Mercadinho no porão

Meados de 2000,

e meu pai tinha poucos anos a mais do que tenho hoje,

mas eram notáveis as marcas de sofrimento que a vida já tinha deixado em seu rosto até então.

Poucos anos antes ele tinha perdido todas as economias da família,

em um negócio malsucedido envolvendo a compra de um caminhão.

O desejo de ascender na vida tinha sido mais tentador do que a certeza do fracasso de um operário da agroindústria em ser um empresário bem-sucedido.

Naqueles dias, meu pai dividia seu tempo em apenas 3 coisas: trabalhar, comer e dormir.

Dois empregos de segunda a sexta, e um terceiro nos finais de semana

até quando seu corpo aguentaria?

Tenho certeza de que era a pergunta que ele se fazia toda madrugada, quando levantava para o trabalho e toda noite, quando encostava a cabeça no travesseiro para suas 5 horas de sono.

Mal podia imaginar que, por trás de tanto sacrifício, meu pai carregava acesa aquela velha chama de mudar de vida,

de deixar de ser um simples operário, mesmo que para mim, naquele momento isso não fazia o menor sentido…

Até que, finalmente, em uma noite quente de verão ele decidiu revelar seu plano.

“Guardei algum dinheiro, vamos abrir um pequeno mercado no porão”

Lembro que minha mãe ficou agitada e não parava de repetir que eu era um garoto de apenas 11 anos, e que ela não tinha nem a quarta série concluída, como iríamos dar conta de um mercado, mesmo que pequeno, sozinhos.

Mas meu pai estava decidido,

ensinou minha mãe a lidar com a máquina de calcular,

contratou um vizinho para construir as prateleiras de madeira,

em uma casa de móveis usados comprou um balcão de atendimento e um velho freezer.

Organizamos as prateleiras estrategicamente em lugares onde não existiam infiltrações,

o velho balcão perto da parede dos fundos em direção à porta,

e o freezer logo ao lado.

Das 4 lâmpadas do ambiente, meu pai tinha autorizado o uso apenas de duas, isso ajudaria na conta da luz.

É estranho pensar,

mas desde a inauguração o mercado já tinha ares de antigo e antiquado…

Lembro como eu e minha mãe morríamos de vergonha de atender os poucos clientes que chegavam,

e como rezávamos a Deus para que tivéssemos feito alguma venda até a hora que meu pai chegasse, para que ele esboçasse um pequeno sorriso.

Aos poucos os fornecedores de doces, cigarros clandestinos e bebidas se amontoaram para vender seus produtos,

quase sempre com uma negativa de minha mãe:

“Hoje não, os negócios estão fracos”.

Com o passar dos meses criamos alguns poucos bons clientes, e empilhamos maus pagadores.

Nunca dissemos não a um cliente,

esse era o lema que meu pai tinha criado,

seja por uma compra fiada, ou para abrir o mercado as 10 horas da noite para vendermos uma caixa de fósforos ou um pacote de suco.

Toda noite minha mãe implorava para que meu pai fechasse o velho mercado,

ele nunca respondeu, apenas baixava a cabeça e andava até o quarto.

A melhor lembrança que tenho do mercadinho, era de como podia encher a boca de paçoca toda a manhã e tomar um belo gole de refrigerante,

a sensação do gás em contato com o açúcar dava uma coceira gostosa no céu da boca…

O mercado durou cerca de 4 anos, e cada dia demonstrava um semblante mais triste, como o de meu pai que, sequer, pôde largar um de seus empregos.

Hoje tenho certeza que foram os 3 empregos de meu pai e sua esperança de sair do chão de fábrica que mantiveram o velho mercado aberto por tanto tempo.

Quando encerramos as atividades, lembro de encontrar produtos que estavam na prateleira desde a inauguração e pensava:

“Deus, como chegamos até aqui!”

Ainda hoje sonho com o pequeno mercado, com suas prateleiras opacas, seu balcão usado e com apenas duas lâmpadas acesas.

Acordo quase sempre triste, pensando:

“Foi apenas mais um sonho”

Mais um sonho de meu velho pai que não pude ajudar transformar em realidade.

Oito de Fevereiro

Quando criança esperava aflito a chegada de meu pai no dia do meu aniversário.

Não que ele fosse um pai ausente ou separado de minha mãe,

mas aquele era um dia especial. Poxa! era meu aniversário!

Lembro que ele voltava exausto de mais dia de trabalho naquele frigorífico, mas mesmo assim trazia em seu rosto jovem um belo sorriso, e em suas mãos uma bela caixa, quase sempre embrulhada em papel de presente azul metálico.

Lembro bem dos anos de vacas gordas.

Meu pai conseguira um cargo de destaque, algo como líder ou encarregado de setor.

Geladeira sempre cheia,

aquisição da primeira casa própria,

saímos do Fusquinha verde oitenta para um Fiat Uno noventa e dois, da mesma cor.

Nessa época empilhava presentes, principalmente em meus aniversários.

Ganhei enormes carrinhos de controle remoto, daqueles que somente no controle iam seis pilhas,

Ganhei autoramas, daqueles com pistas elevadas, que nenhum outro menino do bairro tinha visto, exceto em propagandas da estrela.

Ganhei um Atari!

Com dois controles e mais de mil jogos, o qual foi instalado em meu quarto em uma velha televisão preto e branca.

Mas como em Gênesis 41,

para as mesmas vacas gordas, existiriam o tempo das magras.

Meu pai perdeu o emprego,

suas economias minguaram em poucos meses,

e ele não conseguiu nem de perto o salário que ganhara há poucos meses.

Segundo ele, eram novos tempos, onde o estudo era mais importante que a experiência, lealdade e trabalho duro.

Então, como todo ano, chegou-se o próximo oito de fevereiro.

Naquele dia oito a espera foi muito maior.

Meu pai tinha conseguido à duras penas, um trabalho no chão de fábrica em um frigorífico,

e seu segundo emprego costumava terminar perto das dezenove horas,

era assim sua jornada de quinze horas diárias.

Mas eu, menino, poderia esperar por todo tempo do mundo, imaginei uma grande sacola pendurada em seu braço esquerdo, equilibrando o peso sobre a moto para andar em segurança.

Meu velho e querido pai nunca esquecerá o presente de seu primogênito, e não seria dessa vez!

Me sentei na escada de madeira que dava acesso a nossa casa,

a noite já tinha chegado e ficava impossível reconhecer visivelmente meu pai chegando ao longe,

mas eu tinha desenvolvido um instinto infalível, conseguia identificar de longe a forma de acelerar e o barulho inconfundível da velha moto Honda vermelha, de tanque redondo, que de tão antiga não me arrisco a chutar o ano de fabricação.

Meu coração disparou, fiquei eufórico imaginando qual seria a grande surpresa da vez.

Mas vi apenas meu pai tirando o capacete com um semblante abatido,

os lábios colocados,

a testa um pouco franzida e os olhos com pouca ou nenhuma vida.

Aquele mesmo semblante que por vezes reconheço ao me olhar no espelho.

Veio caminhando em minha direção, sem nada nas mãos, exceto o capacete,

passou ao meu lado na escada, beijou minha testa, passou sua mão em meia cabelos e me desejou feliz aniversário.

Fiquei perdido, não sabia como reagir,

o que estava acontecendo?

Meu pai não me amava mais?

Ele não gostava mais de ver seu filho sorrir?

Ou estava me castigando por algo que eu não lembrava…

Após alguns minutos sentado na mesma posição, naquela mesma escada de madeira, escutei uma espécie de discussão branda entre meu pai e minha mãe,

levantei-me e com passos lentos e silenciosos me aproximei da janela da cozinha:

“Ele esperou o dia todo por você, e tu chega de mãos abanando?

Noeli, não temos dinheiro para mais nada, é apenas dia oito e já não sei o que fazer no restante do mês.

Augustinho, por favor, vá até o camelô da Hermelinda e compra uma lembrancinha para o menino, fale que até dia 10 do mês que vêm daremos jeito de pagar, se não ele acaba doente.”

Meu pai então se levantou lentamente do sofá, e saiu com passos fortes,

daqueles que indicam que fará a vontade da companheira, mas com a certeza que teria mais problemas financeiros no mês seguinte.

Fiquei eufórico novamente!

Poxa vida, era meu aniversário,

dia oito de fevereiro pai, lembra?

Dia de ganhar carrinhos caros, do vídeo game importado,

sou eu, seu velho filho, ansioso por aquelas velhas surpresas de sempre!

Corri para o banho,

me ensaboei e enxaguei em tempo recorde,

vesti um calção e uma camisa do grêmio qual ele tinha me presenteado alguns anos antes e esperei em meu pequeno quarto, que na época não tinha porta, apenas uma cortina florida.

Foi quando ele chegou,

passou pela cortina com algo em mãos,

pequeno, enrolado em um papel de presente branco, opaco, como os olhos que me moravam.

“Filho, foi tudo que o pai conseguiu comprar…”

Entregou-me em mãos e foi saindo antes mesmo que eu abrisse.

Pareceu um sinal de vergonha,

de alguém que até poucos anos proporcionava momentos inesquecíveis a seu filho em todo oito de fevereiro e que agora o entregava algo tão singelo.

Observei aquilo por alguns segundos, ao sentir sobre o papel já podia notar que se tratava se uma caneca.

Abrir a embalagem e lá estava, uma caneca de metal, com um grande símbolo do grêmio em um dos lados.

Tenho certeza de que ele ouviu o barulho da caneca batendo contra o chão quando a arremessei embaixo da cama.

Deitei-me na cama e me cobri até a cabeça, não podia acreditar que tinha me tornado, um filho que merecia de presente de aniversário uma simples caneca de metal.

Durante dias não olhei direito para ele,

e respondia somente o necessário.

Ele nunca me repreendeu por aquilo,

apenas continuava a trabalhar e se entristecer a cada novo dia.

Hoje penso que ele deveria ter me falado algumas boas verdades sobre aquilo,

mas que verdades um menino de dez anos de idade deve ouvir sobre a responsabilidade patriarcal de prover o mínimo necessário à sua família?

Hoje penso seguidamente naquela velha caneca de metal,

diante todos os presentes caros que acumulei durante anos, não a trocaria por nenhum.

Aquele foi o presente mais verdadeiro, real, sofrível que meu pai poderá me dar.

“Pai, não sei que fim deu aquela velha caneca,

mas se comigo hoje estivesse,

todas as gotas de água que entrassem na minha boca, proveriam dela,

Assim como diante todas suas dificuldades você proveu tudo que eu precisava como filho.”

Oito de fevereiro de dois mil e vinte e três.

Peça nova peça ( X )

H2 – E se depois do segundo Airton Senna, surgisse um terceiro Airton Senna, batizado pelo pai por ser um grande fã do segundo Airton Senna. E o terceiro Airton Senna crescesse e se tornasse também campeão da Fórmula 1. Então o Brasil teria 3 ídolos do mesmo esporte com o mesmo nome.
H1 – Mas o segundo e o terceiro Airton Senna coexistem? Ou o segundo já morreu?
H2 – Eles disputam juntos o campeonato, na mesma equipe. O segundo Airton Senna tem 40 anos e o terceiro 20 anos. O segundo tem 3 títulos, ficou de fora da fórmula 1 por dois anos por conta de um acidente. O terceiro ganhou 2 títulos e ainda não sofreu nenhum acidente grave.
H1- Mas vai sofrer?
H2 – Sim, o segundo Senna vai jogar o carro em cima do carro do terceiro, que vai capotar, o piloto quebrará as duas pernas na última corrida do circuito.
H1 – Algum deles vai ser campeão nesse ano?
H2 – Não. O quarto sobrinho do primeiro Senna será pela primeira vez.
H1 – Agora são 4 Sennas campeões. O Brasil teria 4 ídolos do mesmo esporte com o mesmo nome.
H2 – Não, o nome do quarto sobrinho do primeiro Senna é Airton Senha. Erro de cartório.
H1 – Você não estava com sede?
H2 – Estou com sede, mas não de água.

H1 e H2 juntos:

– Garçom!

G por trás da cortina: Já vou!

H3 sai pela cortina e vai até a mesa dos dois.

H3 – Algum de vocês sabe consertar televisão?
H2 – Conheço mecânico de bicicleta, de TV não.
H1 – Qual é o problema?
H3 olhando para H2 – Tenho um problema na minha bicicleta.
H2 – Qual é o problema?
H3 – Ela solta a correia, parece que estou pedalando no lago gago.
H2 – Problema bíblico.
H1 – Você nunca leu a bíblia.
H2 olhando para H3 – Conhece a oficina do Roberto Carlos?
H3 – O cantor?
H2 – Esse mesmo. Depois te passo o endereço.
H3 olhando para H2 – Grato.
H3 olhando para H1: A TV fica em tela dupla, sempre com dois canais ao mesmo tempo.
H1 – Se colocar no mudo tem 2 TV’s.
H3 – Mas eu quero ouvir
H2 – Tem o manual?
H3 – Tem um em árabe.
H2 – Traga aqui que ele (apontando para H1) lê em 1 minuto.
H3 – Já volto. E vai correndo para trás da cortina do balcão.
H2 – Podia ter cronometrado a velocidade da leitura com o manual da bicicleta não com a bíblia.
H1 – Adotei a bicicleta depois de ler a bíblia, aliás, foi só por isso que adotei.
H2 – Aparece a palavra bicicleta na bíblia?
H1 – Não bicicletei.
H2 – Por que adotou a bicicleta depois de ler a bíblia?
H1 – Porque minha bíblia quebrou e o mecânico de bíblias morava muito longe.
H2 – A palavra bíblia aparece na bíblia?
H1 – Aparece na capa.

Peça nova peça ( IX )

H1 – Nunca conheci pessoalmente um mecânico de bicicleta, nem um gago, muito menos um Roberto Carlos.
H2 – Meu nome é Roberto Marlos. Você tem bicicleta?
H1 – Adotei uma.
H2 – Leva ela até a oficina, aí poderá dizer que conhece um mecânico de bicicleta, um gago e um Roberto Carlos.
H1 – A bicicleta está nova, tem até manual.
H2 – Quanto tempo demorou para ler o manual?
H1 – A parte em português 30 minutos. Em inglês 5 minutos. Em chinês e árabe 1 minuto.
H2 – Aparece na bíblia um português, um inglês, um chinês e um árabe?
H1 – Não miscigenei.

H2 olhando para a cortina: Garçom!

H1 – Já vou!
H1 levanta da cadeira e vai até a mesa de H2.
H1 – No que posso lhe servir?
H2 – Estou com sede.
H1 vai para atrás da cortina e começa fazer barulho de portas batendo, talheres caindo.
H2 – Se eu falasse ao mesmo tempo: “Tô com sede”, me ultrapassaria em 3 palavras.

H1 volta da cortina com uma mangueira de bombeiro e um copinho pequeno, daqueles de martelinho de bebida e coloca ambos em cima da mesa. Se senta na mesma mesa.

H1 e H2 se olham fixamente e falam ao mesmo tempo:

– Será que existe dois bombeiros brilhantes com o mesmo nome?

De novo juntos:

– Empatamos nessa.

De novo juntos:

– Empatamos nessa também.

H2 – Eu tenho um tio que além de bombeiro é piromaníaco.  
H1 – Eu tenho uma prima que além de bombeira tem medo da água

H1 e H2 juntos:

– Seria interessante se fossem um casal.

H3 e G voltam pelo lado do palco. H3 carregando a TV e G o cabo. H1 e H2 observam. H3 e G vão para atrás das cortinas do balcão.

Peça nova peça ( VIII )

H1 – Quer saber o que estava pensando antes de me ultrapassar com “tava”?
H2 – Verdade, sua vez.
H1 – Creio que não sou adotado.
H2 – Como assim?
H1 – Meus pais mentiram que sou adotado, mas sou filho deles.
H2 – E por que fariam isso?
H1 – Pra quando o último deles estiver pra morrer, me chamar e dizer: “Filho, você não é adotado”. E morrer.
H2 – Você pode tentar encontrar seus pais biológicos.
H1 – Por isso o plano é perfeito, nunca encontrarei.
H2 – E seus outros parentes?
H1 – Fazem parte do jogo, todos afirmam que sou adotado.
H2 – Se você morrer primeiro que eles, quem ganha o jogo é você.
H1 – Mas daí fazem outro filho e começam de novo.
H2 – Uma vez adotei um galo.

H1 começa a rir compulsivamente. H2 se vira na cadeira e começa observar incrédulo, sem entender. H1 aos poucos vai recuperando o fôlego até ficar normal, ainda de costas para H2.

H2 – O que foi?
H1 – Entendi a piada do telefone.
H2 – Tinha galo na piada?
H1 – Não, mas tinha um lago
H2 – Um lago adotado?
H1 – Não, um lago gago.
H2 – Bom contexto
H1 – O contexto é outro, esse é o final. A piada termina em lago gago.
H2 – As palavras lago gago aparecem juntas na bíblia?
H1 – Não, mas deveriam. João Batista bem que poderia ter batizado Jesus no lago gago. Moisés abrindo o lago gago.
H2 – Conheço um Roberto Carlos gago.
H1 – Cantor?
H2 – Mecânico de bicicleta. Quem são João Batista, Jesus e Moisés?
H1 – Três marujos.

H3 sai com dificuldade pelas cortinas segurando uma TV das pesadas e fazendo sons que indicam dificuldade de carregar. H1 e H2 observam. G está logo atrás segurando o cabo. Eles atravessam o palco e saem.

Peça nova peça ( VII )

H3 volta para sua mesa. G sai pela cortina trazendo o pedido e o coloca sobre a mesa. H3 agradece, enquanto G volta para atrás do balcão. A cena fica poucos segundos com H3 degustando e G trabalhando.

Finalmente é possível ouvir H1 e H2 no telefone por trás do palco, enquanto no palco H3 continua comendo e G trabalhando.

H1 – Sim mãe, eu li a bíblia em 67 horas, 49 minutos e 10 segundos…Sim, duas vezes para confirmar…
H2 – Sim mãe, segundo constatações, eu leria a bíblia em 67 horas, 49 minutos e 10 segundos
H1 e H2 falam juntos:
H1 – Não mãe, você não leu em menos tempo
H2 – Não mãe, você não leria em menos tempo
H1 – Te ultrapassei em 2 letras!
H2 – Verdade.
H1 e H2 ao mesmo tempo – O que mãe?

H1 e H2 ao mesmo tempo – Empatamos nessa
H1 e H2 ao mesmo tempo – Empatamos nessa também.
H1 e H2 ao mesmo tempo – Vou desligar

H1 e H2 voltam para o palco. Sentam um de costas para o outro em mesas distantes.

H3 – Garçom!
H1 e H2 juntos – Já vou!
G corre para a mesa de H3
H3 para G – Tem televisão aqui?
G – Temos, fica na cozinha.
H3 – Posso ir lá?
G – Claro, me acompanhe.

H3 e G vão para atrás da cortina. H1 e H2 continuam um de costas para o outros e voltam a conversar.

H1 – Começamos nossa conversa pelo telefone quase no mesmo instante.
H2 – É, esperei pra ligar por conta do barulho que vinha daqui.
H1 – Qual barulho?
H2 – Tinha alguém contando algo sobre formigas.
H1 – Não ouvi nada disso.
H2 – Então por que demorou tanto para ligar?
H1 – Não demorei.
H2 – Mas começou a falar somente um tempo depois
H1 – Sim. É que antes de ligar para minha mãe, liguei para um daqueles canais que contam piadas.
H2 – Quantas piadas ouviu?
H1 – Uma só, 40 vezes.
H2 – Tão boa assim a piada?
H1 – Não sei, não entendi.
H2 – Não entendeu o final piada?
H1 – O final entendi, o contexto que não.
H2 – Quer que eu ligue e tente entender o contexto?

G está arrumando algumas cadeiras. Voz de H3: Garçom!

H1 e H2 juntos: Já vou!

G corre para trás da cortina.

Peça nova peça ( VI )

Estava em apuros. Por onde olhava via formigas, elas caminhavam por toda quitinete, e o pior, eram todas iguais, portanto tinha que odiá-las igualmente, se matasse uma, teria que matar todas, nada de privilégios. Um grande grupo circulava por cima da pia da cozinha, esperavam a “casca” do pedaço de salame diário ser jogada lá, para adiante carregarem com dificuldade, pra onde não sei, mas levavam. Já o grupo que cuidava do chão da cozinha esperava farelos, de qualquer coisa. Elas me conheciam a esse ponto. Sabiam tanto sobre mim que jamais arriscavam entrar no banheiro. Grande erro, pois era lá que traçava o plano de exterminá-las. Primeiramente, pra ter certeza que meu cativeiro estaria longe de espiãs, comia uma fatia de pão com salame, interpretando uma farta refeição na mesa, sem vestígios de genocídio próximo. Quando a “casca” em cima da pia movia-se discretamente, “sem querer” empurrava farelos de pão da mesa pro chão. Então, seguindo com o teatro abria a porta da geladeira e tomava um copo de água, com os olhos fixos nos farelos, que logo se moviam discretamente também. Só nesse momento entrava no banheiro e sentava no vaso. Era difícil ter uma contagem exata, por isso fixei o número em um bilhão de formigas, todas com o mesmo tamanho 8 milímetros, nascidas no mesmo dia. Criei três perfis:

Formigas da pia: astutas, persistentes, pacientes, famintas e organizadas. Nunca andam sozinhas, estão sempre acompanhadas de duas ou mais amigas. Sua comida predileta é “casca” de salame. Detestam fumaça de cigarro, bagaço de limão e respingos d’água da torneira. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora e mínima 2 quilômetros por hora.

Formigas do chão da cozinha: egoístas, desorganizadas, prepotentes e desequilibradas. Não gostam de companhia, carregam seu próprio pedaço de pão e se for preciso morrem por ele. Além de farelos, demonstram interesse em açúcar, gotas de suco de limão e raras se arriscam na cerveja preta. Abominam chulé e gordura. Velocidade máxima 9 quilômetros por hora e mínima 3 quilômetros por hora.

Formigas do quarto: alegres, receptivas e sonhadoras. Geralmente nem sabem onde estão, nem com quem, mas isso nunca parece ser problema. Sem preocupações na vida, comem o que aparece, desde insetos mortos até migalhas de bolacha recheada. Se coçam por uma cervejinha e cinzas de cigarros. Ainda não descobri o que execram. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora sem beber, e mínima 4 quilômetros por hora sem beber. Ponto relevante: quando bebem muito, permanecem no mesmo lugar por horas.

A partir destas constatações, meu primeiro plano foi confundir os grupos, criar um caos generalizado na casa, gerar conflitos de satisfações íntimas ou grupais. Testei a seguinte solução: largar a “casca” de salame no quarto, farelos de pão sobre a pia e derramar cerveja no chão da cozinha. O que aconteceu:

Formigas da pia: reuniram todos os farelos em um só monte, fizeram uma breve contagem percentual, e em círculos andaram todas a 7 quilômetros por hora, realizando um ritual de agradecimento aos seus deuses. Sem demora, quatro formigas apareceram carregando um pedaço de “casca” de salame, não sei de onde, e se alimentaram ali mesmo, uma refeição completa.

Formigas do chão da cozinha: Houve troca de empurrões e pisoteamento por cada gole da cerveja. Aquelas raras da cerveja preta aguentaram mais trago, as outras saíram rastejando e vomitaram nos pés da mesa. Somente um grupo de dez formigas negou-se a beber, mas quando notaram o fim da cerveja brigaram entre si para saber de quem tinha sido a ideia idiota de não beber.

Formigas do quarto: não perceberam a “casca” de salame. A única muvuca ocorreu quando uma formiga de ressaca caiu de cima do guarda-roupa. Boatos sobre tentativa de suicídio se espalharam, promovendo uma rápida passeata perto do ventilador por direitos formigais, porém a própria formiga que caiu acabou contando os verdadeiros motivos do tombo. Pra não passarem por bobas, as formigas da passeata aceleraram para 10 quilômetros por hora, exigindo mais insetos mortos, cerveja cara e cinzas de cigarros brandas. No fim da noite organizaram uma suruba de confraternização.

Sem sucesso, tive que voltar para o sanitário e pensar um novo plano. Em minha mente, ainda permaneci com a ideia de caos e guerra entre elas para o extermínio total. O que resolvi fazer foi o seguinte: capturar três formigas, uma de cada grupo e deslocá-las para outro território, assim, proporcionaria divergências de opiniões e atitudes, quem sabe até um assassinato brutal, isso seria capaz de gerar nocividade, e por fim, o holocausto tão desejado por mim. Uma formiga do quarto introduzi no grupo do chão da cozinha, uma formiga do chão da cozinha foi pra pia e uma da pia foi pro quarto. Eis o que se sucedeu:

Formigas da pia: estranharam a presença de uma individualista. Se dirigiram em grupo ao encontro para saber quem era, e afinal, o que acontecia com ela. A egoísta evitou cerimônias, dizendo não saber o porque de estar ali, e afirmou que o egoísmo era a cura pra qualquer loucura. As formigas da pia, por sua vez, sabiam o que fazer. Carregaram a formiga do chão nas costas e lhe ofereceram uma farta refeição com farelos e “casca” de salame. Dançaram pra ela, lavaram suas antenas, e por fim, lhe deram um cargo importante entre elas. Foi inevitável a aceitação.

Formigas do chão da cozinha: se perguntavam intimamente quem era aquela formiga correndo pelada e batendo a cabeça na parede. Sentiram, todas, uma imensa vontade de imitá-la, mas tinham vergonha, vergonha dos risos, por isso contentaram-se observando. Essa pelada correndo a 12 quilômetros por hora (tinha bebido), para se enturmar resolveu promover uma suruba. Acontece que todas formigas brocharam perante a pressão imposta. Percebendo aquilo, a impostora que agora estava no chão da cozinha resolveu voltar pro quarto, mas acabou se perdendo e entrou no banheiro, onde morreu por asfixia. No laudo consta overdose. Heroína.

Formigas do quarto: acordaram com ordens e gritos da formiga da pia, “Vamos acordar”, “Está na hora”, “O que temos pra hoje?”, “Casca ou farelo?”. Sem ligar praquilo, todas se dirigiram ao cinzeiro e às garrafas de cerveja. Fiquei só observando. Como as ordens não paravam, uma sugeriu “Que tal uma suruba pra acordar?”. E todas foram pro canto do quarto, inclusive a da pia, que acabou se apaixonando no meio daquilo tudo. Sentimental demais.

Sentado no vaso resolvi apelar pra crueldade. Estava em apuros mesmo. Despertei no meio da madrugada pra matar uma formiga de cada grupo e deixar a cena com evidências claras de assassinato por alguma facção rival. Finalmente a rebelião iria começar. No quarto não foi difícil, sempre tinha uma quase morta por perto. Dei uma chinelada nas ancas, ela dobrou-se toda, estava morta. Como pista, deixei resquícios de “casca” de salame ao redor do corpo simulando um possível latrocínio. Sobre a pia, um pequeno grupo de cinco perambulava observando a escuridão e sentindo a brisa. Esperei pra ver se ao menos uma se dispersava da turma, o que não aconteceu, por isso, só por isso, com duas chineladas matei todas. Após, arranquei pernas e antenas de todas, sugerindo uma chacina seguida de esquartejamento. Para parecer serviço de outro grupo, deixei rastros de cerveja preta contínuos. As da pia não bebiam bebidas alcoólicas. Perfeito. No chão, achar uma formiga andando sozinha foi a coisa mais fácil. Derramei álcool sobre ela e acendi com um fósforo. Como eu sabia que dificilmente aquelas egoístas iriam ligar pra formiga carbonizada, saí pela porta da quitinete e fui procurar uma formiga menor, com no máximo 2 milímetros. Queimei-a da mesma forma e pus os restos mortais ao lado da anterior. Matar uma mãe e sua filha tostadas teria que despertar revolta. Como prova fiz um caminho de cerveja, dos corpos até o quarto.

Reações:

Formigas da pia: chocaram-se ao ver a cena, teve até tentativa de ressuscitação em vão. Organizaram uma missa dentro de um prato, gritaram por justiça divina, e concordaram em passar um dia sem comer para demonstrar o luto. No dia seguinte deixaram cinco pedaços de “casca” de salame onde as mortas foram encontradas.

Formigas do chão da cozinha: trafegaram normalmente ao redor dos corpos, até que duas formigas passaram por perto ao mesmo tempo e começaram brigar pelo pedaço maior de farelo do pão torrado. A vencedora levou a mãe, a perdedora contentou-se com a filha.

Formigas do quarto: praticaram necrofilia por horas. Quando perceberam que havia um óbito, partiram para uma passeata, reivindicando melhor sinalização no azulejo.

Diante das consequências, tomei outra decisão. Chega de caos. Usaria veneno. Uma seringa com líquido transparente. Resultado:

Formigas da pia: mortas.

Formigas do chão da cozinha: mortas.

Formigas do quarto: mortas.

Eu: relatei os acontecimentos e fui promovido para o próximo verão.

Peça nova peça ( V )

G sai de cena e entra pela cortina atrás do balcão. H1 volta e se senta onde H2 estava sentado. H2 volta ao lugar onde estava H1. Ambos estão olhando fixamente para lados opostos, até que dizem juntos no mesmo momento que se olham:

H2 – Gostei da vista que tinha daqui
H1 – Gostei da visão que tinha daqui

Ficam alguns segundos paralisados.

H2 – Te ultrapassei por uma letra.
H1 – Como assim?
H2 – Visão tem uma letra a mais que vista
H1 – Nada disso, ambas palavras têm cinco letras
H2 pensa um pouco.
H2 – Jurava que visão tinha uma letra a mais.
H1 – Falha no ponto de vista.
H2 – Você foi ao banheiro masculino ou feminino?
H1 – Nem reparei. Mas fui no contrário do seu.
H2 – Também não reparei em qual entrei.
H1 – O seu estava ocupado?
H2 – Estava.
H1 – Por um homem ou mulher?
H2 – Por um homem, mas não tinha mictório, por isso perguntei. E o seu estava ocupado?
H1 – Sim, por uma mulher, mas tinha mictório no meu.
H2 – A palavra mictório aparece na bíblia?
H1 – Sim, inúmeras vezes.
H2 – Quanto tempo demorou para ler a palavra mictório?
H1 – Não mictei.
H2 – É uma palavra boa para ultrapassar numa frase. Enquanto alguém diz ao mesmo tempo que você: “Vou ao mictório”, pode-se dizer: “Vou ao mic”.
H1 – É passível de interpretação. “Vou ao mic” pode ser encarado como “Vou ao microfone”.
H2 – Mas aqui não tem microfone, nem na bíblia.

G por trás da cortina com voz de microfone: Já vou!

H1 – Como sabe, se nunca leu a bíblia?
H2 – Li a história do microfone.
H1 – Em quanto tempo?
H2 – Não tenho cronômetro.
H1 – Eu tenho um cronômetro aqui no bolso. Você tem a história do microfone?
H2 – Não tenho. Você já leu a história do cronômetro?
H1 – Já li no dentista.
H2 – Em quanto tempo?
H1 – Não cronometrei.
H2 – Por que não?
H1 – Muita dor de dente.
H2 – E o que o dentista disse?
H1 – Que é preciso cronometrar as cáries.

Nesse momento o Homem 3 entra em cena e se senta numa mesa distante. H1 e H2 observam mas não dão atenção.
H2 olhando para o balcão, G fazendo algo: Garçom!
G sem desviar o olhar: Já vou!
H1 olhando para o balcão, G ainda fazendo algo: Garçom!
G sem desviar o olhar: Já vou!
H3 olhando para a plateia: Garçom!
G vai apressado até sua mesa com bloco de notas: Sim?!
H1 e H2 observam.
H3: Vou querer um bife de fígado de boi não alcoólatra e um suco de pregos.
G: É pra já.
G vai apressado para trás da cortina.
H1 e H2 ao mesmo tempo olhando pra cortina: Garçom!
G: Já vou!
H1 – Vou fazer uma ligação
H2 – Também vou. Ambos saem de cena por lados opostos. H3 se levanta e vai até a frente do palco fazer seu monólogo:

Peça nova peça ( IV )

Eu já sabia que tinha AIDS. Minhas calças ficaram folgadas, suava todas as noites e não conseguia dormir. Comia pouco e estava todo amarelo. Inicialmente pensei que tinha contraído nos milhares exames de sangue que fiz desde a infância, cerca de dois por mês. Nenhum médico me curava. Minha mãe rezava pela cura. Para não deixarem ela sem resposta, todos afirmavam ao verem meus exames:

– É anemia. Ele tem que comer fígado.

Receitavam alguns remédios, uma lista com alimentos ricos em ferro e marcavam o próximo exame de sangue. E sem brincadeira, devo ter ficado nessa por no mínimo dez anos. Era fígado a milanesa, fígado com limão, fígado com fígado, batida de fígado, suco de fígado, sobremesa de fígado, sorvete de fígado, bala de fígado. Meu pai sempre que podia fumava cigarros de fígado ao meu lado, o que de fato me transformava em um “fumante de ferro passivo”

Passavam-se os dias até a próxima consulta, e lá estava o diagnóstico:

– É anemia. A senhora está dando fígado pra esse guri comer?
– Sim doutor – minha mãe dizia. – É fígado no café, no almoço e na janta.
– Tem certeza que não são fígados de animais alcoólatras?
– Sim. Sempre alerto o açougueiro.
– Estão fumando cigarros de fígado ao lado dele como receitei?
– Sim doutor.
– Muito bem. Vamos tentar outra coisa. Ao invés de usar sabonete, ele tomará banho com um pedaço de fígado durante o período de um mês.
– Fígado de porco ou de boi?
– Pro banho eu sugiro o de boi. O de porco sugiro como travesseiro, também pelo período de um mês.
– Tudo bem doutor. Ouviu filho? Boi no banho, porco na cama.
– Entendido – respondi.

Saímos do consultório e fomos direto para o açougue.

– Oi Tião – cumprimentou minha mãe. Preciso de um fígado de boi não alcoólatra, e um de porco, também não alcoólatra.
– Desculpe senhora – disse o Tião. Hoje só tenho fígados que vieram direto do AA (Animais Alcoólatras).
– Como assim Tião?! Meu filho não pode ficar sem banho e sem dormir hoje. Faz parte do tratamento dele.
– Espere um minuto. Vou ligar para o AA.
Tião pegou o telefone e ligou.
– AA, Giana, boa tarde.
– Boa tarde Giana, aqui é o Tião do açougue do Tião.
– Diga Tião.
– Recebi uns fígados aqui de vocês, e gostaria de saber se algum animal recuperou-se do vício antes de morrer?
– Só um minuto Tião, vou verificar a resposta com meu superior. Aguarde na linha por favor.
– Vai verificar com o superior – disse Tião para nós.
– Marcelo! Marcelo!
– Estou indo Giana.

– Fala meu amor.
– O Tião está aqui na linha perguntando se tivemos algum caso de reabilitação antes da morte dos animais que lhe enviamos a última carga de fígados.
– Sim, tivemos. Um boi e dois porcos não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram sob nossa observação, por outras causas. Um porco cometeu suicídio, o outro morreu de orgasmos múltiplos na masturbação e o boi, coitado, descobriu que era capado e morreu de tristeza.
– Quais eram os nomes deles?
– Tenório, Valente e Tibúrcio.
– Só um minuto Marcelo.

– Tião?!
– Sim?!
– Tivemos três casos de reabilitação, dois porcos e um boi. Tenório, Valente e Tibúrcio não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram por outras causas.
– Morreram de que?
– Um porco se matou, outro se perdeu na bronha e o boi foi de tristeza.
– De tristeza?
– Sim, tristeza. Descobriu que era capado.
– Como descobriu?
– Só um minuto.

– Marcelo, como o boi descobriu que era capado?
– Eu contei.

– Alguém contou Tião.
– Ok Giana. Obrigado.

– Por que você revelou que ele era capado Marcelo?
– Porque o animal me chamou de corno e disse que era o pai da minha filha.

Tião explanou a situação. Minha mãe aceitou os fígados. Eu afirmei que os porcos sim sabiam morrer. Fomos pra casa, já estava escurecendo. Meu pai fumava um cigarro de pulmão na cozinha. Minha mãe ficou furiosa, “Você tem que comprar os de fígado, homem!” ela disse. Mas ele comprou aquele porque estava com dificuldades pra respirar. Fui ver TV enquanto a mãe colocava um pedaço do fígado de boi na saboneteira e trocava meu travesseiro pelo fígado de porco.

– Vai tomar banho! Ouvi logo depois.

Entrei no banheiro, liguei o chuveiro e enxaguei os cabelos. Após isso esfreguei a carne pelo couro cabeludo. Imaginei que após aquilo jamais ficaria careca. Foi um banho normal, a única diferença que sentia era quando passava aquela carne macia pelo genital. Não arrisquei lavar a bunda com aquilo, pois seguindo com as conotações maliciosas, meu rabo não precisava de ferro. Saí do banho e fui me vestir.

– Quer jantar? Ouvi da cozinha.
– O que você fez hoje mãe?
– Sopa de fígado pra ti.
– Sim. Já estou indo – respondi.

Na hora de dormir fiquei na dúvida se aquele travesseiro novo era do porco suicida ou do punheteiro. Fiquei na dúvida. Após os trinta dias de tratamento e mais um exame de sangue retornamos ao mesmo médico.

– Não pode ser – ele disse.
– O que foi doutor? Perguntou minha mãe.
– Esse guri não melhora nunca. Fizeram exatamente o que mandei?
– Nada diferente do que o senhor mandou. 
– Bem, só me resta uma última tentativa. Ele terá que comer pregos.

Depois desse dia toda minha alimentação mudou. Virou prego à milanesa, prego com limão, prego com prego, batida de prego, suco de prego, sobremesa de prego, sorvete de prego, bala de prego. Meu pai até que tentou acender alguns pregos ao meu lado. Aquela coisa de comer prego e cagar parafuso não funcionava comigo. Eu sabia que estavam me tratando de alguma coisa, mas nem imaginava o que era anemia. Um tempo depois dessa dieta fui fazer mais um exame para a próxima consulta.

– Desisto – disse o médico.
– Nada mudou doutor? Perguntou minha mãe.
– Absolutamente nada.
– O que podemos fazer pelo meu filho?
– Sinto muito senhora. É um caso perdido.

Minha mãe não desistiu e foi novamente à procura de outro médico. Levamos todos meus exames. Ele era descendente oriental, e o que isso tem a ver? Nada, mas o escritor sou eu. Esse médico ia analisando a pilha de exames sem mexer um nervo do rosto.

– Esse garoto nunca será curado da anemia! Por fim declarou e gargalhou.

Aceitei com minha cara amarela o veredito. O que seria anemia?

– Não me diga uma coisa dessa doutor. Vou fazer esse guri comer uma patrola se for preciso.
– Esse garoto pode comer pregos pela vida inteira e nada vai mudar! Hahaha.
– Como não?!
– Minha senhora, teu filho nasceu com Talassemia.

Não perderei tempo explicando minha doença hereditária. Acontece que eu sabia que tinha AIDS. Aquelas malditas putas não esterilizavam as agulhas ou teria sido aquelas outras malditas putas? Não importava, iria morrer logo. Feridas amadureceram perto do pau. Tive esperança de não ser AIDS, apenas alguma DST qualquer, mas logo as feridas sumiram, e novamente eu tinha AIDS. Suei por inúmeras noites, até que finalmente decidi fazer o exame.

Peça nova peça ( III )

H1 – Desconheço duas pessoas com o mesmo nome que são brilhantes na mesma coisa.
H2 – Deve haver dois açougueiros chamados Tião que são extremamente eficazes no que fazem.
H1 – Mas o segundo Tião recebeu o nome do pai pelo reconhecimento do trabalho do primeiro Tião?
H2 – Não necessariamente. Tião o pai, pode não conhecer o primeiro Tião açougueiro, apenas chamou seu filho de Tião pelo próprio reconhecimento.
H1 – Então são três Tião’s.
H2 – Exatamente.
H1 – Tião o pai, também é açougueiro?
H2 – A palavra açougueiro aparece na bíblia?
H1 – Não açouguei
H2 – Preciso ir ao banheiro – Olhando para o balcão: Garçom!
H1 – Também preciso – Olhando para o balcão: Garçom!
G por trás das cortinas: Já vou!
H1 e H2 saem do palco por lados opostos. Segundos depois G sai pela cortina e se encaminha para frente do palco entre as mesas e faz um monólogo: