Peça nova peça ( VI )

Estava em apuros. Por onde olhava via formigas, elas caminhavam por toda quitinete, e o pior, eram todas iguais, portanto tinha que odiá-las igualmente, se matasse uma, teria que matar todas, nada de privilégios. Um grande grupo circulava por cima da pia da cozinha, esperavam a “casca” do pedaço de salame diário ser jogada lá, para adiante carregarem com dificuldade, pra onde não sei, mas levavam. Já o grupo que cuidava do chão da cozinha esperava farelos, de qualquer coisa. Elas me conheciam a esse ponto. Sabiam tanto sobre mim que jamais arriscavam entrar no banheiro. Grande erro, pois era lá que traçava o plano de exterminá-las. Primeiramente, pra ter certeza que meu cativeiro estaria longe de espiãs, comia uma fatia de pão com salame, interpretando uma farta refeição na mesa, sem vestígios de genocídio próximo. Quando a “casca” em cima da pia movia-se discretamente, “sem querer” empurrava farelos de pão da mesa pro chão. Então, seguindo com o teatro abria a porta da geladeira e tomava um copo de água, com os olhos fixos nos farelos, que logo se moviam discretamente também. Só nesse momento entrava no banheiro e sentava no vaso. Era difícil ter uma contagem exata, por isso fixei o número em um bilhão de formigas, todas com o mesmo tamanho 8 milímetros, nascidas no mesmo dia. Criei três perfis:

Formigas da pia: astutas, persistentes, pacientes, famintas e organizadas. Nunca andam sozinhas, estão sempre acompanhadas de duas ou mais amigas. Sua comida predileta é “casca” de salame. Detestam fumaça de cigarro, bagaço de limão e respingos d’água da torneira. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora e mínima 2 quilômetros por hora.

Formigas do chão da cozinha: egoístas, desorganizadas, prepotentes e desequilibradas. Não gostam de companhia, carregam seu próprio pedaço de pão e se for preciso morrem por ele. Além de farelos, demonstram interesse em açúcar, gotas de suco de limão e raras se arriscam na cerveja preta. Abominam chulé e gordura. Velocidade máxima 9 quilômetros por hora e mínima 3 quilômetros por hora.

Formigas do quarto: alegres, receptivas e sonhadoras. Geralmente nem sabem onde estão, nem com quem, mas isso nunca parece ser problema. Sem preocupações na vida, comem o que aparece, desde insetos mortos até migalhas de bolacha recheada. Se coçam por uma cervejinha e cinzas de cigarros. Ainda não descobri o que execram. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora sem beber, e mínima 4 quilômetros por hora sem beber. Ponto relevante: quando bebem muito, permanecem no mesmo lugar por horas.

A partir destas constatações, meu primeiro plano foi confundir os grupos, criar um caos generalizado na casa, gerar conflitos de satisfações íntimas ou grupais. Testei a seguinte solução: largar a “casca” de salame no quarto, farelos de pão sobre a pia e derramar cerveja no chão da cozinha. O que aconteceu:

Formigas da pia: reuniram todos os farelos em um só monte, fizeram uma breve contagem percentual, e em círculos andaram todas a 7 quilômetros por hora, realizando um ritual de agradecimento aos seus deuses. Sem demora, quatro formigas apareceram carregando um pedaço de “casca” de salame, não sei de onde, e se alimentaram ali mesmo, uma refeição completa.

Formigas do chão da cozinha: Houve troca de empurrões e pisoteamento por cada gole da cerveja. Aquelas raras da cerveja preta aguentaram mais trago, as outras saíram rastejando e vomitaram nos pés da mesa. Somente um grupo de dez formigas negou-se a beber, mas quando notaram o fim da cerveja brigaram entre si para saber de quem tinha sido a ideia idiota de não beber.

Formigas do quarto: não perceberam a “casca” de salame. A única muvuca ocorreu quando uma formiga de ressaca caiu de cima do guarda-roupa. Boatos sobre tentativa de suicídio se espalharam, promovendo uma rápida passeata perto do ventilador por direitos formigais, porém a própria formiga que caiu acabou contando os verdadeiros motivos do tombo. Pra não passarem por bobas, as formigas da passeata aceleraram para 10 quilômetros por hora, exigindo mais insetos mortos, cerveja cara e cinzas de cigarros brandas. No fim da noite organizaram uma suruba de confraternização.

Sem sucesso, tive que voltar para o sanitário e pensar um novo plano. Em minha mente, ainda permaneci com a ideia de caos e guerra entre elas para o extermínio total. O que resolvi fazer foi o seguinte: capturar três formigas, uma de cada grupo e deslocá-las para outro território, assim, proporcionaria divergências de opiniões e atitudes, quem sabe até um assassinato brutal, isso seria capaz de gerar nocividade, e por fim, o holocausto tão desejado por mim. Uma formiga do quarto introduzi no grupo do chão da cozinha, uma formiga do chão da cozinha foi pra pia e uma da pia foi pro quarto. Eis o que se sucedeu:

Formigas da pia: estranharam a presença de uma individualista. Se dirigiram em grupo ao encontro para saber quem era, e afinal, o que acontecia com ela. A egoísta evitou cerimônias, dizendo não saber o porque de estar ali, e afirmou que o egoísmo era a cura pra qualquer loucura. As formigas da pia, por sua vez, sabiam o que fazer. Carregaram a formiga do chão nas costas e lhe ofereceram uma farta refeição com farelos e “casca” de salame. Dançaram pra ela, lavaram suas antenas, e por fim, lhe deram um cargo importante entre elas. Foi inevitável a aceitação.

Formigas do chão da cozinha: se perguntavam intimamente quem era aquela formiga correndo pelada e batendo a cabeça na parede. Sentiram, todas, uma imensa vontade de imitá-la, mas tinham vergonha, vergonha dos risos, por isso contentaram-se observando. Essa pelada correndo a 12 quilômetros por hora (tinha bebido), para se enturmar resolveu promover uma suruba. Acontece que todas formigas brocharam perante a pressão imposta. Percebendo aquilo, a impostora que agora estava no chão da cozinha resolveu voltar pro quarto, mas acabou se perdendo e entrou no banheiro, onde morreu por asfixia. No laudo consta overdose. Heroína.

Formigas do quarto: acordaram com ordens e gritos da formiga da pia, “Vamos acordar”, “Está na hora”, “O que temos pra hoje?”, “Casca ou farelo?”. Sem ligar praquilo, todas se dirigiram ao cinzeiro e às garrafas de cerveja. Fiquei só observando. Como as ordens não paravam, uma sugeriu “Que tal uma suruba pra acordar?”. E todas foram pro canto do quarto, inclusive a da pia, que acabou se apaixonando no meio daquilo tudo. Sentimental demais.

Sentado no vaso resolvi apelar pra crueldade. Estava em apuros mesmo. Despertei no meio da madrugada pra matar uma formiga de cada grupo e deixar a cena com evidências claras de assassinato por alguma facção rival. Finalmente a rebelião iria começar. No quarto não foi difícil, sempre tinha uma quase morta por perto. Dei uma chinelada nas ancas, ela dobrou-se toda, estava morta. Como pista, deixei resquícios de “casca” de salame ao redor do corpo simulando um possível latrocínio. Sobre a pia, um pequeno grupo de cinco perambulava observando a escuridão e sentindo a brisa. Esperei pra ver se ao menos uma se dispersava da turma, o que não aconteceu, por isso, só por isso, com duas chineladas matei todas. Após, arranquei pernas e antenas de todas, sugerindo uma chacina seguida de esquartejamento. Para parecer serviço de outro grupo, deixei rastros de cerveja preta contínuos. As da pia não bebiam bebidas alcoólicas. Perfeito. No chão, achar uma formiga andando sozinha foi a coisa mais fácil. Derramei álcool sobre ela e acendi com um fósforo. Como eu sabia que dificilmente aquelas egoístas iriam ligar pra formiga carbonizada, saí pela porta da quitinete e fui procurar uma formiga menor, com no máximo 2 milímetros. Queimei-a da mesma forma e pus os restos mortais ao lado da anterior. Matar uma mãe e sua filha tostadas teria que despertar revolta. Como prova fiz um caminho de cerveja, dos corpos até o quarto.

Reações:

Formigas da pia: chocaram-se ao ver a cena, teve até tentativa de ressuscitação em vão. Organizaram uma missa dentro de um prato, gritaram por justiça divina, e concordaram em passar um dia sem comer para demonstrar o luto. No dia seguinte deixaram cinco pedaços de “casca” de salame onde as mortas foram encontradas.

Formigas do chão da cozinha: trafegaram normalmente ao redor dos corpos, até que duas formigas passaram por perto ao mesmo tempo e começaram brigar pelo pedaço maior de farelo do pão torrado. A vencedora levou a mãe, a perdedora contentou-se com a filha.

Formigas do quarto: praticaram necrofilia por horas. Quando perceberam que havia um óbito, partiram para uma passeata, reivindicando melhor sinalização no azulejo.

Diante das consequências, tomei outra decisão. Chega de caos. Usaria veneno. Uma seringa com líquido transparente. Resultado:

Formigas da pia: mortas.

Formigas do chão da cozinha: mortas.

Formigas do quarto: mortas.

Eu: relatei os acontecimentos e fui promovido para o próximo verão.

Peça nova peça ( V )

G sai de cena e entra pela cortina atrás do balcão. H1 volta e se senta onde H2 estava sentado. H2 volta ao lugar onde estava H1. Ambos estão olhando fixamente para lados opostos, até que dizem juntos no mesmo momento que se olham:

H2 – Gostei da vista que tinha daqui
H1 – Gostei da visão que tinha daqui

Ficam alguns segundos paralisados.

H2 – Te ultrapassei por uma letra.
H1 – Como assim?
H2 – Visão tem uma letra a mais que vista
H1 – Nada disso, ambas palavras têm cinco letras
H2 pensa um pouco.
H2 – Jurava que visão tinha uma letra a mais.
H1 – Falha no ponto de vista.
H2 – Você foi ao banheiro masculino ou feminino?
H1 – Nem reparei. Mas fui no contrário do seu.
H2 – Também não reparei em qual entrei.
H1 – O seu estava ocupado?
H2 – Estava.
H1 – Por um homem ou mulher?
H2 – Por um homem, mas não tinha mictório, por isso perguntei. E o seu estava ocupado?
H1 – Sim, por uma mulher, mas tinha mictório no meu.
H2 – A palavra mictório aparece na bíblia?
H1 – Sim, inúmeras vezes.
H2 – Quanto tempo demorou para ler a palavra mictório?
H1 – Não mictei.
H2 – É uma palavra boa para ultrapassar numa frase. Enquanto alguém diz ao mesmo tempo que você: “Vou ao mictório”, pode-se dizer: “Vou ao mic”.
H1 – É passível de interpretação. “Vou ao mic” pode ser encarado como “Vou ao microfone”.
H2 – Mas aqui não tem microfone, nem na bíblia.

G por trás da cortina com voz de microfone: Já vou!

H1 – Como sabe, se nunca leu a bíblia?
H2 – Li a história do microfone.
H1 – Em quanto tempo?
H2 – Não tenho cronômetro.
H1 – Eu tenho um cronômetro aqui no bolso. Você tem a história do microfone?
H2 – Não tenho. Você já leu a história do cronômetro?
H1 – Já li no dentista.
H2 – Em quanto tempo?
H1 – Não cronometrei.
H2 – Por que não?
H1 – Muita dor de dente.
H2 – E o que o dentista disse?
H1 – Que é preciso cronometrar as cáries.

Nesse momento o Homem 3 entra em cena e se senta numa mesa distante. H1 e H2 observam mas não dão atenção.
H2 olhando para o balcão, G fazendo algo: Garçom!
G sem desviar o olhar: Já vou!
H1 olhando para o balcão, G ainda fazendo algo: Garçom!
G sem desviar o olhar: Já vou!
H3 olhando para a plateia: Garçom!
G vai apressado até sua mesa com bloco de notas: Sim?!
H1 e H2 observam.
H3: Vou querer um bife de fígado de boi não alcoólatra e um suco de pregos.
G: É pra já.
G vai apressado para trás da cortina.
H1 e H2 ao mesmo tempo olhando pra cortina: Garçom!
G: Já vou!
H1 – Vou fazer uma ligação
H2 – Também vou. Ambos saem de cena por lados opostos. H3 se levanta e vai até a frente do palco fazer seu monólogo:

Peça nova peça ( IV )

Eu já sabia que tinha AIDS. Minhas calças ficaram folgadas, suava todas as noites e não conseguia dormir. Comia pouco e estava todo amarelo. Inicialmente pensei que tinha contraído nos milhares exames de sangue que fiz desde a infância, cerca de dois por mês. Nenhum médico me curava. Minha mãe rezava pela cura. Para não deixarem ela sem resposta, todos afirmavam ao verem meus exames:

– É anemia. Ele tem que comer fígado.

Receitavam alguns remédios, uma lista com alimentos ricos em ferro e marcavam o próximo exame de sangue. E sem brincadeira, devo ter ficado nessa por no mínimo dez anos. Era fígado a milanesa, fígado com limão, fígado com fígado, batida de fígado, suco de fígado, sobremesa de fígado, sorvete de fígado, bala de fígado. Meu pai sempre que podia fumava cigarros de fígado ao meu lado, o que de fato me transformava em um “fumante de ferro passivo”

Passavam-se os dias até a próxima consulta, e lá estava o diagnóstico:

– É anemia. A senhora está dando fígado pra esse guri comer?
– Sim doutor – minha mãe dizia. – É fígado no café, no almoço e na janta.
– Tem certeza que não são fígados de animais alcoólatras?
– Sim. Sempre alerto o açougueiro.
– Estão fumando cigarros de fígado ao lado dele como receitei?
– Sim doutor.
– Muito bem. Vamos tentar outra coisa. Ao invés de usar sabonete, ele tomará banho com um pedaço de fígado durante o período de um mês.
– Fígado de porco ou de boi?
– Pro banho eu sugiro o de boi. O de porco sugiro como travesseiro, também pelo período de um mês.
– Tudo bem doutor. Ouviu filho? Boi no banho, porco na cama.
– Entendido – respondi.

Saímos do consultório e fomos direto para o açougue.

– Oi Tião – cumprimentou minha mãe. Preciso de um fígado de boi não alcoólatra, e um de porco, também não alcoólatra.
– Desculpe senhora – disse o Tião. Hoje só tenho fígados que vieram direto do AA (Animais Alcoólatras).
– Como assim Tião?! Meu filho não pode ficar sem banho e sem dormir hoje. Faz parte do tratamento dele.
– Espere um minuto. Vou ligar para o AA.
Tião pegou o telefone e ligou.
– AA, Giana, boa tarde.
– Boa tarde Giana, aqui é o Tião do açougue do Tião.
– Diga Tião.
– Recebi uns fígados aqui de vocês, e gostaria de saber se algum animal recuperou-se do vício antes de morrer?
– Só um minuto Tião, vou verificar a resposta com meu superior. Aguarde na linha por favor.
– Vai verificar com o superior – disse Tião para nós.
– Marcelo! Marcelo!
– Estou indo Giana.

– Fala meu amor.
– O Tião está aqui na linha perguntando se tivemos algum caso de reabilitação antes da morte dos animais que lhe enviamos a última carga de fígados.
– Sim, tivemos. Um boi e dois porcos não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram sob nossa observação, por outras causas. Um porco cometeu suicídio, o outro morreu de orgasmos múltiplos na masturbação e o boi, coitado, descobriu que era capado e morreu de tristeza.
– Quais eram os nomes deles?
– Tenório, Valente e Tibúrcio.
– Só um minuto Marcelo.

– Tião?!
– Sim?!
– Tivemos três casos de reabilitação, dois porcos e um boi. Tenório, Valente e Tibúrcio não bebiam mais por no mínimo dois anos. Morreram por outras causas.
– Morreram de que?
– Um porco se matou, outro se perdeu na bronha e o boi foi de tristeza.
– De tristeza?
– Sim, tristeza. Descobriu que era capado.
– Como descobriu?
– Só um minuto.

– Marcelo, como o boi descobriu que era capado?
– Eu contei.

– Alguém contou Tião.
– Ok Giana. Obrigado.

– Por que você revelou que ele era capado Marcelo?
– Porque o animal me chamou de corno e disse que era o pai da minha filha.

Tião explanou a situação. Minha mãe aceitou os fígados. Eu afirmei que os porcos sim sabiam morrer. Fomos pra casa, já estava escurecendo. Meu pai fumava um cigarro de pulmão na cozinha. Minha mãe ficou furiosa, “Você tem que comprar os de fígado, homem!” ela disse. Mas ele comprou aquele porque estava com dificuldades pra respirar. Fui ver TV enquanto a mãe colocava um pedaço do fígado de boi na saboneteira e trocava meu travesseiro pelo fígado de porco.

– Vai tomar banho! Ouvi logo depois.

Entrei no banheiro, liguei o chuveiro e enxaguei os cabelos. Após isso esfreguei a carne pelo couro cabeludo. Imaginei que após aquilo jamais ficaria careca. Foi um banho normal, a única diferença que sentia era quando passava aquela carne macia pelo genital. Não arrisquei lavar a bunda com aquilo, pois seguindo com as conotações maliciosas, meu rabo não precisava de ferro. Saí do banho e fui me vestir.

– Quer jantar? Ouvi da cozinha.
– O que você fez hoje mãe?
– Sopa de fígado pra ti.
– Sim. Já estou indo – respondi.

Na hora de dormir fiquei na dúvida se aquele travesseiro novo era do porco suicida ou do punheteiro. Fiquei na dúvida. Após os trinta dias de tratamento e mais um exame de sangue retornamos ao mesmo médico.

– Não pode ser – ele disse.
– O que foi doutor? Perguntou minha mãe.
– Esse guri não melhora nunca. Fizeram exatamente o que mandei?
– Nada diferente do que o senhor mandou. 
– Bem, só me resta uma última tentativa. Ele terá que comer pregos.

Depois desse dia toda minha alimentação mudou. Virou prego à milanesa, prego com limão, prego com prego, batida de prego, suco de prego, sobremesa de prego, sorvete de prego, bala de prego. Meu pai até que tentou acender alguns pregos ao meu lado. Aquela coisa de comer prego e cagar parafuso não funcionava comigo. Eu sabia que estavam me tratando de alguma coisa, mas nem imaginava o que era anemia. Um tempo depois dessa dieta fui fazer mais um exame para a próxima consulta.

– Desisto – disse o médico.
– Nada mudou doutor? Perguntou minha mãe.
– Absolutamente nada.
– O que podemos fazer pelo meu filho?
– Sinto muito senhora. É um caso perdido.

Minha mãe não desistiu e foi novamente à procura de outro médico. Levamos todos meus exames. Ele era descendente oriental, e o que isso tem a ver? Nada, mas o escritor sou eu. Esse médico ia analisando a pilha de exames sem mexer um nervo do rosto.

– Esse garoto nunca será curado da anemia! Por fim declarou e gargalhou.

Aceitei com minha cara amarela o veredito. O que seria anemia?

– Não me diga uma coisa dessa doutor. Vou fazer esse guri comer uma patrola se for preciso.
– Esse garoto pode comer pregos pela vida inteira e nada vai mudar! Hahaha.
– Como não?!
– Minha senhora, teu filho nasceu com Talassemia.

Não perderei tempo explicando minha doença hereditária. Acontece que eu sabia que tinha AIDS. Aquelas malditas putas não esterilizavam as agulhas ou teria sido aquelas outras malditas putas? Não importava, iria morrer logo. Feridas amadureceram perto do pau. Tive esperança de não ser AIDS, apenas alguma DST qualquer, mas logo as feridas sumiram, e novamente eu tinha AIDS. Suei por inúmeras noites, até que finalmente decidi fazer o exame.

Peça nova peça ( III )

H1 – Desconheço duas pessoas com o mesmo nome que são brilhantes na mesma coisa.
H2 – Deve haver dois açougueiros chamados Tião que são extremamente eficazes no que fazem.
H1 – Mas o segundo Tião recebeu o nome do pai pelo reconhecimento do trabalho do primeiro Tião?
H2 – Não necessariamente. Tião o pai, pode não conhecer o primeiro Tião açougueiro, apenas chamou seu filho de Tião pelo próprio reconhecimento.
H1 – Então são três Tião’s.
H2 – Exatamente.
H1 – Tião o pai, também é açougueiro?
H2 – A palavra açougueiro aparece na bíblia?
H1 – Não açouguei
H2 – Preciso ir ao banheiro – Olhando para o balcão: Garçom!
H1 – Também preciso – Olhando para o balcão: Garçom!
G por trás das cortinas: Já vou!
H1 e H2 saem do palco por lados opostos. Segundos depois G sai pela cortina e se encaminha para frente do palco entre as mesas e faz um monólogo:

Peça nova peça ( II )

H1 – Então no que estava pensando antes de me ultrapassar com “tava”?
H2 – Estava pensando que…
H1 interrompendo – Estava?
H2 – Tava pensando o seguinte: imagina que um pai muito fã de fórmula 1 desse o nome para seu filho de Airton Senna. E essa criança também se tornasse muito fã de automobilismo, chegando a competir em nível internacional, até chegar na fórmula 1 e se tornar tão bom quanto o primeiro Airton Senna. Então o Brasil teria 2 ídolos no mesmo esporte com o mesmo nome.
H1 – Mas o segundo Airton Senna também seria tri-campeão mundial?
H2 – Não, seria bi-campeão por enquanto, mas ainda estaria correndo.
H1 – Morreria na pista também?
H2 – Não cheguei a pensar nisso.
H1 – Imaginou o nascimento, nome, toda uma infância voltada aos desejos do pai, as conquistas, mas não a morte na pista, que é o firmamento do ídolo martirizado?
H2 – Você acha que o segundo Airton Senna precisa morrer na pista para ser tão grande como o primeiro Airton Senna?
H1 – Em questão de comparação, sim.
H2 – A palavra comparação aparece na bíblia?
H1 – Não comparei.
H2 – O nome desse garçom pode ser Airton Senna, o seu também.
H1 – Se esse garçom se chama Airton Senna, então ele não honrou os propósitos do seu pai, porque o primeiro Airton Senna nunca chegou atrasado em lugar nenhum. Garçom! – Olhando para o balcão.
G por trás da cortina – Já vou!
H2 – Ele pode se chamar Roberto Carlos, cantar bem, e trabalhar aqui no bar.
H1 – Roberto Carlos não canta bem e nunca trabalhou em bar.
H2 – Conheço um Roberto Carlos que não canta bem e trabalhou em bar.
H1 – Não conheço nenhum Roberto Carlos pessoalmente.
H2 – Meu nome é Roberto Marlos.

Peça nova peça ( I )

Personagens:
Homem 1 = H1
Homem 2 = H2
Homem 3 = H3
Chinês = C
Garçom = G
Mulher = M

Algumas mesas de bar espalhadas pelo palco, uma ocupada com H1 bem em frente ao palco, outra por H2 um pouco afastada, mas estão sentados de frente para o outro olhando em direções opostas fixamente. Um balcão atrás das mesas bem em frente uma cortina, onde G fica oscilando entrando e saindo por ela. No momento está lavando copos. No mesmo momento H1 e H2 se olham e dizem:
H1 – Sabe o que estava pensando?!
H2 – Sabe o que tava pensando?!
Ambos ficam quietos estáticos, mantendo o olhar por alguns segundos. Novamente:
H1 – Sabe o que estava pensando?!
H2 – Sabe o que tava pensando?!
Novamente ficam estáticos por alguns segundos estáticos.
H1 – Pode dizer.
H2 – Diga você.
H1 – Prossiga, você terminou a frase antes que eu.
H2 – Por quê?
H1 – Porque você disse “tava” e eu “estava”.
H2 – Verdade, não tinha notado.
H1 – Me dei conta que fui ultrapassado, mas no momento final da frase, pareciam que eram 3 letras de diferença.
H2 – Se não tivesse falado, juraria que terminamos no mesmo instante.
H1 – Não foi. Se isso acontecesse, afirmaria que eu falo duas letras mais rápido que você em cada frase, isso quer dizer que se começássemos a ler a bíblia no mesmo instante, eu acabaria bem antes.
H2 – Mas não leio em voz alta.
H1 – Não importa, a velocidade é a mesma.
H2 – Tem certeza?
H1 – Sim, cronometrei minha leitura da bíblia em voz alta e sem voz. No final foi o mesmo tempo.
H2 – Quantas vezes já leu a bíblia?
H1 – Somente duas vezes, queria tirar essa dúvida.
H2 – Não poderia usar um livro mais curto para a constatação?
H1 – Poderia, mas o único livro que tenho é a bíblia.
H2 – Quanto tempo demorou?
H1 olhando para o balcão – Garçom!
Voz de G por dentro da cortina – Já vou!
H1 voltando olhar para H2 – 67 horas, 49 minutos e 10 segundos.
H2 – Então esse seria o tempo que eu demoraria também?
H1 – Nunca leu a bíblia e cronometrou?
H2 – Não tenho bíblia, nem cronômetro.
H1 – Pela constatação nas primeiras frases que trocamos, esse seria o tempo que levaria também: 67 horas, 49 minutos e 10 segundos.
H2 – A palavra “constatação” aparece na bíblia?
H1 – Não constatei.
H2 olhando para o balcão onde G lava pratos – Garçom!
G sem desviar o olhar – Já vou!

Hoje à noite fará Sol

A audácia e a coragem
Não serão suficientes
O brilho e a saudade
Estarão em jogo
Na tela terá um torso
Com cabeça de alfinete
Os risos se contradirão
Em segundo plano
As histórias e os heróis
Deixarão de chorar hoje à noite
Fará Sol
O inquilino de bronze
Será artista parisiense
Paranaense, alguma coisa
Nonsense
Fluídos e copos quebrados
Matéria e prima
Degustações com arrepios
Mágica sobre as cabeças
Ruídos e corpos quebrados
Gramática em linha reta
Como o cálice bordô
“Cale-se bobo”
A exuberância e a plenitude
Gestos digestos, indigestos
“Gerson! Gerson!”
“O que é?”
“Por quem os sinos dobram?”
“Pelos que pedem desconto”
Hoje à noite fará Sol
Não teremos a Lua como inimiga
As sombras cumprimentarão o céu
Saudando o incrível movimento
Das folhas secas
A intriga e a maldade
Não serão suficientes
Apostas sem jogos
Despediremos nossos funcionários
Será uma curta viagem
Sem cinto de segurança
Terá fogueira e nostalgia queimada
Fumaça, fumaça
Muita fumaça saindo de um jeito
E entrando de outro
Filhos de farinha e ovos
Receitas antigas
Não faltará bebida
Porque
Hoje à noite fará Sol
Todos acordarão no escuro

Vai

Estava vendendo alguns parafusos e porcas
Para um simples senhor que tinha um trator
Enquanto colocava as peças sobre o balcão
Ele disse: “Vai dar tudo certo”
“Sim, está de acordo com o catálogo” respondi
“Preciso também do filtro pro Valmet 68”
“Filtro de óleo, combustível ou de ar?”
“De óleo”
“Temos sim, já pego pro senhor”
“Vai dar tudo certo”
“Sim, sim” eu disse. E fui pegar o filtro.
Enquanto isso, ele puxou papo com outro vendedor
“Meu filho perdeu seus dois filhos em acidentes”
“Sério?!” Indagou o vendedor
Eu já estava de volta no balcão, então ele contou como foi
“A primeira se chamava Isabella, tinha 8 anos. Brincava nesse trator que estou comprando as peças. Acabou caindo do para-lama e bateu com a cabeça numa pedra. Como se trabalha muito na roça, só perceberam quando já estava branca”
Ficamos calados.
“Mas Deus é sábio, um ano depois nasceu o José, para confortar de certa forma o coração deles”
“É, é” confortou o vendedor
“Qual o preço desse filtro?”
“60,00” respondi
“Preciso do rolamento de embreagem também, tem?”
“Temos”
Me dirigi até a prateleira onde estava o rolamento, mas ainda conseguia ouvir.
“Vai dar tudo certo”
“Vai, vai” acalentou o vendedor
Quando voltava pro balcão, ele continou:
“O José morreu atropelado pelo carro deles. Enquanto engatinhava, o freio de mão soltou e passou por cima dele. Mas Deus é sábio”
Ficamos calados.
“Vai dar tudo certo. Qual o preço do rolamento?”
“120,00” falei
“É só isso por hoje”
Tirei a nota e indiquei o caixa pro pagamento
O telefone tocou, atendi, era uma vendedora de óleos para caixas e motores, como sempre, bem humorada.
“Fala Ramon, vai parar de me enrolar e comprar meus óleos?  Dependendo da quantidade, eu coloco nas costas e vou entregar para você”
“Gremista, já te falei que não sou eu quem compra os óleos aqui na empresa”
“Eu sei, só liguei pra ouvir essa tua voz feia”
“Assistiu o jogo ontem?”
“Digo que liguei para ouvir tua voz e você vem falar de futebol?”
“Sei lá, vai dar tudo certo”
“Tudo certo só quando comprar uns tonéis de óleo comigo”
“Tem promoção hoje?”
“Não, só as mesmas que te falo há seis meses”
“Vou repassar para o responsável, liga amanhã”
“Amanhã não é teu dia”
“Nunca é”
“Nem do Grêmio. Até semana que vem”
“Até”   
Larguei do trabalho horas depois. Comprei cigarros e vinho.
Voltava de moto pra casa, e algo me chamou a atenção
Na entrada de uma rua que dá acesso ao “Fruto proibido”
Famosa zona da região
Duas garotas, somente de calcinha, dançavam na beira da estrada
Embaixo da luz do poste
Tentando atrair alguns clientes
Diminui a velocidade
E gritei pelo capacete com todas as forças:
“Vai dar tudo certo”
Acho que elas não me ouviram
Mantiveram o ritmo rebolado
Continuei meu caminho
Olhando a cena pelo retrovisor
E um caminhoneiro que vinha pelo lado contrário
Estacionou

O contador de fardos

Um erro aconteceu
O farol vai se afastando
Levando consigo o barulho dos animais
Mas é só um embuste profético
Proteico até
Não há nada além do farol
Não há nada além do barulho dos animais
Somente o asfalto congelado em trilhas
O que era delírio torna-se alma lavada
Panos quentes em pianos frios
O horizonte é amplo e escuro
Damos água e comida aos astros
Mas eles só comem e bebem quando querem
Outro erro aconteceu
E ouvir o trânsito é esquecer da estrada
As canções sabotadas desafinam as cordas vocais
Talvez o único som realmente original
Seja de um coração parado
Olho para frente e vejo uma imensidão de luzes piscando
Pisco de volta, como se elas soubessem de onde vem o brilho
Tenho um pequeno contador de fardos
Mas ele estragou
Continua no mesmo número
Embora eu tente ajustá-lo das mais variadas formas
Tentei comprar outro
Mas estavam todos vendidos
Então continuo desatualizado
Até brinco com o meu contador de fardos
Finjo que tenho um coração parado
Ouço a melodia