Meados de 2000,
e meu pai tinha poucos anos a mais do que tenho hoje,
mas eram notáveis as marcas de sofrimento que a vida já tinha deixado em seu rosto até então.
Poucos anos antes ele tinha perdido todas as economias da família,
em um negócio malsucedido envolvendo a compra de um caminhão.
O desejo de ascender na vida tinha sido mais tentador do que a certeza do fracasso de um operário da agroindústria em ser um empresário bem-sucedido.
Naqueles dias, meu pai dividia seu tempo em apenas 3 coisas: trabalhar, comer e dormir.
Dois empregos de segunda a sexta, e um terceiro nos finais de semana
até quando seu corpo aguentaria?
Tenho certeza de que era a pergunta que ele se fazia toda madrugada, quando levantava para o trabalho e toda noite, quando encostava a cabeça no travesseiro para suas 5 horas de sono.
Mal podia imaginar que, por trás de tanto sacrifício, meu pai carregava acesa aquela velha chama de mudar de vida,
de deixar de ser um simples operário, mesmo que para mim, naquele momento isso não fazia o menor sentido…
Até que, finalmente, em uma noite quente de verão ele decidiu revelar seu plano.
“Guardei algum dinheiro, vamos abrir um pequeno mercado no porão”
Lembro que minha mãe ficou agitada e não parava de repetir que eu era um garoto de apenas 11 anos, e que ela não tinha nem a quarta série concluída, como iríamos dar conta de um mercado, mesmo que pequeno, sozinhos.
Mas meu pai estava decidido,
ensinou minha mãe a lidar com a máquina de calcular,
contratou um vizinho para construir as prateleiras de madeira,
em uma casa de móveis usados comprou um balcão de atendimento e um velho freezer.
Organizamos as prateleiras estrategicamente em lugares onde não existiam infiltrações,
o velho balcão perto da parede dos fundos em direção à porta,
e o freezer logo ao lado.
Das 4 lâmpadas do ambiente, meu pai tinha autorizado o uso apenas de duas, isso ajudaria na conta da luz.
É estranho pensar,
mas desde a inauguração o mercado já tinha ares de antigo e antiquado…
Lembro como eu e minha mãe morríamos de vergonha de atender os poucos clientes que chegavam,
e como rezávamos a Deus para que tivéssemos feito alguma venda até a hora que meu pai chegasse, para que ele esboçasse um pequeno sorriso.
Aos poucos os fornecedores de doces, cigarros clandestinos e bebidas se amontoaram para vender seus produtos,
quase sempre com uma negativa de minha mãe:
“Hoje não, os negócios estão fracos”.
Com o passar dos meses criamos alguns poucos bons clientes, e empilhamos maus pagadores.
Nunca dissemos não a um cliente,
esse era o lema que meu pai tinha criado,
seja por uma compra fiada, ou para abrir o mercado as 10 horas da noite para vendermos uma caixa de fósforos ou um pacote de suco.
Toda noite minha mãe implorava para que meu pai fechasse o velho mercado,
ele nunca respondeu, apenas baixava a cabeça e andava até o quarto.
A melhor lembrança que tenho do mercadinho, era de como podia encher a boca de paçoca toda a manhã e tomar um belo gole de refrigerante,
a sensação do gás em contato com o açúcar dava uma coceira gostosa no céu da boca…
O mercado durou cerca de 4 anos, e cada dia demonstrava um semblante mais triste, como o de meu pai que, sequer, pôde largar um de seus empregos.
Hoje tenho certeza que foram os 3 empregos de meu pai e sua esperança de sair do chão de fábrica que mantiveram o velho mercado aberto por tanto tempo.
Quando encerramos as atividades, lembro de encontrar produtos que estavam na prateleira desde a inauguração e pensava:
“Deus, como chegamos até aqui!”
Ainda hoje sonho com o pequeno mercado, com suas prateleiras opacas, seu balcão usado e com apenas duas lâmpadas acesas.
Acordo quase sempre triste, pensando:
“Foi apenas mais um sonho”
Mais um sonho de meu velho pai que não pude ajudar transformar em realidade.