostalgia que há por vir ontem
O dia de hoje é um dia atrasado de amanhã
O tempo me persegue três voltas à frente
Horas mentem
Minutos complicam
Segundos bastam
Meses atrás estarei lá
Ano que vem perdi sabe-se lá quando
Séculos vendidos como macarrão instantâneo
Julho não viu o verão
Júlio bronzeou-se no inverno
Judite quer um calendário A.C
Jezuz prefere feriados D.C
Francisco deseja um Chevette
E o ponteiro do porteiro quebrou
Onde estarão eu’s a partir de nunca?
em tempo
você chega do trabalho
e a mulher que até então dormia
levanta nervosa reclamando
do horário que você tá chegando
reclama do teu bafo, reclama dos vizinhos
das contas atrasadas, das compras esquecidas
do quanto você anda bebendo, urinando e cagando
reclama do silêncio após as bebedeiras
e também das novas goteiras
das trepadas abandonadas, dos ratos
que correm atrás do Rei de Roma
que drama..
ela reclama e reclama..
sim, sim, mas você ignora
porque ela não sabe do seu grande dia
de merda, então logo começa a beber
pra esquecer, enquanto ela continua
reclamando, reclamando..
determinada ela quebra 6 cervejas
numa só tacada, e tão logo às facas
estão nos devidos pescoços
tudo só não acaba em tragédia
em mais uma promissora noite
porque você acorda
em tempo de agradecer
por mais um dia,
livre.
Pai
no final das contas sou igual meu pai
percebendo que o exemplo antigo não bastou
provas e mais provas
o sofrimento é sempre transmitido, compartilhado por nós
nos olhos de meu pai eu vejo o nocaute
aborrecer para ser aborrecido
mesmo em mundos distantes, nos encontramos
seu eu foi mais forte que o meu
e do seu pai, maior que os nossos
e hoje eu percebo que você vive pela dor
meu mundo não é pior que o seu, como eu pensei
e eu também teria que confessar os mesmos pecados que os seus
mas seria pra outra pessoa
alguém que você nunca conhecerá
uma relação parecida com a nossa
desperdiçamos grande parte do tempo com o medo e os vícios urbanos
eu julguei quando podia julgar, um fardo que carregamos
transitamos pelo mesmo labirinto, mas você tem anos a mais nele
você sequer conhece alguns caminhos, mas não se perdeu sozinho
e iremos vagar no mesmo ritmo, nos mesmos passos
enquanto nossa pista for a mesma
ontem à noite
em alguns momentos o sujeito já velho
se pega revivendo um ou outro detalhe
que ficou para trás
simples momentos perdidos na linha do tempo
como sua mãe lhe chamando para jantar
em um dia qualquer de sua infância
você lembra exatamente da voz que ecoou
de sua casa até a rua onde você jogava futebol
e perdia as unhas do dedão. quantas vezes, não?
lembra de sempre gritar que eram só
mais uns minutinhos e você iria para casa
e então anoitecia e a velha aumentava o volume
das chamadas, e então quando já quase não dava
para ver a bola ou os outros meninos
você enfim ia para casa, chegava correndo
lavava rapidamente os pés no tanque e depois
entrava para o café que já estava na mesa
por vezes jantava com a família
mas quase sempre, sozinho
e então você esquece do motivo
de estar pensando nisso
como se fosse senhor de si
e por um momento aprecia a nostalgia sentida
de alguma maneira parece que você vivia
diferente de hoje quando todas às unhas crescem
até furar o sapato mas não caem por um bom motivo
ou mal que o seja, e então você recorda de outra vez
que se cagou nas calças enquanto corria
para buscar o chá que a velha pedia
e achando que dava tempo de voltar
se borrou todo feito um sonho macio e quentinho
e se pega rindo depois de dias de cara fechada
depois de dias sem motivos para rir, você ri!
ri de si mesmo e de sua antiga e agitada vida
hoje você não tem coragem de perder uma unha
não vive para tanto, nem se dedica à merda alguma
tem passado os dias esperando a morte
que não merecida não aparece nem para um
“olá, tudo bem? vamos dar uma volta?”
você acende um cigarro para o Sol
que permanece debruçado na janela
mesmo quando o dia já se foi e você continua
com as mesmas perguntas na cabeça;
que merda de vida é essa? que porra de dia
foi esse? será que já não entreguei tudo?
será que preciso estar presente
amanhã? e você já não sabe
o que responder para qualquer pergunta
para qualquer pessoa, muito menos para você
que continua debruçado ao Sol ouvindo a mesma música
delirando nesse calor existencial que brota
de dentro de ti, queimando tudo
feito um Sol de ontem todo
imundo.. e isso queima e permanece
até que se torna insuportável
e você já esgotado, por hoje
fecha as cortinas
e se atira
à cama.
Derrame
Bolicas com olho de gato
Centralizadas até o estouro
Correria, a linha intransponível
O abacateiro e as calças justas
A luta dos que podiam e gritavam
Céu da boca anil
Limo verde e escorregadio
Todos caíam
Uma única vez
Depois ria-se, e o piloto morria
Canos estouravam
E a vizinha corria
Bolas em chamas nos cantos das pedras
Arrotos em ziguezague
Passível pra grama crescer
Impossível pra cortá-la
Quando cresce sem campainha
Os lençóis vermelhos
Escondendo a gordura do xaxim
Capazes de ouvir seguidamente:
Só porque estrago sua vida acha justo estragar a minha?
Cal no rodapé
Parceiro em forma de concha
Brigas com cacos na sala
Cupins alugados que voavam
Exames de sangue favoráveis
Pingos na borda do pinico
Com um rancor desajustado
Isqueiro sem gás
Bebida quente
Loiras menstruando nas piscinas
Fogos de artifício escondendo o mendigo
Barracas em fila única
Céu da boca anil
Um sopro engolido
francesinha
existem coisas impossíveis de se traduzir em um poema
suas divinas nádegas é só mais um exemplo
contudo, o exemplo
perfeito.
Armadilha
Minha carne sob um pretexto alcalino
Que mastigando parece pólvora
Chupando parece escárnio
Apalpada parece algodão
Cheirar-me é mania de viúva
Pertenço aos homens que fedem
Por suar mal passado
Sem alecrim
Inoportuno como a calvície jovial
Contrario a pirataria de corpos
Me torno gente
E escasso
Extinto
Além de tudo, impróprio
Fugaz
Libertino sem culpa, nem ordem
Sagaz num tormento de alma
Incluído ao erro de corpo
Nos pulos da pulga
Cada vez isso transgride
Um passo a mais
insetos memoráveis
deixei de recolher as latas e garrafas
espalhadas pela casa
queria ter uma noção visual
do que tenho me tornado
– além do espelho, naturalmente
então a torre bem aqui do meu lado
começou a crescer. bem, na verdade
ela continua aqui e subindo
dia após dia a torre vai se tornando
uma muralha que circunda o sofá
a mesa de centro
os livros e até mesmo
os insetos voando em círculos
perfeitos
estão por todo lado,
entre latas de cerveja, garrafas de vodka
gimbas de cigarro, meias sujas
sapatos furados, pratos abandonados
copos esquecidos
e isso tem só duas semanas
e quer saber? eu gosto!
gosto do visual, da mistura
verde e vermelha das latas
das garrafas transparentes
dos camelos amarelos
bêbados, e até mesmo do cheiro
que permeia no ar, entre
a dança esquizofrênica dos insetos
alcoolizados, sim, sim
o frenesi é contagiante,
eu gosto
– grande merda. é só pra atrair moscas
e outros insetos idiotas – comenta o traste
que veio me visitar hoje
ele não sabe que já os conheço
não sabe que os recebo todas às noites
os maravilhosos insetos
que não falam a manjada língua
das criaturas corriqueiras
ah, ele mal sabe
que já não lembro seu nome
e que jamais esquecerei
de Athos, Porthos e Aramis
os três mosquitos mais corajosos
que já conheci.
Baralho
A culpa talvez seja minha
Tenho o mundo preso nas bolas
Tenho três e mesmo assim falo fino
Eu queria querer algo melhor
Em um sonho míope
Cansei de assassinar assassinos com bolhas
E meus pés ainda cabem em tochas de neve
Feitas pra mim
Se fossemos justos
Caberíamos nas solas dos sapatos
Se fossemos justos
Cederíamos a virilha pro jacaré cheirar
Assim como a urina escura caindo dos olhos
Lentamente, em curvas
Sobre corpos retos
Cintilando
Dobráveis
Descartáveis
Remédio sobre o isopor
Que desaparece no menor assovio
