Há seis meses não entrava naquele bar, e não sentia saudade nenhuma dele nem de qualquer outro, mas acontece que fui lá para simplesmente não beber, apenas observar o que acontecia. O motivo dessa distância que criei dos bares é simples, tenho em mim que beber é como rezar, só é verdadeiro em casa. Subi em torno de quinze degraus, até me deparar com um senhorzinho de cabelos brancos e óculos pequenos no final da escada, de braços cruzados. Com uma postura de estátua militar, sua função é recolher as fichas de papel carimbadas depois de pagas. Cumprimentei-o com displicência, só por educação, ele nem respondeu, o que me deixou realmente aliviado, aprecio muito o silêncio entre as pessoas. O bar permanecia quase que totalmente vazio, embora apresentasse várias opções, tais como: sinuca, fliperamas, músicas e um ambiente cheio de mesas de madeira com uma televisão acoplada no teto sempre no mudo. Resolvi sentar de costas para televisão, sentar e esperar, aos poucos apareceriam os outros e poderia observar o que acontecia. A garçonete veio até minha mesa e com a voz preguiçosa perguntou:
– O que vai querer?
– Por enquanto nada. Você pode pedir pro seu chefe diminuir um pouco o volume do som? Presumo que somente eu esteja ligando pra isso, mas está me impossibilitando de pensar.
Ela riu sarcasticamente. Até seu sorriso era preguiçoso.
– Não pede nada e ainda reclama? Vou ver o que posso fazer.
– Obrigado – agradeci.
Virou as costas e foi em direção ao balcão do caixa com sua bunda preguiçosa. Gesticularam um pouco, riram e nada mudou. Perseverei um pouco na concentração, então percebo que meus pensamentos não obedecem, parecem coisas pré-programadas, como um pacote de ideias que ficam se alternando. Como leigo, sei que não tenho cura, então procurei distrair-me. Comecei mexer as orelhas, aprendi sozinho e não ensino ninguém. Lembrei-me da inspiração que tive para dominar a técnica. Sentia inveja do Ricardinho da mercearia por um único motivo, ele conseguia mexer as orelhas. Tinha um domínio sobre o corpo que eu não tinha e fazia questão de expor sua habilidade todas as vezes que nos encontrávamos, geralmente pra jogar baralho no balcão da mercearia enquanto cuidava dos negócios do pai, um velho careca bom nos negócios e ruim como um câncer nas bolas, que não hesitava em humilhar o filho mais novo na frente dos outros. Ricardinho tinha dois irmãos mais velhos e sempre foi muito inteligente, improvisava motorzinhos minúsculos em brinquedos com rodas e fazia-os passear. Certa vez o fiz levar uma surra das grandes ao convencê-lo furtar umas latas de cerveja da venda para bebermos. O velho notou e marcou o coitado como gado. Tínhamos um ano de diferença, eu quatorze e ele treze. Com tamanha inteligência, sua mágoa era perder em todos os jogos de baralho pra mim. O que ele não sabia em tudo isso é que eu nunca ligava para o baralho, queria muito mesmo mexer as orelhas como ele. Irritava-me ser um humano incapaz de dominar o próprio corpo. Lembro que exaustivamente pedia dicas, e recebia sempre a mesma resposta: “Não sei explicar”.
– Como não sabe explicar Ricardinho? Desembucha.
– Não sei explicar mesmo. Funciona naturalmente.
– Suas orelhas pesam o dobro das minhas e se movem. Explica a mágica, quero aprender.
– Vamos jogar outra partida enquanto meu pai não desce aqui.
Ele não entendia o dom que recebera. Depois de uns dois anos Ricardinho operou as orelhas para parecer normal, nunca mais tocamos no assunto depois disso. Mas involuntariamente e com um lapso de habilidade corporal, aí pelos dezesseis anos atingi o nível que busquei desde os quatorze, e jamais retrocedi.
Então lá estava eu, mexendo as orelhas dentro do bar, faria isso até cansar, depois até doer e por fim até ter vertigens. Enquanto tentava alçar voo a garçonete voltou à mesa:
– Falei com o chefe, ele não vai diminuir o som.
Olhei-a sem deixar de mexer as orelhas freneticamente. Não falei nada.
– Ouviu? Perguntou.
– Percebe o que estou fazendo?
– Ouviu o que eu disse? O volume vai permanecer igual.
Já sentia o cansaço na parte traseira da cabeça. Algo como um amortecimento.
– Eu ouvi. Não olhe nos meus olhos, olhe minhas orelhas. Está vendo?
– O que tem suas orelhas? São normais.
– Não repita tal blasfêmia! Chegue mais perto, venha conferir a anormalidade.
– Conferir o que? Preciso trabalhar. Vai pedir alguma coisa agora?
Desviei a cabeça um pouco para o lado direito e acelerei os movimentos. Um lado da cabeça doía o outro não. Ricardinho ficaria orgulhoso da minha performance, propagava seu legado. Minha orelha esquerda estava ali, toda cheia de vida para a garçonete preguiçosa. Era esse o exemplo de que ela tanto precisava, uma orelha trabalhadora, fazendo sempre mais por mim, se pudesse beijaria minhas duas orelhas naquele exato momento. Com a mão direita puxei-a pra perto e falei:
– Olhe direito, pombas! Não consegue ver o show que estamos proporcionando pra você? Não presenciará algo parecido nas suas próximas cem vidas!
– Qual é cara? Me larga – esbravejou e deu um passo atrás.
Continuei a sincronia. Fiquei eufórico. Luxúria, canibalismo, excitação.
– ESTÃO SE MEXENDO, PORRA! VOU GOZAR!
Nesse instante levei uma bofetada na orelha tão forte que por pouco não me tornei acéfalo. Fez todo meu corpo apontar para o mesmo lado. Masoquista dos infernos. Pensei em matá-la, mas logo me vi mexendo as orelhas novamente com um sorriso malicioso. Era isso, minhas orelhas gostavam de apanhar, portanto dei inicio à uma sessão de tapas áridos. A garçonete ficou boquiaberta ao ver minhas intimidades desmascaradas com tamanha brutalidade. Entre tapas e beijos, é ódio, é desejo, é sonho, é ternura. A música alta não permitia ninguém ouvir os espasmos e contrações da possessão corporal anestésica que todos moribundos sentem, flagelos do acaso. Em meio às extravagâncias sem pudores consegui dizer numa voz bem preguiçosa:
– Você pode pedir pro seu chefe aumentar o som? Isso tudo ainda me mata.