Passado envelhecido ( VII )

Falar, falar, falar. “Tudo bem?” é a coisa mais estúpida. Ninguém está bem. “Sim, tudo bem” é a coisa mais mesquinha. Quando digo “Tudo bem?”, não quero saber se está bem. Lembre-se disso. Se não for minha mãe ou minha mulher, acredite, não ligo, nem você. A não ser que eu descubra sua malícia pro lado da minha mãe ou que anda fodendo minha mulher, aí seu “Sim, tudo bem” pode ser o último. Quanta besteira, minha mãe é virgem, esse é o clichê da minha infância. Minha mulher não daria pra você, ela também é virgem desde os quarenta anos, hoje tem vinte e não quer dar pra mim. O máximo que consegui foi um beijo, não de língua, na fenda. Juro que senti eletricidade lá capaz de iluminar Tóquio. Fiz até cálculos físicos e cheguei à conclusão que sua urina manteria acesas três lâmpadas de 60 watts por treze minutos. Se duvidar traga as lâmpadas e um penico. “Não duvide dos meus cálculos, tudo bem?!” Sou estúpido. “Sim, tudo bem”, você é mesquinho. “Tá de olho em minha mãe?”, “Mas é claro, sou seu pai”, “Trouxe as lâmpadas e o penico?”, “Estão comigo”, “Siga-me”.  Falar, falar, falar. “Qual seu nome?”, “Pinto Mole e o seu?”, “Mole Pinto, xará”. “Legal, tem apelido?”, “Fimose, e o seu?”, “Cancro mole”, “Isso significa que seu primeiro nome faz parte do seu apelido e meu segundo nome também”, “Sim, fimose”, “Não me chame de fimose Mole Pinto”, “Por favor, me chame de cancro mole”, “Me desculpe cancro mole”, “Deixa disso Pinto Mole, somos amigos”. Falar, falar, falar. “Como anda a família?”, “Não andam mais. Somente voam”, “Quanta esperteza”, “Realmente. Somente eu não voo”, “E por que não?”, “Não tenho asas”, “Que situação, hein?!”, “Verdade. E sua família, como vai?”, “Não vai mais. Só vem”, “Mas vem de onde se não vai?”, “Vem do vem”, “Interessante. Você vai ou vem?”, “Vou”, “Pra onde?”, “Pro vem”, “Então vai logo”, “Sim,  vou”, “Você disse vou ou voo?”, “Eu disse vou”, “A bom. Pensei que estivesse tirando sarro da minha família”. Falar, falar, falar. “Acredita em Deus?”, “Dizem que Deus está em cada um de nós, pois bem, então é conveniente que cada um tenha sua própria relação com o seu. Religiões querem padronizar o espírito humano”, “Então quer dizer que acredita?!”, “No meu não. E você acredita?”, “Como posso acreditar se o meu me deve vinte paus”, “Cretino”, “Sempre as mesmas desculpas. O eclipse inflacionou, manutenções na Lua, o Sol e suas horas extras, trocar peças na Terra, os carcereiros do diabo…enfim, acho que posso esquecer a dívida”, “Tentou negociar por uns anos a mais vivo?”, “Tentei, mas ele disse que não passo do dia quinze de março desse ano”, “Eita. Que dia é hoje?”, “Quinze de março”, “Puta que pariu. Há quanto tempo lhe deve a grana?”, “Pediu ontem”. Falar, falar, falar. “Viu só quem o Carlão tá traçando????”, “Quem?”, “A Rita!!!!”, “Quem é Rita?”, “Sua mulher, idiota!!”, “Minha mulher não se chama Rita”, “Não?!”, “Não. Chama-se Alfredo”, “Alfredo?!”, “Exato. Minha filha Alfredo Jr. e meu filho Carmem”, “Para com isso Felício”, “Meu nome é Suzana”, “Suzana?!”, “Exato Rui”, “Meu nome é Samanta”. Falar, falar, falar. “Vai fazer o que amanhã?”, “Pretendo comprar uma tesoura e me castrar. E você?”, “Quero comprar uma tesoura e cortar as unhas”, “Que nada, usa a minha”. Falar, falar. “Assistiu o filme ontem?”, “Só o começo e você?”, “Só o final”, “Viu a hora que o pai supostamente vende a filha? Inacreditável”, “Não. Viu a parte do aborto? Te falar, nojento”, “Não vi. E quando o policial chorou porque matou o cara errado? Minha nossa, quase chorei”, “Baaaa, não vi. E aquela velha na cadeira de rodas que se jogou da ponte? Sinistro”, “Perdi essa parte. Me diz uma coisa, eles conseguem explodir o trem?”,“Qual trem?”, “Do começo”, “Não vi o começo”, “Putz, o plano principal era explodir o trem”, “Devem ter explodido então. No final o extraterrestre salva a garotinha da usina nuclear”, “Enfiaram extraterrestres no filme? Que loucura!”, “Qual era o nome do filme? Quero assistir desde o começo”, “Não lembro. Já era tarde, estava morrendo de sono por isso só consegui ver o começo”, “Que coisa de velho dormir às dez da noite”, “Dez nada, já era três da manhã”. Falar. “Tá namorando?”, “Sim e você?”, “Também”, “Quer matar minha namorada?”, “Quero matar a minha”, “Podemos trocar de namoradas, aí você mata a sua”, “Se trocarmos de namoradas, então posso matar a sua com muito prazer”,“Que sacanagem trocarmos de namoradas e você matar a minha”, “Sacanagem é você sugerir trocarmos de namoradas pra eu matar a minha”, “Acho justo trocarmos de namoradas e cada um mata a sua”, “Fechado. Qual o nome da sua?”, “Maribel e da sua?”, “Também”. Fal….
Saí de casa no sábado pela manhã com uma ressaca infinita, o que todos sabem não ser aconselhável, ainda mais quando o Sol está fazendo suas horas extras. Pensei em como seria bom um eclipse, mas a Lua parecia velha demais pra esse tipo de coisa. O calor era infernal e o diabo certamente havia fugido do cárcere. Meu destino único era uma dessas lojas que vendem de tudo, desde trens, a abortos, extraterrestres e cadeiras de roda.
Cada um tem seu jeito de lidar com a ressaca, o meu é dormir exaustivamente, ao ponto de nenhuma explosão nuclear acordar-me, mas quebrei o ritual, pois precisava comprar duas coisas fundamentais, coisa rápida, afinal, encontrar uma loja dessas não é difícil hoje. A competição moderna fez mercados venderem pneus, farmácias venderem pneus, igrejas venderem pneus, borracharias venderem mercados, farmácias e igrejas, assim por diante, vocês sabem onde quero chegar, claro que sabem, na loja pra acabar logo com isso e voltar a dormir.
Adiantando a história, cheguei ao lugar. Que sacrifício ter que falar naquela situação de corpo e mente. Cadê a modernidade nessas horas? Leia meus pensamentos, por favor, implorei telepaticamente pro primeiro vendedor que visualizei, ele foi em direção a um pneu, e eu pensei: “Que diabos estou pensando em pneu numa hora dessas?”.
– Hei senhora – ele disse erguendo o pneu – não vai esquecer seu pneu.
Fui em sua direção matutando freneticamente minhas duas coisas fundamentais.
– Bom dia. Tudo bem? Ele disse mirando-me.
Que estúpido, óbvio que não estava tudo bem.
– Sim, tudo bem – respondi.
– Em que posso ajudá-lo?
– Quero comprar duas coisas, mas estou em dúvida se vendem aqui.
– Aqui tem de tudo. O que precisa?
Rui dizia seu crachá. Se eu fosse seu pai teria lhe dado o nome de Pinto Mole e o apelidaria de fimose ou cancro mole. Cacete de vendedores convencidos.
– Preciso de três lâmpadas 60 watts e um penico – falei.
– Mas é claro que temos. Temos lâmpadas capazes de iluminar Tóquio, além de penicos personalizados. Vou pegar as lâmpadas e umas amostras de penicos pro senhor olhar, são uma beleza!
Aguardei. Os crachás passavam por mim: Rita, Alfredo, Alfredo Jr, Carmem, Suzana e Samanta. Todos com seus sorrisos matinais desanimadores insistiam na mesma pergunta, “Tudo bem?”, “Sim, tudo bem” eu respondia. Estúpidos, com certeza me acharam mesquinho. Que calor! Até emprestaria meus últimos R$ 20,00 pra Deus parar com aquilo, mas conforme informações nunca mais veria o dinheiro. Olhei para o calendário da parede, já era quinze de março, algo me dizia que morreria nesse dia.
Rui trouxe as lâmpadas e alguns penicos coloridos. Colocou-os sobre um balcão.
– Pode olhar o tempo que quiser, pegar na mão se quiser – falou.
– Farei isso – respondi.
Sem conseguir ficar quieto e percebendo minha indecisão nos penicos, puxou papo. Desgraçado.
– Você é natural daqui?
– Não.
– Também não sou daqui. Nasci no Rio de Janeiro. Vim pra cá com minha namorada, a Maribel, as vezes tenho vontade de matá-la, mas sabe como é….me falta coragem.
– Compreendo.
– Poderia matá-la pra mim! Hahahaha.
Nem respondi.
– E sua família onde está? Continuou.
– Em casa esperando o penico. Preciso me apressar antes que se caguem nas calças.
– Me desculpe, mas preciso rir disso.
– Tudo bem Rui, pode rir. A sorte deles é que só conseguem cagar com a luz acesa, por isso as lâmpadas.
– Família complicada, hein?!
– Naturalmente. Vou levar esse aqui mesmo.
– Posso colocar tudo em uma só sacola?
Iria castrá-lo com uma tesoura caso ouvisse mais perguntas.
– Embrulha pra presente – falei.
– Sem problemas.
Até continuaria o conto, mas passam das três da manhã, já é dezesseis de março e não aguento mais.

Estava em apuros

Por onde olhava via formigas, caminhavam por toda quitinete, e o pior, eram todas iguais, portanto tinha que odiá-las igualmente, se matasse uma, teria que matar todas, nada de privilégios. Um grande grupo circulava por cima da pia da cozinha, esperavam a “casca” do pedaço de salame diário ser jogada lá, para adiante carregarem com dificuldade, pra onde não sei, mas levavam. Já o grupo que cuidava do chão da cozinha esperava farelos, de qualquer coisa. Elas me conheciam a esse ponto. Sabiam tanto sobre mim que jamais arriscavam entrar no banheiro. Grande erro, pois era lá que traçava o plano de exterminá-las. Primeiramente, pra ter certeza que meu cativeiro estaria longe de espiãs, comia uma fatia de pão com salame, interpretando uma farta refeição na mesa, sem vestígios de genocídio próximo. Quando a “casca” em cima da pia movia-se discretamente, “sem querer” empurrava farelos de pão da mesa pro chão. Então, seguindo com o teatro abria a porta da geladeira e tomava um copo de água, com os olhos fixos nos farelos, que logo se moviam discretamente também. Só nesse momento entrava no banheiro e sentava no vaso. Era difícil ter uma contagem exata, por isso fixei o número em um bilhão de formigas, todas com o mesmo tamanho 8 milímetros, nascidas no mesmo dia. Criei três perfis:
Formigas da pia: astutas, persistentes, pacientes, famintas e organizadas. Nunca andam sozinhas, estão sempre acompanhadas de duas ou mais parceiras. Sua comida predileta é “casca” de salame. Detestam fumaça de cigarro, bagaço de limão e respingos d’água da torneira. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora e mínima 2 quilômetros por hora.
Formigas do chão da cozinha: egoístas, desorganizadas, prepotentes e desequilibradas. Não gostam de companhia, carregam seu próprio pedaço de pão e se for preciso morrem por ele. Além de farelos, demonstram interesse em açúcar, gotas de suco de limão e raras se arriscam na cerveja preta. Abominam chulé e gordura. Velocidade máxima 9 quilômetros por hora e mínima 3 quilômetros por hora.
Formigas do quarto: alegres, receptivas e sonhadoras. Geralmente nem sabem onde estão, nem com quem, mas isso nunca parece ser problema. Sem preocupações na vida, comem o que aparece, desde insetos mortos até migalhas de bolacha recheada. Se coçam por uma cervejinha e cinzas de cigarros. Ainda não descobri o que execram. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora sem beber, e mínima 4 quilômetros por hora sem beber. Ponto relevante: quando bebem muito, permanecem no mesmo lugar por horas.
A partir destas constatações, meu primeiro plano foi confundir os grupos, criar um caos generalizado na casa, gerar conflitos de satisfações íntimas ou grupais. Testei a seguinte solução: largar a “casca” de salame no quarto, farelos de pão sobre a pia e derramar cerveja no chão da cozinha. O que aconteceu:
Formigas da pia: reuniram todos os farelos em um só monte, fizeram uma breve contagem percentual, e em círculos andaram todas a 7 quilômetros por hora, realizando um ritual de agradecimento aos seus deuses. Sem demora, quatro formigas apareceram carregando um pedaço de “casca” de salame, não sei de onde, e se alimentaram ali mesmo, uma refeição completa.
Formigas do chão da cozinha: Houve troca de empurrões e pisoteamento por cada gole da cerveja. Aquelas raras da cerveja preta aguentaram mais trago, as outras saíram rastejando e vomitaram nos pés da mesa. Somente um grupo de dez formigas negou-se a beber, mas quando notaram o fim da cerveja brigaram entre si para saber de quem tinha sido a ideia idiota de não beber.
Formigas do quarto: não perceberam a “casca” de salame. A única muvuca ocorreu quando uma formiga de ressaca caiu de cima do guarda-roupa. Boatos sobre tentativa de suicídio se espalharam, promovendo uma rápida passeata perto do ventilador por direitos homossexuais, porém a própria formiga que caiu acabou contando os verdadeiros motivos do tombo. Pra não passarem por bobas, as formigas da passeata aceleraram para 10 quilômetros por hora, exigindo mais insetos mortos, cerveja cara e cinzas de cigarros brandas. No fim da noite organizaram uma suruba de confraternização.
Sem sucesso, tive que voltar para o vaso e pensar um novo plano. Em minha mente, ainda permaneci com a ideia de caos e guerra entre elas para o extermínio total. O que resolvi fazer foi o seguinte: capturar três formigas, uma de cada grupo e desloca-las para outro território, assim, proporcionaria divergências de opiniões e atitudes, quem sabe até um assassinato brutal, isso seria capaz de gerar nocividade, e por fim, o holocausto tão desejado por mim. Uma formiga do quarto introduzi no grupo do chão da cozinha, uma formiga do chão da cozinha foi pra pia e uma da pia foi pro quarto. Eis o que se sucedeu:
Formigas da pia: estranharam a presença de uma individualista. Se dirigiram em grupo ao encontro para saber quem era, e afinal, o que acontecia com ela. A egoísta evitou cerimônias, dizendo não saber o porque de estar ali, e afirmou que o egoísmo era a cura pra qualquer loucura. As formigas da pia, por sua vez, sabiam o que fazer. Carregaram a formiga do chão nas costas e lhe ofereceram uma farta refeição com farelos e “casca” de salame. Dançaram pra ela, lavaram suas antenas, e por fim, lhe deram um cargo importante entre elas. Foi inevitável a aceitação.
Formigas do chão da cozinha: se perguntavam intimamente quem era aquela formiga correndo pelada e batendo a cabeça na parede. Sentiram, todas, uma imensa vontade de imitá-la, mas tinham vergonha, vergonha dos risos, por isso contentaram-se observando. Essa pelada correndo a 12 quilômetros por hora (tinha bebido), para se enturmar resolveu promover uma suruba. E o que aconteceu foi que todas formigas brocharam perante a pressão imposta. Percebendo aquilo, a impostora que agora estava no chão da cozinha resolveu voltar pro quarto, mas acabou se perdendo e entrou no banheiro, onde morreu por asfixia. No laudo consta overdose. Heroína.
Formigas do quarto: acordaram com ordens e gritos da formiga da pia, “Vamos acordar”, “Está na hora”, “O que temos pra hoje?”, “Casca ou farelo?”. Sem ligar praquilo, todas se dirigiram ao cinzeiro e às garrafas de cerveja. Fiquei só observando. Como as ordens não paravam, uma sugeriu “Que tal uma suruba pra acordar?”. E todas foram pro canto do quarto, inclusive a da pia, que acabou se apaixonando no meio daquilo tudo. Sentimental demais.
Sentado no vaso resolvi apelar pra crueldade. Estava em apuros mesmo. Despertei no meio da madrugada pra matar uma formiga de cada grupo e deixar a cena com evidências claras de assassinato por alguma facção rival. Finalmente a rebelião iria começar. No quarto não foi difícil, sempre tinha uma quase morta por perto. Dei uma chinelada nas ancas, ela dobrou-se toda, estava morta. Como pista, deixei resquícios de “casca” de salame ao redor do corpo simulando um possível latrocínio. Sobre a pia, um pequeno grupo de cinco perambulava observando a escuridão e sentindo a brisa. Esperei pra ver se ao menos uma se dispersava da turma, o que não aconteceu, por isso, só por isso, com duas chineladas matei todas.Após, arranquei pernas e antenas de todas, sugerindo uma chacina seguida de esquartejamento. Para parecer serviço de outro grupo, deixei rastros de cerveja preta contínuos. As da pia não bebiam bebidas alcoólicas. Perfeito. No chão, achar uma formiga andando sozinha foi a coisa mais fácil. Derramei álcool sobre ela e acendi com um fósforo. Como eu sabia que dificilmente aquelas egoístas iriam ligar pra formiga carbonizada, saí pela porta da quitinete e fui procurar uma formiga menor, com no máximo 2 milímetros. Queimei-a da mesma forma e pus os restos mortais ao lado da anterior. Matar uma mãe e sua filha tostadas teria que despertar revolta. Como prova fiz um caminho de cerveja, dos corpos até o quarto. Reações:
Formigas da pia: chocaram-se ao ver a cena, teve até tentativa de ressuscitação em vão. Organizaram uma missa dentro de um prato, gritaram por justiça divina, e concordaram em passar um dia sem comer para demonstrar o luto. No dia seguinte deixaram cinco pedaços de “casca” de salame onde as mortas foram encontradas.
Formigas do chão da cozinha: trafegaram normalmente ao redor dos corpos, até que duas formigas passaram por perto ao mesmo tempo e começaram brigar pelo pedaço maior de farelo do pão torrado. A vencedora levou a mãe, a perdedora contentou-se com a filha.
Formigas do quarto: praticaram necrofilia por horas. Quando perceberam que havia um óbito, partiram para uma passeata, reivindicando melhor sinalização no azulejo.
Diante das consequências, tomei outra decisão. Chega de caos. Usaria veneno. Uma seringa com líquido transparente. Resultado:
Formigas da pia: mortas.
Formigas do chão da cozinha: mortas.
Formigas do quarto: mortas.
Eu: relatei os acontecimentos e fui promovido para o próximo verão.

Passado envelhecido ( VI )

Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade.
– Como não sente as pernas?
– Mas como é que vou saber?!
– Está deitado?
– Mas é claro.
– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.
– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.
– Tá brincando comigo Ramon?
– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.
– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.
– Acordei aqui, não lembro de nada. Parece uma casa, estou deitado sobre uma cama box muito confortável. Não sinto dores. A porta do quarto está aberta, logo rastejarei pra fora daqui. Antes queria que soubesse minha situação supervisor. Desculpe-me, se conseguir irei rastejando até aí. Só preciso me localizar.
– Para de brincadeira Ramon! Se não quer vir trabalhar, apenas não venha diabo! É só um dia descontado, que palhaçada por R$ 20,00.
– Ouvi barulhos. Preciso desligar.
Desliguei. Ergui-me do meu colchão no chão, acendi um cigarro e comi cinco biscoitos de água e sal. Uma chuva torrencial tocava o calçamento da rua onde moro, também tocava o telhado, um fusca e três cachorros molhados que se divertiam às 07:30 da manhã. Meu ciático e seus eletrochoques permanentes nas nádegas faziam-me ficar balançando no banquinho, enquanto comia mais biscoitos. Na próxima ligação daria mais ênfase ao drama. Palhaçada R$ 20,00? Palhaçada era trabalhar fazendo força o dia todo por R$ 650,00 ao mês, sem plano de saúde e insalubridade. Palhaçada sair de casa naquela chuva, com dores irradiando até o final das pernas. Palhaçada era estar escrevendo um conto enquanto tudo isso acontecia, com o dia transcorrendo negro, e a brisa movendo a cortina plástica e curta que comprei quando vim morar aqui. Em qualquer trabalho é necessário faltar. Quem não falta um dia pira, coloca par de meias com cores diferentes, chega com a camiseta pelo avesso, com cheiro de trago, com os pentelhos altos, com dores, muitas, com medo, com as unhas grandes, com fome, com vontade de matar, de queimar, de aleijar, não dá pra cair e rastejar por eles, “O Teodoro sim era um exemplo de funcionário, nunca faltou! Veio trabalhar até com as hemorróidas expostas!”, e o Teodoro está lá, sangrando por eles. Não, não, a paciência em excesso faz bem para tolos ou religiosos. Sou um bom sujeito. Deveras mais complicado que bom, quando minto me complico, mas não perderia meus R$ 20,00. Voltei para o quarto e liguei novamente:
– Diga Ramon.
– Não estou entendendo nada. Ouvi barulhos por perto, mas logo afastaram-se. Fiquei com medo, por isso não chamei ninguém. Consegui descer da cama pelo lado do guarda-roupa e fui rastejando paulatinamente, mas aí fodeu tudo. Tem um velho desacordado no chão do quarto, respira, cutuquei nas costelas, não sei o que ele tem.
– Vai continuar com essa história? Vou agora na tua casa e te pego pelo pescoço.
Ele nem sabe onde moro. Apenas três pessoas que sabem meu nome também sabem o lugar que passo as mais longas noites. Uma ex-namorada, uma prostituta e o proprietário da casa. No cadastro da empresa consta meu antigo endereço e não recebo visitas. O entregador de bebidas do bairro também sabe, mas nunca disse meu nome para ele, me chama de “Esponja”, e eu o trato como “Drácula”. Formalidades genuínas.
– Vai lá então. Digo a verdade. Vai me ajudar ou não? Passos, passos, me ajude, por favor!
Desliguei. Tive que rir. Liguei de novo:
– Sim?!
– Ei Drácula, bandido, pode me trazer três garrafas de vinho?
– Agora não dá pra sair daqui.
– Por quê?
– Faleceu um tio da minha mulher. Só estou organizando pequenas coisinhas aqui e logo iremos ao velório. Se correr, espero você chegar aqui.
– Não sinto minhas pernas. Fica pra próxima.
– Fico te devendo essa “Esponja”.
– Tranquilo “Drácula”, sem formalidades.
Resolvi escrever. Na maioria das vezes ouvia música para desenvolver algo, principalmente blues, mas desta vez encontrei a harmonia necessária nos estampidos da chuva no telhado. De um modo estranho e bonito, lembrei-me daquela vez, quando tinha meus sete anos no máximo e uma tempestade colossal caiu sobre nossa velha casa de madeira, construída ao lado de um barranco onde minha mãe extraordinariamente conseguia plantar mandioca. Meu pai não estava em casa, já era noite, já era hábito. O céu reluzia temor, e em todos os novos trovões era possível sentir a fossa em frente à casa tremendo. “Estou com medo mãe”, “Deixa de ser bobo piá, já passa”. Logo um vento poderoso fez a madeira das paredes estalarem, como se estivessem rachando aos poucos. Os fios elétricos mal esticados por fora da casa davam voltas como crianças brincando de pular corda e faziam sons de fantasmas. “Vamos todos morrer, mãe”, “Vai brincar com alguma coisa, só não liga a TV que pode queimar”. Foi ficando pior, fui pro quarto, mas quando faltou luz saí correndo de lá. Na cozinha minha mãe acendeu duas velas sobre a mesa e depois formou um ramo de folhas compridas que levou até à janela fechada. Com um fósforo ateou fogo nas folhas, abriu a janela e esticou o braço direito pra fora com o ramo na mão. Sua boca movia discretamente enquanto observava a fumaça sendo arrastada pelo vento. “O que está fazendo?”, “Logo vai passar, logo, logo…” ela respondeu. Se eu tinha desenvolvido algum tipo real de fé na vida já, estava todo voltado praquele ramo queimando, “Logo vai passar, logo, logo…” pensava. De repente um tremendo estrondo fez a casa balançar e a janela bateu com toda força no braço de minha mãe, mas ela persistiu até queimar metade do ramo. Depois recolheu o que sobrou e jogou dentro da pia, abriu a torneira e o fogo apagou. Agarrou as folhas e colocou-as dentro de uma sacola pendurada na parede. “O que vai fazer com elas?”, “Guardar pra próxima”. A tempestade ficou tão intensa e assustadora que comecei chorar abraçado nela, “Por onde anda teu pai agora?! Oh Deus, que esteja protegido no bar”.
Mas bem, não era sobre isso que queria escrever, então iniciei o conto assim:
“Liguei e disse que não iria trabalhar porque não sentia as pernas. O silêncio é um estado psíquico, assim como a verdade”.
O telefone tocou, atendi, mas não disse nada, apenas respirei forte.
– Ramon, pode me ouvir?
– Fale, rápido.
– E aí?
– Ouvi passos até uma porta. Duas pessoas saíram conversando. Tentei acordar o velho, mas acho que precisa de um médico. Rastejei até a porta, está aberta. Consigo ver uma padaria daqui mas o nome é muito pequeno.
– Grite homem!! Chame alguém!!!
– SOCOOOORRO!!! SOCOOOORRO!!!
Ainda bem que não tenho vizinhos, pensei.
– Ligue pra polícia!!
– E direi que estou aonde?
– Pelo amor de Deus, rasteje até a rua.
– Farei isso. Vou desligar.
Queria rir por cinquenta anos, mas fui interrompido por batidas rápidas na porta. TOTOTOTOTOTOC. Não era possível, não, não era. Ao abrir dei de cara com ele:
– Tudo bem “Esponja”?
– Que susto me deu “Drácula”. Precisa bater tão forte na porta?
– Ouvi gritos de “Socorro, socorro”. Imaginei o pior.
– Ah, sim. Nunca ouviu essa música? “Socoooorro, socoooorro, roubaram meu bife pra apoio de mesa”.
Cantei pra ele. Cantei bem. Duas vezes.
– Desculpe, mas só ouvi “Socorro, socorro”, o resto da música passou despercebido.
– É que esse é o refrão e é cantado desse jeito. Grita-se na hora do socorro entende?! Só não gritei de novo porque perdi a voz.
– Trouxe as três garrafas de vinho. Minha mulher está ali no carro, vamos até o velório. Pode pagar amanhã “Esponja”. Melhorou das pernas?
– Melhorei. Obrigado “Drácula”.
– Até mais.
Que querido, pagar amanhã, falou por falar, sabia que só quitaria toda dívida final do mês, como todos anteriores. Velórios não melhorariam nossos negócios. Levei uma garrafa pro quarto. Continuei o conto bebericando no bico:
“…
– Como não sente as pernas?
– Mas como é que vou saber!
– Está deitado?
– Mas é claro.
– Então chame os bombeiros e amanhã traga um atestado. Quero ver.
– Não posso chamar, não faço ideia de onde estou.
– Tá brincando comigo alemão?
– Quem dera! Não sinto as pernas supervisor! Não sinto nada! TOC-TOC-TOC. Ouviu minhas canelas? Ocas. Jesus Cristo! Posso fazer macarronada com elas.
– Como não sabe onde está? Não lembra como foi parar aí? É uma casa? Está sozinho? Vou te descontar um dia, fique sabendo.”
Telefone tocou novamente:
– Alô – eu disse.
– E aí? Conseguiu?
– Sim chefe, estou indo para o hospital de ambulância.
– Está tudo bem? Onde estava?
– No centro.
– E o velho? Morreu?
– Morreu.
– Hahaha. Que ambulância silenciosa.
– Estamos parados.
– Hahaha. Vou até o hospital te ver.
– Não sei pra qual estão me levando. Deixa pra lá.
– Irei em todos.
– Boa ideia.
– Vai continuar com isso?
– Com isso o que?
– Tudo bem. Traga-me um atestado quando puder.
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
“R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
R$ 20,00 valeram o divertimento. Bebi as três garrafas de vinho e só finalizei o conto à tarde, assim:
…”

A ferramenta do diabo

Toda a ansiedade estava me deixando com náuseas fortes. Na casa do Raul, por volta das 20:00 horas de uma sexta-feira, aquela espera incomodava. A bebida aumentava meu desconforto, o cigarro fedia um esterco nostálgico, das plantações de alface. Tudo era a questão do tempo, as abelhas e o pólen, a seringa e a veia, um cacto, o espinho e a folha furada.
– Que horas elas chegam Raul? Perguntei.
– Daqui a pouco, relaxa, parece que nunca comeu ninguém, fica olhando pra tudo, e segurando o vômito na boca, tá me dando nojo já.
– Estou com pressa cara. Vou enfartar, meu braço dormiu, meu estômago dói, estou com sono. Bem sabe que odeio suas mulheres, porque elas nunca vem. Elas ficam jogando com meu tesão, aí se acaso vierem, vão chegar aqui e reclamar do cheiro desse lugar. Falando nisso, poderia ter limpado esse chiqueiro.
Fazia cinco meses que não visitava o Raul. Sempre gordo. Mudando de casa a cada três meses, conseguia deixar todos os lugares iguais, fedendo os mesmos pontos da casa. Cada porta guardava um amontoado de roupas, seus instrumentos musicais, baldes, plantas, café, meu Deus, quanto café aquele porra bebia. Essa última casa era nos fundos de uma rua sem saída. Perguntei sobre a vizinhança, disse que uma cavala morava ao lado, e em algumas madrugadas ouvia-a gemer e bater na parede com força “ME FODE O TRASEIRO, NO TRASEIRO!”, mas ele nunca viu algum homem sair ou entrar lá, imaginava que era cena, “uma mulher solitária é capaz disso” ele afirmava, “uma mulher solitária te descreve Cristo pelado”, respondi. Outro vizinho tinha o costume de bater em sua porta quase toda noite, por volta das 22:00, com um copo de conhaque e coca, pedia um cigarro, oferecia um gole e voltava pra casa. “Esse cara ainda vai te matar”, falei. E tinha um velhinho e seu cachorro, sempre zanzando pela rua, o cão nunca latia, só cagava e demarcava território. O velhinho falava “Mija Bobby…caga Bobby…mija Bobby”.
– Porra Ramon, vem na minha casa duas vezes por ano, e ainda reclama do cheiro que eu preservo por aqui. Vai pro inferno!
– Qual é gordão, não é o cheiro, mas aquela merda de gato do lado do fogão vai criar asas.
– Tá seca já, nem fede, nem se mexe, tá mais pra um chaveiro caído.
– Enche o copo aí que vou vomitar um pouco. Essas duas estão me fodendo o esôfago.
O banheiro era sempre a parte mais limpa das suas casas, me senti vomitando no limbo. Mas dei só uma esguichada, de joelhos, não tinha bebido quase nada, era a ansiedade, a demora, algo me dizia que elas não viriam, não que me incomodasse, mas a dúvida do sexo sempre me deixa inquieto, preferia saber que elas não apareceriam, ao invés de aguardar seus belos quitutes preguiçosos pela noite inteira.
– Tá bem aí? – ouvi.
– To cara. Você que limpa esse banheiro?
– Sou eu sim. Vomitou dentro da água pelo menos?
– Claro
Abri a porta do banheiro, ele tentava olhar por mim, ver se eu tinha estragado seu altar, enquanto segurava meu copo.
– Vai querer conferir o banheiro agora? Me dá esse copo – falei.
– Ah cara, eu gosto da privada limpa.
– Ok. Entra aí e lambe meu vomito seu porco de merda. Haha.
– Ah cara, não é por mal, sabe que eu só deixo o banheiro limpo sempre.
Peguei meu copo de vinho e segui pra sala. Ele deu uma conferida, eu não tinha feito nada errado dessa vez.
– Hei Raul – falei. Essas mulheres virão? Para de enrolar, to cansado de teatro já. Por isso que prefiro pagar.
– Elas disseram que viriam, só estavam se preparando pra noite. São novas, gostam de sair bonitas e cheirosas. Respeite-as, estão vindo aqui cheirar bosta e vômito, o que você quer mais?
– Isso que me preocupa, todas as vezes que apareço na tua casa, você me promete jovens beldades fodedoras, e o mais perto que cheguei de um rabo até hoje numa casa sua, foi nessa merda de bosta de gato ao lado do teu fogão. Por que insiste em prometer essas coisas? Sabe que venho aqui pra beber e dormir. Não me faça falsas promessas cara, isso está me deixando maluco já. Eu chego aqui e você sempre com a mesma história “Tenho alguém pra ti comer hoje”, e a única coisa que tem pra comer aqui é aquela laranja de um quilo na geladeira. De onde saiu aquilo?
Dei um gole, ácido da pior qualidade.
– Desculpa cara. Sempre parece que vai funcionar. Quando você vem não funciona. É você cara, você traz energia negativa. Vai se benzer, é um conselho.
– Vai lamber o chão do teu fogão.
Liguei a TV, o telefone tocou.
– São elas – disse ele.
– Atende então – respondi.
– Alô…Sim, é o Raul….Tudo bem amor….humm…o quê?…onde?….não, não…um amigo meu….tá bem então doçura…Tchau.
– E aí? Perguntei
– Elas não vem.
– Porra, onde tá o vinho dessa bodega? Vomitei de graça. Um dia ainda te enfio uma peteca no cu e taco fogo nas penas. Foi a última vez que acreditei em ti, barriga de verme. Me traz o vinho.
– Tu também, só fala, e fala. Nunca trouxe mulher aqui em casa.
– É claro que não. Se eu tenho mulher não venho aqui.
– Assim me ofende. Faço o possível por nós.
– Deixa pra lá. Quero sobreviver até ser possível comprar uma buceta e conservá-la num pote de vinagre.
Não transar não é ruim, a esperança de foder que é um castigo.
– Cara, também fiquei abalado. Vou pegar o garrafão.
– Vai lá. Já me sinto melhor.
Foi até à cozinha, trouxe o garrafão de cinco litros, com uns quatro ainda dentro. A TV repetia um filme das antigas. Deixei como som de fundo. Aqueles tiros tornariam a noite mais viva.
– Então Raul – completando meu copo – quero entender uma coisa, você tinha uma moto 150cc e um chevette 86, certo?
– Sim.
– Aí vendeu o chevette por quanto?
– Quatro mil
– Certo. Me explica então, porque comprou uma moto de R$ 14000,00? Se já tinha uma pra andar.
– Também não sei. Achei a moto minha cara. Apareceu lá na loja um cara que devia até os calos das mãos, e como não tinha como pagar, deixou essa moto pro meu chefe, pra quitar a dívida.
– Ainda vende móveis?
– Agora projeto móveis também.
– Então comprou a moto do teu chefe, que ganhou ela de um fodido que prefere andar de pé ao invés de guardar as meias numa sacola?
– Isso. Dei os quatro mil que ganhei do chevette de entrada, e o resto parcelei. To com as duas aí. E você cara, ainda se fodendo pra sobreviver?
– Ainda não acabei meu caro amigo. Por que duas motos? Eu quero muito entender isso.
– Cara, já te questionei por ter comido duas primas minhas? Uma já não estava bom? Você está chato. Me deixa com elas, em paz. Toda vez que aparece aqui tá pior. Mais pirado. Se falar das minhas motos de novo vou te socar a cara..
Rimos e mais ácido dos copos pros corpos. 21:00 horas, o filme tinha terminado, começava algum programa idiota com entrevistas e plateia, música ao vivo. Desliguei a TV.
– Acho que a gente poderia jogar um baralho, valendo uma moto dessas tuas – eu disse.
– Escutou o portão? Acho que é a vizinha cavala, quer conferir?
– Onde?
– Ali fora, vai passar bem aqui em frente, se for ela.
Com passos gordos foi até a porta e abriu, bem quando ela passava em frente.
– Que susto vizinho! – ela gritou.
– Desculpe vizinha. To procurando meu gato. Viu ele por aí?
– Não vi não.
Sequei o copo. Se foi ela, e qualquer reação do Raul.
– Bóris!!… Bóris!! HUIT HUIT HUIT (assobios)
Fechou a porta.
– Viu só que gata? – sentou-se no sofá.
– Como eu poderia ver¿ Tu ficou na minha frente e a voz dela sumiu em seis palavras.
– Hoje ela tá demais! Que peitinho, que cinturinha, que reboladinho.
– Maravilha. E teu gato, vem cagar em casa hoje?
– Não sei. Ele é marronzinho, tem olhos azuis, vive por aí na rua. Um dia ouvi aquele velhinho do cão gritar “Pega ele Bobby, pega ele”. Foi a única vez que Bóris dormiu em casa.
– Então Raul, o que você acha da gente jogar baralho apostando uma das suas motos? – sugeri de novo.
– E o que você tem pra apostar?
– Não tenho nada – eu não tinha mesmo.
– Porra, então vai se ferrar!
Alguém bateu na porta.
– Vai abrir – ele pediu. Vou dormir. Só quero dormir um pouco. Só isso. Dormir. Por favor, eu só preciso dormir – secou seu copo.
Algo deu errado. Acho que ele esperava mais dele com a vizinha. Ou seu gato era o problema. Eu não estava causando problemas ainda.
TOC TOC TOC
– Já to indo! – gritei. Hei Raul, pode ser as tuas putas, anime-se. Eu não posso com elas sozinho. Aguenta aí.
Abri a porta, um homem mais alto que eu parado em frente. Tinha uma cabeça grande e um bigode matemático. Porte de padeiro, era um legítimo padeiro, talvez um encanador ou um presidente, sei lá, era estranho, um estereótipo nada convencional. Carregava um copo de dez polegadas na mão direita.
– Diga – falei.
Me estendeu o copo.
– Quer um gole? Perguntou.
– Quero. O que é?
– Conhaque com coca.
– Maravilha.
Estava doce, muita coca. Não reclamei.
– Escuta – prosseguiu – Tem um cigarro aí?
– Tenho sim. Entra aí.
– Quem é Ramon? – gritou a marmota esticada no sofá.
– Acho que é teu vizinho. Trouxe conhaque.
Vi aquele pescoção do Raul querendo ver quem era entrando pela porta.
– AA! É ele mesmo. Tudo certo vizinho?
– Estou bem Raul, e você?
– Com sono Duarte, muito sono.
– Então vou pra casa Raul. Só queria um cigarro.
– Que nada Duarte. Fica aí, vou tomar um banho. De qualquer forma esse filho da puta não iria me deixar dormir – apontou pra mim.
Sentei numa ponta do sofá, Duarte na outra. A luz deu uma caída de leve quando o chuveiro ligou, mas já estabilizou.
– Então você é o que do Raul? Parente? – perguntou.
– Basicamente eu venho aqui quando acaba a comida e a bebida. Parente é uma boa definição. Me diz uma coisa Duarte, tenho a impressão de que você já foi padeiro. Isso tem fundamento?
– Padeiro nunca fui. Sou eletricista aposentado há cinco anos. Me aposentei e um mês depois vim morar aqui. Minha mulher me expulsou de casa. Dizia que a pior coisa que eu fiz na vida foi parar de trabalhar. Acho que estava certa. Um mês depois já tinha colocado outro pra morar lá. Parece que é advogado, ou médico, tem cara, nem quis saber.
Virou meio copo, vazou um pouco pelo lado da boca. Lambia-se.
– Bom Duarte, nessas horas tem que ver o lado cômico da história. Depois de se aposentar acabou tomando o maior choque da vida.
Não parava mais de rir. Dava um gole, e gargalhava. Risadas frustradas, doloridas, insanas até.
– HAHAHAHAHA….Essa foi boa…GlubGlubGlub…hahahaha….muito boa….
Eu só pensava: Pobre bezerro desmamado.
– Muito boa mesmo hahaha…GlubGlub. Fazia tempo que não ria tanto. Qual teu nome mesmo?
– Ramon…GlubGlubGlub.
– Ramon – enxugando as lágrimas – na verdade, depois que me separei, tenho medo de ser gay.
– Ah, fica tranquilo. Um gay tem coragem suficiente pra ser gay, se tem medo, não é.
– É que depois que me separei, todas as mulheres que dormi foi algo sem graça. Três mulheres, uma que achei num clube de idosos ali depois da ponte, sabe? Uma puta e outra que fui fazer a fiação na casa dela.
– Presta atenção Duarte, não é porque as maçãs estavam podres que vai partir pras bananas, entende?
– Estou com medo. Com medo porque não quero mais transar. Eu pensava em transar enquanto cagava, e agora eu tenho medo.
– Teu medo não é de ser gay, e sim de se tornar assexuado. Mas isso deve-se…
– Me tornar o quê?
– Assexuado
– O que é isso?
– Digamos: É alguém que prefere espremer uma espinha a transar. Não sentem vontade. Mas isso é normal, todo homem em um momento da vida tem esse medo, de perder o sentido, as razões. Porque está incumbido na sociedade que foder é a melhor coisa do mundo, e com certeza é, na maioria das vezes. Eu já passei noites em claro pensando nisso. Mas aí que vem uma oportunidade. Você não precisa querer trepar todo dia, toda hora! Essa pressão só aumenta, todos trepando menos você, mas isso não passa de mentiras exageradas, isso dá graça ao mundo, ao inferno, ou seja lá onde estamos. Quando eu deixei de correr atrás de rabo todo dia, passei a escrever quatro, até cinco contos por semana. Tá me entendendo?
– Você é escritor?
– Ainda não. Hoje eu vim aqui e o capado do Raul, no que cheguei, me prometeu duas jovens trepadeiras. É essa esperança que acaba com os homens. Se todos nós perdêssemos essa esperança, algo me diz que seríamos mais evoluídos, mas nós perdemos o foco, a maioria perde. A buceta é a ferramenta do diabo. Vamos brindar! À ferramenta do diabo!!
TIM TIM
O Raul saiu do banho, vermelho, pegando fogo.
– Duas jovens trepadeiras aqui hoje?
– Não Duarte – respondi. Por que não Raul?
– Elas vão pra uma festa com outros caras.
Enchi o copo.
Ficamos bebendo no sofá, até terminar os quatro litros do garrafão. Lá pela meia-noite, ouvimos:
– ME FODE O TRASEIRO!! NO TRASEIRO!
– Que barulho é esse? – disse o Duarte.
– Minha vizinha – respondeu o Raul.
Levantei com um pouco de dificuldade.
– Vou lá ver se essa piranha ta fodendo mesmo – falei.
– Isso, isso. A ferramenta do diabo! Disse o Duarte erguendo o copo vazio.
– Vai lá Ramon, vou dormir, preciso dormir, por favor, apaguem as luzes.
– Tá bem Raul – respondi.
Saí pela porta, dei cinco passos sofridos pra esquerda.
TUM TUM TUM. Aguardei. TUM TUM TUM. Abaixei a maçaneta e entrei. Ela estava sentada no sofá, na posição budista, com um pijama azul claro e uma bacia de pipoca, sozinha, vendo TV.
– Quer pipoca?
Ergueu a bacia.
– É doce ou salgada? Perguntei
– Salguei demais.
Sentei-me, peguei um punhado e o diabo outro. Enquanto mastigava, minha língua criou uma liga densa, aquela gosma ressuscitou duas aftas no ato. Comecei lacrimejar, o mar morto nunca foi salgado perto daquela pipoca. Pela parede fina, dava pra escutar:
– A FERRAMENTA DO DIABO! A FERRAMENTA DO DIABO! A FERRAMENTA DO DIABO!
Olhei para ela e perguntei:
– Será que posso dormir aqui hoje?

 

Assassino em série

Pessoas andam sendo atacadas em uma pequena mata que se estende junto ao mangue perto do shopping. Não por coincidência, os macabros ataques acontecem no mesmo caminho que me leva ao trabalho. Faço isso há algum tempo já, todas as manhãs. No começo tive algumas dificuldades, não sabia ao certo as trilhas por entre as árvores, nem se pessoas andavam por ali, faziam piqueniques, estudavam plantas, fodiam, absolutamente nenhum dado físico eu tinha daquele lugar, mas resolvi confiar na imaginação, e por enquanto nada deu errado.  Meus crimes não saem nos jornais nem na televisão, pois sou um assassino em série, estuprador e torturador que usa o cérebro, somente ele. Nada de armas além de um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Não guardo remorsos nem troféus das vítimas. Elas fazem parte da câimbra sadomasoquista e sustentável que o mundo adquiriu. Todos os crimes acontecem por volta das 7:45 da manhã, pois devo estar no emprego às 8:00. Ninguém suspeita dessas minhas caretices matutinas. Chego no horário, sem sangue nas mãos, apenas outro cigarro aceso e uma leveza cruel recém mastigada. Tomo um café preto, às vezes forte, muitas vezes doce demais. Nem lembro o que fiz há poucos minutos atrás. Rio o máximo que posso, pois além de matar, é a única coisa que me coloca perto do equilíbrio pelo resto do dia. À noite bebo e escrevo poemas pelas memórias vivas.
Meu primeiro ataque foi desastroso. Eu caminhava às 7:45 pela calçada que delimita a entrada no matagal, com um cigarro aceso na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Uma mulher vinha pela ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra. Pedalava forte, dava impressão que sua velocidade era a mesma que a de uma kombi branca que trafegava no mesmo sentido. Talvez minha velocidade também fosse a mesma. Ela – a ciclista – parou há uns dez metros de mim, e vasculhava sua bolsa em busca de algo. Quando eu estava há uns três metros dela, percebi que era água o que ela procurava e já bebia. Aproximei-me com tranquilidade e falei:
– Quer vender a bicicleta?
– Quero – ela respondeu. Bebericou mais água. Eu suava, ela também, a kombi era rastro de fumaça.
– Quanto você quer pela bicicleta?
– R$ 100,00.
– Posso beber um pouco da água?
– Posso dar um pega nesse cigarro?
Trocamos gentilezas. Acabei com a água, ela acabou com o cigarro. Mas eu tinha mais cigarros e ela não tinha mais água. Seria fácil matá-la. Continuei o papo:
– Me diz uma coisa. Essa bicicleta é só para andar na cidade ou ela aguenta trilhas?
– Quanto você pesa?
– 83 quilos – respondi.
– Então aguenta. Ela suporta até 85 quilos em trilhas e 102 quilos na cidade.
– E se eu engordar três quilos? Perguntei.
– Anda na cidade.
– E se eu engordar vinte quilos? Perguntei.
– Aí você vende a bicicleta.
– Posso testar ela nas trilhas desse mato?
– Pode. Vou com você. Tem mais cigarros?
– Tenho.
Ofereci o maço. Ela saltou do banco e fui empurrando a bicicleta uns metros até achar uma abertura na mata, que de fato era uma trilha, na minha imaginação. No caminho ela pediu o isqueiro, me devolveu o maço, acendeu um cigarro e depois me devolveu o isqueiro.
Antes de sentar no banco lhe fiz mais perguntas:
– Como você sabe a carga máxima da bicicleta?
– Acho que li no manual.
– Então caso eu queira fazer uma trilha com alguém sentado no quadro, terei que emagrecer no mínimo trinta quilos!
– A não ser que amarre um bebê no quadro. Aí nem precisa perder tanta massa.
– Quanto você pesa?
– 50 quilos.
– Quanto é 50 + 83?
– Não sei.
– Vamos fazer o seguinte – continuei – se ela aguentar eu e você nessa trilha, lhe pago R$ 150,00. Se quebrar no caminho, compro por  R$ 100,00 independente dos estragos.
– Você não estaria ganhando nada com essa proposta – ela disse. R$ 100,00 é o valor que quero, assim como está.
– Posso ganhar a certeza que a carga da bicicleta em trilhas é 50 + 83 ou mais.
– Fechado então.
Subi no banco, ela no quadro, comecei pedalar. Seria fácil matá-la. Freei após uns três minutos na trilha.
– Preciso mijar – falei.
– Eu também. Muita água bebemos.
Me posicionei atrás de uma árvore e fingia que mijava, por outro lado, pude ouvir sua urina tocando as folhas no chão. Fingi mais, até balancei o pau seco. Aproximei-me enquanto ela ajeitava a calcinha. Agarrei-a por trás, com uma mão na boca e um braço em volta do pescoço. Minha inexperiência imaginativa fez com que ela conseguisse desvencilhar a boca e gritar uma reza doentia.
– ESTUPRE-ME! POR FAVOR, ESTUPRE-ME! IMPLORO! SÓ NÃO ME MATE!
Que coisa mais óbvia essas palavras, pensei, perdi o ânimo. Esvaziei os pneus da bicicleta, desconectei as espias dos freios, troquei as marchas. Estuprei sua bicicleta e cheguei ao trabalho às 8:00, sem sangue e nem graxa nas mãos. Tomei um café, doce demais naquele dia.
Já na outra manhã tive êxito em matar. 7:45, um cigarro na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Vindo em minha direção na calçada que delimita a entrada no matagal, há uns vinte metros, um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos. Uma moça de bicicleta estava parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, procurando algo em sua bolsa. Ouvi um barulho alto de motor passando, era uma kombi branca. Vi que a moça retirou uma água da bolsa e dava goles desesperados. Parei perto dela e perguntei:
– Quer vender a bicicleta?
Ela engoliu o que tinha na boca e disse:
– Não. Tem um cigarro sobrando?
– É o último – respondi.
Ela foi e eu fui. Ao me aproximar do homem de terno fiz um sinal que sugeria tirar os fones e me ouvir:
– Quer vender o terno? Perguntei.
– Quero – ele respondeu.
– Quanto você quer por ele?
– R$ 350,00.
– Me diz uma coisa. Se eu cair com esse terno aqui na calçada ou dentro do mato, vai rasgar?
– Depende. Quanto você pesa?
– 82 quilos. Perdi um quilo essa noite.
– Esse terno aguenta uma queda na calçada sem danificar vestido numa pessoa de até 95 quilos. No mato até 87 quilos não rasga.
– E se eu engordar seis quilos?
– Melhor cair na calçada.
– E se eu engordar quatorze quilos?
– Não caia mais.
– Costumo cair vestindo terno mais no mato. Quero testar antes de comprar. Posso vestir e cair aqui ao lado?
– Claro.
Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata. Ofereci um cigarro.
– Não fumo – ele disse.
Três minutos pela trilha até pararmos. Vesti o terno que usava enquanto ele retirou da mochila outro terno e o vestiu também.
– Quer vender esse terno? Perguntei. Gostei mais desse que está usando agora.
– Esse não vendo.
– Por quê?
– Pois sua capacidade/quilo de não danificar em uma queda na calçada ou no mato é maior.
– Qual exatamente?
– Na calçada 110 quilos. No mato até 97 quilos.
– E como você sabe dessas capacidades/quilos dos ternos?
– Acho que li na garantia.
– E se por acaso um cachorro me morder? Vai rasgar?
– Te morder na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Vai depender do peso do animal.
– E no mato?
– Qual mato?
– Nesse.
– Nesse não vai rasgar.
– Entendi – falei. Mas não entendi. – Agora vou testar o terno.
Dei uns dez passos para trás enquanto ele observava.
– Vou fingir que corro de um cachorro em um daqueles matos, que segundo você, a mordida acabaria com minha roupa. Quando eu chegar perto de você me jogarei no chão simulando um tombo. Se não rasgar lhe pago R$ 400,00. Se rasgar, lhe pago R$ 350,00 independente do estado que ficar.
– Amigo, você não estaria ganhando nada com essa proposta – ele disse. R$ 350,00 é o valor que quero dele, assim como está.
– Mas terei uma boa ideia da velocidade que posso alcançar fugindo de um cachorro, sem riscos.
– Fechado então – ele disse.
Disparei em alta velocidade nos dez passos de distancia dele, e ao invés de simular um tombo, acertei-lhe um soco direto na cara. O desgraçado saiu rolando na trilha, desmaiado, e só parou quando seu corpo mole esbarrou em uma árvore. Senti vontade de mijar e fiz isso na cara dele. Nem reagiu. Balancei o pau e umas gotas ainda caíram sobre seus olhos. Percebi um pequeno rasgo em seu terno, além de um botão danificado. Ainda bem que tinha garantia. Bati sua cabeça na árvore até abrir uma fenda larga na testa. Deixei-o com seus dois ternos e fui trabalhar. Cheguei ás 8:00 em ponto, sem sangue nas mãos. Bebi um bom café.
No terceiro dia eu tinha certeza que era 7:45 da manhã, enquanto carregava um cigarro na mão direita, pensava e ia a passos apressados  com minhas pernas longas ao trabalho. Chamou-me atenção um acidente envolvendo uma kombi branca e uma bicicleta na avenida. Aparentemente ninguém se feriu. A ciclista conferia os estragos da bicicleta parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, justamente onde o motorista avaliava a kombi estacionada. A lei não permite parar ali. Na kombi não aconteceu nada, nem aranhão. Pelo que consegui ver, os pneus da bicicleta estavam vazios, as espias dos freios desconectadas e as marchas todas trocadas. A ciclista abriu sua bolsa, retirou uma garrafa e deu um gole na água, ao que me viu passando.
– Quer comprar? Ela me perguntou rindo, apontando para a bicicleta.
– Hoje não – respondi.
– O cigarro mata – ela disse.
– Assim como as kombis.
Segui em linha reta na calçada que delimita a entrada no matagal. Um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos fez sinais que sugeriam para eu ouvi-lo.
– O que aconteceu ali? Perguntou.
– Nada demais – respondi.
– Sabe de alguém que queira comprar um terno? Tenho um aqui na mochila pra vender.
– Aquele motorista da kombi branca – eu disse.
– Vou falar com ele. Agradeceu a informação e recolocou os fones de ouvido.
Logo atrás do homem vinha uma velhinha sorrindo, segurando um pote cheio de terra com um girassol plantado nele. Não perdi tempo, velhos morrem facilmente. Fui em direção à ela esboçando um sorriso cativante e terno ao mesmo tempo. Queria passar essa combinação. Ela parou e sorriu mais ainda, mas era uma combinação que não consegui decifrar.
– Quer vender o girassol?
– Quero – ela respondeu e mudou a combinação do sorriso. Aquilo não me atrapalhava.
– Quanto a senhora quer por ele?
– R$ 50,00.
– Antes me diga uma coisa. Esse girassol gira mais rápido na calçada ou no mato?
– Conforme o Sol.
– E quando chove?
– Na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Gira mais rápido no mato.
– E quando chove no mato?
– Gira mais rápido na calçada.
– Entendi. Faremos uma aposta. Colocaremos esse girassol aqui na calçada e depois ali no mato. Quem adivinhar em qual dos lugares ele gira mais rápido fica com ele.
– Mas ele já é meu. Eu não ganho nada com essa aposta – a velha relutou.
– Se eu perder, lhe pago os R$ 50,00 e a senhora pode ficar com a planta. Se eu ganhar, lhe pago os R$ 50,00 e fico com ele.
– Mas você não estaria ganhando nada com essa aposta – a velha disse. R$ 50,00 é o valor que quero dele agora. Paga, pega e depois você compara onde gira mais rápido.
– Dou R$ 30,00 se eu vencer a aposta.
– Assim sim – ela consentiu. – Parece justo.
Primeiro deixamos na calçada. Ela cronometrou em seu relógio minúsculo do pulso esquerdo. Eu deveria ter tentando comprar o relógio. O negócio do girassol estava complicando minha imaginação.
Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata, ou uma trilha, tanto faz. Já era quase 8:00, tinha que acabar logo com aquilo, estava atrasado. Havia perdido muito tempo com a kombi, a ciclista e o homem de terno. Acelerei todo o processo e ao dar o primeiro gole no café, exatamente 8:01, a velha jazia morta com o girassol plantado na boca, girando a procura do Sol.
Teria que recomeçar do zero a cada três dias.

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Embora escrever sobre mulheres não me anime tanto como antes, pretendo ser honesto dessa vez, prometo no mínimo uma pseudo-ereção gargalhada, meio mamilo mole trágico e um sorrisinho malicioso em qualquer canto da boca. Detestaria sair como herói após o ponto final, afinal, sou a vítima dessa história, mas tenham em mente o seguinte, ainda não pensei no final, e todo herói prefere sua versão dos fatos, ou de que outra forma existiriam? Pretendo ser honesto, juro, assim como Átila e o Império Romano. A honestidade já foi calculada em um fio de bigode, e como não posso dar-lhes meu próprio, eis o meu simbólico: “;”, um fio e uma espinha, por favor aceitem, é dolorido pra mim, e serão minhas provas diante o julgamento, que como sabemos, já começou.
Meu primeiro salário com carteira assinada foi R$ 410,00 + 20% Insalubridade. Começou no dia 01/12/2004 e terminou em 09/03/2011, portanto entrei com dezoito anos e saí com vinte e quatro. Nesse tempo fui motoboy, mesmo minha carteira sendo assinada como “vendedor”.
Entre os 50 km rodados quase todos os dias, na maioria corridas curtas, o que realmente tornava o trabalho exaustivo, permanecia em cima daquela moto sequestrando as horas, xingando, buzinando, arranjando confusões no trânsito de uma cidade em transe. As filas, o calor, o óleo pingando, a maldita moto vermelha apagando no semáforo me fazendo pedalar seguidamente um adorável pedal, sem contar o baú branco descascado roçando minhas costas, do tamanho de três tartarugas. Em minha cabeça enriquecia burgueses sórdidos, vangloriados na sociedade e desrespeitados pelos próprios cães, que no máximo comiam a própria merda e latiam para as nuvens. É somente agora que começa minha verdade, ou honestidade, como queiram, pegarei meu bigode de volta.
Um puteiro anunciado em um muro branco alto ao lado de uma oficina clandestina, esse foi o destino de um motoboy naquela noite. Antes que esqueça, eu era um motoboy que entregava peças nas oficinas, foi assim que descobri o muro e Ana. Para entrar no local cobravam R$ 10,00 e você ganhava duas cervejas baratas, tendo que pagar R$ 2,00 para cada música no jukebox e R$ 1,00 por uma ficha de sinuca, desde que estivesse acompanhado, as putas eram proibidas de jogar, a não ser que comprasse uma delas pela noite inteira.
Nessa primeira noite fui com R$ 12,00, duas notas de cinco e duas moedas para o jukebox, queria apenas ouvir uma música, beber duas cervejas, tapear qualquer nádega e quem sabe enganar alguém por mais uma música. Cheguei dez e pouco, atravessei o espaço entre os muros, pisei em pura pedra até a entrada do recinto, esbarrei no homem que me pegou pelo braço e me arrastou pra fora do recinto perguntando o que eu queria.
– Quero entrar – falei.
O cara era grande, peito estufado como um quero-quero, mandíbulas desenhadas, contornadas e pintadas pela barba branca. Tinha olhos estufados e negros mirados contra mim, era sua profissão identificar o medo e aproveitadores imaginei, observando de soslaio um traseiro branco e seco recolhendo a bola de sinuca rolando no chão, não distingui o número.
– Tem dinheiro para atravessar essa porta? Perguntou-me enquanto eu desvencilhava meu braço das suas presas.
– Tenho dinheiro para comprar essa porta – respondi encarando-o e rindo assustadoramente assustado.
– Não está a venda riquinho espertalhão. São R$ 50,00 para entrar. Não garanto que saia com as roupas.
Estendi as duas notas de cinco e dei passos apressados até o balcão do bar onde pedi uma das duas cervejas, minha por direito. Olhei para trás e ele acomodava as notas dentro da pochete.
A atendente do bar encarou a geladeira aberta por uns vinte segundos, pensei que fosse assim que as coisas funcionavam por ali e aguardei analisando-a. Ela virou-se mantendo a geladeira aberta, encarou-me por uns cinco segundos e voltou a olhar para dentro da geladeira. Mantive os olhos nela, enquanto as bolas de sinuca estouravam na mesa, nenhum som além desse atrevia-se a trafegar, era como um sonho desastrado.
– Não temos mais cerveja – disse-me a atendente do bar.
Faltava-lhe um dente da frente, de cima, e na frase inteira sua língua permaneceu naquele espaço. Olhei para o homem da pochete e ele riu com todos os dentes a mostra, enquanto esfregava as mãos, como se esperasse por anos para me matar, insaciável. Respirei fundo, cocei a testa e disse para ela:
– Quero beber dez reais. Sei as regras.
– Só temos doses, vinte reais cada.
– Meia dose então.
– Não tem mais dez?
– Não sem uma mulher aqui comigo.
– Meia dose de que?
– Qualquer coisa, algo que dure uma música.
– Qual música vai colocar?
– O que vou beber?
– Pensei em conhaque.
– Faça.
– ANA!! Gritou ela para o além.
Dei uma bicada, fui até o jukebox, fiquei passando álbuns, nada eu queria, pensei que talvez aquele traseiro branco e seco fosse a única coisa que prestasse no lugar, mas já estava ocupada, trapaceando outro idiota velho, que pela minha observação, perdia por duas bolas menores. O maluco da pochete chegou ao meu lado e suspirou colocando uma mão em meu ombro esquerdo: “Estou louco para operar alguém hoje”. Respondi que o hospital ficava a apenas três quilômetros. Ele saiu de perto resmungando para que eu cuidasse das calças. Continuei passando os álbuns inconformado com a qualidade do jukebox. O velho idiota perdeu e disse em voz alta que estava pagando para ganhar e perder, mas odiava perder. Pediu três doses “Uma é para o garoto ali, hipnotizado com a lata de música”. Olhei pra ele e agradeci.
Ana saiu por trás de um pano vermelho onde julgava ser o banheiro. Somente de calcinha foi até o bar e pediu um sabonete.
– Se quer sabonete, é melhor pensar em trabalhar – disse a mulher que serviu-me meia dose.
– Como posso trabalhar fedendo desse jeito?
– Fazem três noites que não te vejo arrancar pelo menos uma dose.
– Está vendo alguém aqui dentro capaz de pagar uma dose?
O velho da sinuca respondeu que pagaria mais uma dose, mas o traseiro branco e seco lhe deu um sacode no chapéu, fazendo-o voltar ao jogo quieto.
– Coloque uma roupa qualquer e pelo amor de Deus ensine o cavalheiro mexer no jukebox, estou endoidando.
O homem da portaria riu esfregando a barba com as duas mãos em movimento uniforme.
– Não colocarei roupa alguma sem tomar um banho antes.
– Por mim, esta roupa está ótima – interferi. O da pochete não gostou do que eu disse, o resto nem ligou.
– Tome esse sabonete Ana, e volte em dez minutos.
Ela passou por mim esfregando o sabonete dentro da embalagem por entre os seios, e novamente sumiu através do pano vermelho. Guardei as duas moedas no bolso. Esperaria o ensinamento de Ana. Sentei em um banquinho no bar, matei minha meia dose e comecei bebericar a outra que ganhei do velho de chapéu. Todo o chão era quadriculado, branco e preto, exceto numa elevação ao lado da mesa de sinuca, onde julguei ser um palco para apresentações. Nessa altura, já tinha entendido que a atendente era a dona de tudo. Tinha seus modos duvidosos de fazer, punir, atender e rir obviamente.
– Não vai colocar uma música? Indagou-me a princesa do velho, que meticulosamente pegara o chapéu para si, sem se dar conta que estava ridícula.
– Vou esperar a Ana voltar, não sei mexer naquilo.
– Eu te ensino rapidinho.
Nessa hora a ponta de um taco cutucou entre suas nádegas, fazendo-a lembrar do chapéu e da venda da noite.
– Sua vez – riu o velho – Mais três doses, uma pro garoto.
Ana transcendeu com um vestido da cor do pano, vermelho ofuscante rastejando em minha direção. Se ela soubesse que eu só tinha mais dois reais, nossa lua de mel teria acabado ali. Ana, um palíndromo excitante e extravagante, assim como “amada dama” e “Ramon no mar”. Deu-me um beijo no rosto, pegou em minha mão e fomos até o jukebox. Carreguei o drinque, Ana perguntou quantas músicas eu queria ouvir, respondi que uma boa, só pra começar e entreguei as duas moedas.
– O sabonete lhe fez muito bem – falei enquanto ela ia ao encontro de sua música favorita.
– Obrigado….Como posso te chamar?
– Como chama elevadores, só com um toque.
Senti uma beliscada na bunda, bem desconfortável.
– Qual seu nome? Não brinque comigo.
– Juan.
Outra beliscada.
– Ai. Don Juan.
Outra beliscada.
– Ai! Ramon Carlos.
Dei-lhe uma beliscada.
– Ui – ela rosnou e finalmente encontrou sua música. – Sabe dançar?
– Prefiro que não.
– Então observe.
Entreguei-lhe o drinque e sentei no bar sem dinheiro. Ana foi até o palco provar que também não sabia dançar. Sem mínima desenvoltura, sem sensualidade alguma nos movimentos, parecia mais um número de comédia onde a platéia fica constrangida. Com passos de garça, e voltas incompletas, foi até o pano vermelho, sumiu nele entrelaçado, pelas formas no lençol, continuava descendo, subindo e fazendo sua dança mágica obscura. Bati palmas, muitas, bem altas, até que todos ali prestassem atenção.
– Logo chegarão alguns homens, é melhor comprá-la logo – disse-me a proprietária.
– Mais três doses! Uma para o garoto que bateu palmas.
Agradeci o velho batendo palmas pra ele também.
Ao acabar a música, Ana veio até mim com o copo vazio, perguntando se eu tinha gostado do desempenho, exigiu sinceridade, olhando em meus olhos, e aquele olhar significava “Não brinque comigo”.
– Terrível – falei.
– O que?
– Péssimo, nunca vi alguém dançar pior, provavelmente não verei.
Ela acabou com meu drinque num gole e beijou-me na boca. Ao final do beijo gritei: “Mais três doses na conta dele – apontei para o velho idiota que eu nem considerava mais idiota – uma pra mim”. Ele largou o taco e bateu palmas.
– Ana, você sabe que é proibido beijar clientes aqui no bar – reclamou a dona servindo as doses.
– Não aguentei Iara – respondeu Ana com uma expressão totalmente sacana.
Mais quatro mulheres saíram pelo pano e se situaram no ambiente. Parecia que só agora as coisas começavam. Todas perfumadas, conversando entre elas. Ana confessou-me rindo que dançava torta por querer, todas as vezes, para qualquer homem, e sempre recebia elogios pela performance, o que tornava impossível suportar suas presenças ao seu lado. Perguntei porque ela não dançava bem todas as vezes então, pois os elogios seriam sinceros, ela respondeu que elogios sinceros podem ser comprados.
Homens começaram engordar a pochete ao entrarem, e eu sem um centavo no bolso, agradeci Ana pela companhia, prometi voltar e liberei-a à labuta.
– Já vai embora Ramon? Fique um pouco mais – lamentou sinceramente.
– Não tenho dinheiro nem pra um sabonete – lamentei sinceramente.
– Eu consigo pra você. Apenas não fique parado, converse com as garotas, não deixe a Iara perceber, nem o Machado.
– Que Machado?
– O porteiro.
– Machado é o nome do porteiro?
– Não, o apelido. Agora vá ao banheiro, fique lá por uns cinco minutos. Quando voltar terei algo pra você.
Concordei, mesmo nada sabendo do plano. Ana saiu rebolando indo ao encontro de um homem grisalho sentado perto do palco. Sentei na tampa do sanitário que me espantou pela limpeza, “Machado” realmente operava pessoas então, pensei. Após uns dois minutos ouvi três batidas na porta.
– Ocupado! Gritei.
– É você garoto das palmas?
– Sim.
– Quantas bundas está limpando aí dentro?
– Só uma.
– Estou explodindo, sabe como é a bexiga de um velho não é?
– Já saio.
– Pago mais uma dose se sair agora.
– Não posso sair com a bunda suja.
– Jesus! Quem liga pra uma bunda suja. Saia logo ou vou morrer.
Abri a porta e ele regozijou enquanto eu olhava-o. Fui até o bar, pedi uma dose na conta do velho. Iara estranhou finalmente e perguntou-me de onde eu conhecia o homem que estava bancando as bebidas, respondi que não era da sua conta. Fiz como Ana mandou e continuei trafegando ao redor da mesa, onde agora jogavam em duplas. Ana tinha sumido, entendi que fazia parte do plano, mas ao acabar meu drinque demoradamente, fui embora. Voltei lá uma semana depois com R$ 50,00, cumprimentei o Machado, que desta vez foi gentil, entreguei-lhe os dez da entrada, sentei no bar e perguntei a Iara sobre Ana.
– Ela saiu daqui cinco dias atrás e não voltou, as meninas falaram que fugiu para se casar com um homem grisalho.
– Olha só quem está aqui! Se não é o garoto das palmas. Três doses! Uma pra ele.
– Eu pago a primeira hoje meu velho.
Vim resgatar meu fio de bigode simbólico, a espinha podem segurar:
,
Quanta gentileza.

O pássaro com uma asa não deixará de tentar voar

Uma lambia-me as bolas, outra lambia o pau, e eu me lambia os beiços. Aproveitando como os morcegos degustam a noite, o relógio pendurado torto na parede, sem pilhas marcava nove horas para sempre, uma sala fechada pra visitas, o berço quente, com três crianças brincando de ser gente grande. Uma guerrilha de corpos, misturando fluídos quentes na madrugada. Meus genitais lambuzados como um tombo de mel. Nossos cus piscavam pra cima e pra baixo. Mel ou merda, tanto faz, as moscas se contentam de qualquer forma, eu também. Meu caralho parecia uma metralhadora na buceta de Edna, enquanto Jéssica lambia seus próprios dedos, com uma cara pra lá de estranha. O rabo de Edna piscava sem parar, parecia que ia trucar a qualquer momento. Mas eu tinha o ás de paus latejante. Mudei de baralho. Lordose na Jéssica, bunda pra cima, meti no rabo, e ela não quis mais jogar, deu um solavanco pra frente, e gritou como uma bezerra desmamada do rabo ardido.
– Seu filho da mãe, quem disse que podia meter ali?
– Truco! Respondi.
– Seis! Disse Edna.
– Eu paro por aqui, vocês que se fodam!
Jéssica olhou para o relógio enquanto vestia as roupas, deixou-nos às nove horas em ponto. Fechou a porta, sentiu o ar da madrugada balançar serenamente suas franjas e respirou fundo. Chorou por dentro, lágrimas e orgasmos pensou. Perguntou-se enquanto descia as escadas, “O que é mais quente: porra, sangue, suor ou lágrimas?”. Não soube responder. Pela calçada ia andando sem notar as fisgadas traseiras. Lembrou-se da última conversa com Walter:
– Por que você não me ama? Ela perguntou.
– É difícil eu amar, qualquer coisa – ele respondeu.
– Mas você pode me amar.
– Por que eu amaria você?
– Por que não?
– Me passa a cerveja.
– Me ame por eu te passar a cerveja então.
– Eu pego.
– Deixa que eu pego.
Levantou com o vestido cravado na bunda, parecia que a bunda comia tecido, comeria qualquer tecido, Walter amava aquela bunda. Ela sabia.
– Você ainda vai me amar! Jéssica disse.
– Já vi mulheres melhores que você peladas e não amei.
Ouviu barulho no arbusto ao lado da calçada, dois olhos vermelhos miraram os seus. “Walter…Walter” ela chamou. O gato saiu correndo. Lágrimas e orgasmos, pensou. Edna foi tomar banho, eu fui fumar. Jéssica tropeçava nos terremotos da sua sexualidade. Sabia que morreria assim, em algum momento da vida, que não lembrava ao certo, tivera adotado a promiscuidade como mãe. Chupava paus e fazia risquinhos em um caderno, separava, uma coluna com os circuncidados e outra coluna com os sem circuncisão. A base de risquinhos terminou com duas canetas. Mas tinha mudado, por alguma razão que não lembrava ao certo. Agora até um toque em seus seios por cima da roupa lhe causava constrangimento, mas mesmo assim se entregava, por mais que odiasse as situações vestia sua fantasia de trepadeira. “Lágrimas e orgasmos” escrevia no mesmo caderno dos risquinhos. Acabou com mais três canetas.
Edna saiu do banheiro enxugando-se com uma toalha vermelha. Alguns pingos ainda reluziam em sua pele, algumas gotas escorregavam e fugiam até o chão.
– O que será que deu com a Jéssica? Perguntou-me.
– Deu o rabo e saiu – eu disse.
– Ela nunca fez isso.
– Truquei e ela escondeu as cartas.
– Eu pedi seis!
– Você aguenta mil trucadas no traseiro.
– Haha.
Jéssica atravessou a rua deserta, um fogo gelado apossava o transe de suas memórias aturdidas ao ponto de enxergá-las verticalmente nas paredes cegas do amor concretado no útero. Sob as luzes de um poste forçou um choro, era muito difícil Jéssica chorar pra fora, mesmo assim uma única lágrima ficou presa no olho direito, ela piscou forte, mas permaneceu grudada, desistiu, aquela lágrima não servia mais, tinha que ser fresca. Já sem luz nenhuma e sem sombra seguiu tentando chorar em linha reta. Lembrou-se de seu choro mais colossal, queria repetir. Isso foi quando Joaquim lhe deixou por esse motivo:
– Não te quero mais – Joaquim disse.
– Por que?
– Porque sua vagina é estranha.
Joaquim foi embora, deixando pra trás uma poça de traumas nos lençóis. Jéssica mergulhou e afogou-se. Logo que ele saiu escreveu em seu caderno: “Minha vagina é estranha”. Na calçada pisou em uma merda de cachorro, “Joaquim…Joaquim” ela disse, a merda fedeu. Sentiu que uma lágrima fresca formava-se em algum lugar do corpo, parou e preparou-se. Dois faróis aproximavam-se pela rua deserta.
Edna foi dormir. Continuei fumando.
Os dois faróis passaram enquanto Jéssica retirava da bolsa seu caderno e uma caneta. Anotou na última página: “Lágrima vinte graus”. Viu um gramado onde foi limpar a sapatilha fedorenta. Pensou “Qual a temperatura da merda?”. Buscou seu caderno e escreveu logo abaixo da última anotação: “Merda não interessa”. Decidiu sentar no gramado um pouco mais a frente de onde havia limpado a sapatilha, tinha seus motivos.
Edna gritou do quarto:
– Não consigo dormir. Que horas são?
– Nove horas – gritei.
– Está cedo. Quer jogar baralho?
– Quero.
– Qual jogo?
– Buraco.
– Qual deles?
– O mais profundo.
– Você tá blefando. Não tem cartas pra mais uma rodada.
– Prepara a mesa enquanto embaralho.
– Vai demorar?
– Não.
– Quando vier me traga um copo d’água.
Um transeunte percebeu aquela mulher sentada no gramado. Foi chegando perto de mansinho, com receio, já era tarde, o que uma mulher poderia estar fazendo sentada em um gramado naquela altura escrevendo? Nem notou que ele se aproximava e guardou o caderno com a caneta na bolsa.
– Está tudo bem?
Jéssica levou um susto, seu coração disparou mandando mais sangue pra fora de seu corpo através do corte que ela mesma havia feito.
– O que aconteceu?
– Não foi nada – Jéssica disse acalmando-se. Fiz o corte propositalmente.
– Precisa de ajuda?
– Na verdade ainda preciso saber qual a temperatura da porra e do suor.
– O que?
– Você poderia gozar na minha mão?
– Sou impotente.
– Que pena. Qual seu nome?
– Walter Joaquim.
– Imaginei.
– Posso te chupar.
– Cai fora.
O transeunte seguiu caminho e Jéssica novamente puxou seu caderno. Folheou até onde acabavam-se os “Lágrimas e orgasmos” e escreveu “Walter Joaquim não tem porra pra mim. Walter e Joaquim”. Arrancou uma folha em branco para limpar o sangue. Levantou, não tinha pra onde ir a não ser voltar pra casa. Correu pra suar até em frente a porta. Retirou o caderno e a caneta. Abaixo de “Sangue trinta graus” escreveu “Suor vinte e cinco graus”. Entrou em casa.
– Acho que a Jéssica voltou – Edna disse.
– Continua chupando – eu disse.
– Não goza ainda seu filho da puta – disse Jéssica entrando no quarto em posse do caderno.
– Tá difícil – respondi. Vai desenhar minha piroca? Perguntei.
– Estou com a boca dormente já – Edna reclamou.
– Deixa pra mim – completou Jéssica.
Maravilhosa. Aquilo que era boquete. Gozei. Ela pegou o caderno, fiquei intrigado.
– O que é isso? Perguntei.
– Fica quieto.
“Porra dezessete graus”. Voltou muitas páginas e fez um risquinho na coluna circuncidado.
– Lágrimas e orgasmos?! Poderia escrever um livro com esse nome – falei.
– Já deve existir.
– E “Delírios com lágrimas e orgasmos”?
– Não sei cara.

Fúria em pedaços

Valter abriu a porta bruscamente, com um revólver em punho, e viu Salete sentada em um canto da cama, só de calcinha e sutiã, fumando um cigarro, com as pernas cruzadas.
– Hoje eu pego ele, sua puta! Esbravejou Valter entrando no quarto.
– Do que você tá falando, seu animal?
– Fica quieta!
Ele deu uma olhada por todo quarto, e foi se aproximando da cama calmamente. Procurou alguma marca marrom, vermelha ou gosmenta nos lençóis brancos amassados, deu uma cheirada, mas o odor era tranquilamente agradável, vestígios latentes. Ela continuava tragando, com a paciência dos lagartos no inverno.
– Não foi na cama né sua piranha! Onde vocês treparam?
– Vai te foder!
Valter analisava o ambiente, mas não encontrava nada suspeito. O quarto era enorme, talvez eles tivessem fodido em pé, sem encostar em nada, resvalou os olhos pro chão, como quem procura moedas, mas nada, nem marcas, nem pegadas, nem um mínimo fluído, somente uma formiga atordoada e medrosa.
– Você é uma maldita puta com poderes de perícia forense!
– Seu canalha desprezível!
Sobre a penteadeira, algo lhe chamou atenção. Um batom rosa pálido, a mesma cor de um cu de gato, caído, somente ele, ao redor de outros tantos perfumes e cremes. Aproximou-se e o filme todo fixou em sua cabeça pesada e um tanto alta. Pensava: “Foi aqui, no meu móvel cor marfim, ela se firmou com as mãos, ele veio por trás e enterrou nela. As tetas balançaram, a penteadeira balançou, o batom e o quarto balançaram, as nuvens espetadas por mim. Filhos da puta!”
–  FOI AQUI!! Gritou ele.
– Foi aí o que? Seu maluco.
– Não sou maluco! Sou chifrudo!
– Sim. Há dez anos você é chifrudo, né? Há dez anos você entra nesse quarto, com essa mesma arma, e nunca acha nada, não é?
– Você zomba de mim! Cretina!
– Por que você não vem aqui e cheira minha buceta então?
– E desde quando buceta tem outro cheiro? Sua fodida!!
– Eu te amo Valter! Há dez anos eu aguento essa tua maluquice porque te amo! Senta aqui do meu lado.
Ele se senta, e desce as molas daquela confortável cama de casal.
– Você me ama Salete?
– É claro seu bobo.
– Eu também te amo Salete, veja, nem carregada está essa arma.
Nesse instante as portas de um armário se abrem, se arregaçam, e um homem negro oportunista pula de dentro com as roupas nas mãos, dando inicio a um pique velocista em direção à porta do quarto, para, em sua cabeça, alcançar a porta da cozinha, pular um muro de dois metros, e correr nu por uns trinta minutos até sua casa, e nunca mais arriscaria comer ninguém, quem sabe até viraria padre, ajudaria os necessitados com todo seu dinheiro guardado, largaria sua profissão entediante, seria uma boa alma, ligaria pra mãe, iria até o tumulo de seu pai, deixaria rosas e sorrisos arrependidos. Os órfãos! Claro! Se tudo desse certo, a partir daquele dia, um novo santo seria canonizado por entre as terras marginais.
POW POW. Dois tiros nas costas. Planos encerrados.
HAHAHAHAHAHAHAHA gargalhavam os dois na cama.
– Eu falei que ele ia cair nessa!!!
– Porra Valter! Tu é o melhor ator do mundo!
Riam tanto que tiveram que deitar na cama e secar as lágrimas com os lençóis lívidos resplandecentes.
– Viu a carinha dele Salete?
– Coitadinho. Depois de trepar por meia hora, ainda tinha fôlego pra correr uma maratona.
HAHAHAHAHA
– Valter, nossas dramatizações estão ficando cada vez melhores!
– É tão engraçado ver um pinguinho de esperança quando se sabe que não tem.
– Eu gosto de trepar, você de matar se divertindo. Hoje pensei que não viria mais! A verdade é que ele era muito bom de pica. Só por hoje queria que você demorasse mais uma meia hora. Por Deus, quase desisti de matá-lo.
– Sempre matarei os que comem minha irmãzinha.
– Você me comeu.
– Mas não me diverti. A diversão é a porra dos loucos.
Um quarto perfumado e adocicado pelas tramas sexuais e viscerais, cativante entre ambos, acostumados àquele mar azedo e fabuloso de mantras sórdidos. O sangue quente deslizava do corpo frio e duro como um cofre, derramando mais uma lata de vermelho tinto. Simples assim para Salete, uma ruiva envenenada, traumatizada com um mundo tão paralelo ao seu. Desde sempre fora aniquilada, e agora usava de todo seu corpo robusto para satisfazer seus instintos ferinos e mordazes. Fazia uma bela dupla com seu irmão Valter, um ladrão e assassino de primeira, extremamente eficaz, só sabia fazer isso, e no mais, apenas se orgulhava por soltar peidos bonitos, elegantes, sonetos de lua cheia.
Levantaram-se da cama.
– Quem era esse maninha?
– Um dos grandes do banco.
– Opa. Deve estar recheado.
– Tomara.
Valter deu uns passos para tentar chegar à carteira do defunto sem se sujar, pisando aos poucos. Salete olhava, brilho nos olhos, abertos como um sinal verde. A formiga transitava freneticamente, já tinha visto uns cinco mortos por ali naquela semana, com glicoses altas e baixas, sentia vontade de nadar e nadar, morrer afogada num oceano doce e diabético.
– Que sujeira dos infernos, acho que acertou o coração desse cara.
– Existe algum livro afirmando que os negros tem mais sangue que os outros?
– Não, só pau.
– Ainda bem que morreu de costas. Achei a carteira!
Foram os dois de volta pra cama, sentaram e abriram o zíper do couro, como quem abre as pernas de uma virgem.
– Estamos ricos Salete! Tem mais de mil reais aqui!
– O filho da puta me mentiu o nome! Olha só, me disse que era Paulo Henrique, e se chama Eusébio. O desgraçado acabou com minha fantasia!
– Relaxa mana. Olha só quanto dinheiro!
– Pro inferno.
Salete tornou a pegar a arma e disparou mais quatro tiros no corpo parado. Um em cada nádega, e os outros na cabeça. A formiga saiu correndo. “Que se foda todo o açúcar do mundo”.
– Sua psicótica de araque.
– Vamos cortar ele em pedaços logo. Não gosto mais dele.
– Mil e trezentos reais! Aleluia! Aquele frentista de ontem tinha só cinquenta reais.
– Pelo menos o frentista não mentiu pra mim.
Ela largou a arma e espichou suas lindas pernas lisas e congruentes na cama, sentiu-se traída por aquele negro bom de piça. Toda a cena que fez, a insinuação de uma fêmea num cio ávido, o rebolado astucioso, o perfume nas tetas, tudo um erro, ninguém podia mentir pra ela. Não assim, Paulo Henrique por Eusébio era trágico demais pra sua cabeça.
Valter separava as notas com grunhidos, via, doravante, o assassinato como uma profissão e lazer.
– Escuta esse Salete!
PRRRRRRRRRrrrrrr…Um peido afinado e estável. Melodia capaz de ser inserida em uma sinfonia de Mozart ou atravessar Óperas inteiras e arrancar aplausos.
– Bonitinho esse Valter.
– Sou um artista de intestino. Devo isso às pontes de safena que carrego no bucho.
– Eu sei, eu sei. Vamos cortar logo esse negro!
Todo esquartejamento era feito no banheiro, com um serrote roubado do jardineiro, a primeira vítima. Rendeu somente dez reais e o cara tinha os ossos duros como um pistão de trator. Esse jardineiro foi estudado pelos dois. O viam passar, dia sim, dia não, com sua bolsa de ferramentas, sempre olhando pra baixo ou para as placas de transito. Escolheram uma quarta-feira, um tempo nublado e mal cheiroso. Salete vestia um vestido justíssimo, saiu pela porta e chamou:
– Hei jardineiro!
O homem meteu os olhos nela, já pensou na sua ferramenta, na sua mulher feia e gorda, nos seus filhos que ele abandonaria no primeiro furacão, em toda sua vida cortando árvores e jogando esterco em flores.
– Diga moça.
– To precisando podar umas árvores aqui atrás da minha casa. A gente pode marcar um horário?
– Deu sorte senhorita, posso fazer isso agora!
– Ai que bom! Pode entrar, o portão está aberto.
Ao entrar pela porta da cozinha, já viu Salete nuazinha, com uma rosa nas mãos. E como a cabeça de um homem para de funcionar num momento desses, ele achou perfeitamente normal aquela situação, afinal, ele era um jardineiro forte, desejado por no mínimo dez mulheres, que tinham timidez demais para se entregarem à ele, mas um dia, uma iria se render ao seu cheiro de adubo nas mãos, e se jogar de cu e tudo sobre ele.
Salete dirigiu o homem até o quarto e fodeu por uns oito minutos, foi o máximo que conseguiu dele. Valter também não esperava tamanha fragilidade do homem. Ele iria chegar na casa depois de uns vinte minutos, o que segundo Salete, saciaria suas vontades.
– Vamos falar de negócios agora meu amor? Vamos lá ver as árvores?
– Eu quero mais sexo! Tu acha que da um jeito nesse galho caído? Mister jardineiro.
– Vamos lá fora, eu vejo as árvores, aí estou pronto pra próxima.
– Ok.
Concordaram.
Atravessaram outra porta que dava de frente para um jardim falido. Apenas uma árvore castigada pelas estações e pouca coisa colorida.
– Essa é a árvore?
– É. Por que?
– Nada. Podo ela agora por vinte reais.
– Pode começar.
VRUM VRUMVRUM o som do serrote. Salete já pensava que esse negócio não daria muito certo. “Um homem que fode desse jeito merece ter os bagos serrados, porque não servem nem pra adubar uma cueca”.
Valter entrou pela porta da frente controladamente, sem barulho, vestindo uma fantasia de árvore, com a arma em punho sempre. Dirigiu-se até o quarto, mas ao entrar, não encontrou ninguém. Pensou no pior “A piranha gostou tanto, que fugiu”. Deu uma caminhada pela casa, e viu pelo vidro da janela o VRUM VRUM no jardim. Regozijou, ainda teria tempo. Escondeu-se e esperou ambos entrarem novamente no quarto. Depois de ouvir alguns gemidos prazerosos, a árvore armada andou até lá.
– Será que alguém pode me podar? Falou gargalhando. Sua ideia tinha sido incrível.
– O que é isso? O que está acontecendo?
– Qual é jardineiro?! Tenho uma raiz pra te enfiar no cu.
Salete ria. Era uma ideia incrível.
Um tiro na cabeça.
O negro já estava sem braços e pernas. VRUM VRUMVRUM
– O que você acha de um taxista amanhã?

Passado envelhecido ( V )

Fazia uma semana que não a via, tinha sido essa minha decisão, nunca mais vê-la, tornaria Dóris um hematoma, que desaparece aos poucos, doendo cada vez menos, voltaria a escrever, só isso. Mas naquela tarde de domingo, enquanto tentava rabiscar algumas coisas no caderno, o telefone tocou, só podia ser ela:
– Alô – atendi.
– Por que não veio mais aqui em casa? E por que diabos não me ligou mais?
– Não sei.
– Não sabe? Você está sendo igualzinho meu ex-namorado que sumiu. Aliás, está sendo pior que ele, porque mora aqui, na mesma cidade, enquanto ele voou pra Portugal pelo menos.
– Olha Dóris, não sei nada do seu ex-namorado.
– Será que pode tirar essa bunda do sofá e me encontrar na gruta?
– Não quero te ver mais.
– Por que?
– Não sei.
– Preciso te dar algo. Vai lá as 18:00.
– Me dar o que?
– Vai lá.
– Ok. As 18:00 to lá.
Tirei a bunda do sofá, um grande sofá-cama, um companheiro, era nele que eu dormia, bebia, comia, escrevia. A quitinete tinha dois andares, embaixo ficava o dito sofá, a TV, um forno, uma geladeira, uma pia e o banheiro. Em cima ficava uma cama de casal, um guarda-roupas e o Eduard, que nesse dia estava com uma mulher lá, discutindo alguma coisa.
– Hei! Gritei – Tô saindo.
– Vai aonde meu querido?
– Me encontrar com Dóris.
– Precisa de ajuda?
Desci um morro íngreme de calçamento, freando os pés. O céu me olhava e ria, pela segunda vez eu repetia o caminho por Dóris, mas seria a última vez, independente das suas pernas sacanas sempre pra fora cortejando minha alma fraca. Parei no posto de gasolina e comprei seis cervejas. Olhei pro relógio da velha que me atendeu, faltavam cinco minutos pras seis.
– Me vê um maço de cigarros também – falei.
– Qual deles?
– Qualquer um.
Ela ficou pensativa, olhando pra bancada logo acima de nossas cabeças, com a mão no queixo, correndo os olhos, escolhendo o cigarro que me mataria mais rápido. Enfim retirou um e me mostrou:
– Pode ser esse?!
– Esse não – respondi.
– Então escolha um meu jovem, não sei nada dos teus vícios.
– Pode ser aquele Malboro ali – apontei com o dedo.
– Quase que escolhi esse. Errei por pouco.
– Acredito. Escolhas e mortes cada um tem as suas. Quanto deu?
– R$ 18,75
– Que horas são?
– 18:00 horas.
– Em ponto?
Ela olhou pro seu relógio, arregalou os olhos.
– Acho que falta um ou dois minutos.
– Certo.
Estendi uma nota de vinte reais, aguardei o troco e saí do posto, fazendo uma retrospectiva dos meus cinco meses com Dóris, e se resumia à discussões, injustiças, abstrações e basicamente nutrido de sexo, bebida e fragmentos gentis, um treco estranho, lindo por vezes, mas que devia chegar ao fim, antes que eu ou ela morresse de fome, ou sufocados, um pelo outro, matutando nós mesmos, os esquisitos da praça de alimentação, que não sabem o que comer, mas sabem o que cagar. Conheci-a por acaso, tinha ido até aquela festa pra encontrar outra mulher, mais feia, mas não encontrei. Dóris tinha um sorriso fácil, provocante, seus cabelos loiros estavam presos numa espécie de laço artesanal. Seus olhos verdes se sobressaiam diante de qualquer outro, eram magníficos, colossais. Usava uma blusinha azul simples, com uma calça jeans grande pras suas medidas e um tênis pobre. Me encantou pelos movimentos sutis, sabem, aquele charme que poderia hipnotizar um rato cego.
Caminhei mais um pouco, vi policiais jogando futebol, gritando como bandidos espertos, vi velhos bêbados jogando dominó, pigarreando sonhos velhos, reduzidos a um pó alegre, contagiando-se com pedrinhas numeradas, senti um pouco de inveja, vi também casais abraçados, consumindo o domingo em membros, em calor humano, na felicidade da carne compartilhada pra todo mundo ver. Eu não era feliz, nem queria ser, não daquela forma, sei lá o que queria, mas não era aquilo, e ainda não é.
Ao chegar na gruta, passei pela entrada e caminhei uns vinte metros até me sentar num banquinho de concreto. Ela iria chegar triunfante pensei, com seus cabelos soltos, espalhando reflexos amarelos, com um rebolado garboso, com toda nossa intimidade caindo dos bolsos, com a magia que toda fêmea despeja na sombra. Abri uma cerveja, o sol estava indo embora junto com ela, e junto com Dóris. Era o ponto final, e quando seu corpo minucioso atravessou o portão, senti uma pontada de tristeza, mas eu não queria fraquejar, ela tinha algo pra me dar. Caminhava em minha direção, parecia que nunca chegaria, deslizava no chão, no infinito de nossa distância. Acendi um cigarro e traguei cinquenta vezes. Suas pernas estavam cobertas com a mesma calça do dia que nos conhecemos. Uma blusinha preta segurava os peitos. Sentou-se ao meu lado, não falou nada. Cruzou as pernas, tirou seu cigarro da bolsa, acendeu, e fumava como se eu não estivesse ali. Olhou-me um pouco nos olhos, e voltou a fumar. Eu não queria estar ali. O circo é mais atraente por fora.
– Então é assim? Finalmente falou após uma baforada de fumaça.
– É assim o que? Perguntei
– Assim que acaba?
– O que você tem pra me dar?
Ergueu o tom de voz.
– Eu não entendo como você pode ser tão volátil! Há quinze dias disse que me amava, e agora some por uma semana e não quer mais me ver?
– É simples. Meu amor é volátil e a bebida já não dá conta da nossa esquisitice.
– Do que você está falando?
– Me dá logo o que tem aí que vou embora.
– Me dá uma cerveja!
Alcancei. Novamente nosso silêncio. Os carros passando, pessoas atravessando passarelas calculando o preço de suas vidas. Acendi mais um cigarro e fui mijar ao lado de um poste, que devagar iluminava nossa insensatez.
Voltei pro lado dela.
– O irmão de um ex-namorado meu se jogou dessa passarela e morreu.
– Eu sei. Já me disse.
– Você não tem colhão.
– Não.
– Seu pateta.
– Estúpida.
– Colhão de plástico.
Foi aí que começamos rir na sincronia do vento. Fui pra cima dela e dei-lhe um beijo de três minutos. Até sentir o empurrão.
– Não, não, não. Não quero mais isso. Amanhã será a mesma coisa. Você e sua inconstância. Você é complicado Ramon, muito. Você chorou dizendo que me amava pela primeira vez e uma semana depois sumiu. Chega!
– Vai à merda então.
– Vai você ridículo.
– Piranha dos infernos.
– Corno parasita.
Levantou-se do banquinho com a garrafa na mão, preparou o lançamento, fechei os olhos. Quando abri, ela tinha colocado a garrafa no chão e enfiava a mão dentro da bolsa, retirando o que queria com um olhar predador, furioso, das leoas atiçadas.
– QUER SABER O QUE TENHO AQUI PRA TI? SEU EUNUCO! VOCÊ NÃO TEM COLHÃO, NUNCA VAI TER!
Deslacrei outra cerveja e senti uma sacola batendo na minha orelha. Era preta e continha algo macio dentro. Caiu na minha frente rolando.
– O que é isso? Perguntei – São meus colhões?
– NÃO. SÃO SUAS CUECAS SUJAS QUE ESTAVAM LÁ EM CASA.
– É isso que tem pra me dar? Minhas cuecas? Não teve tempo pra lavar?
Disparou bufando em direção a saída da gruta, para sua nova vida, sem mim e minhas bebidas. Sem meu cheiro que ela tanto gostava, sem minhas cuecas. Recolhi a sacola e pude vê-la me dando a última olhada enquanto caminhava pro seu mundo sem Ramon. Juntei as cervejas, resolvi fazer um caminho mais longo pra casa. Pensava comigo “Quenga enrustida, seu sorriso fede traição manjada. Limitada como uma serpente sem língua. Tenha filhos, gatos, mortes, cães, amantes, eu não ligo pra você mais. E se disse que te amava, devia estar maluco ou bêbado, como todo mundo!”.
Agora tinha cervejas e cuecas, torcia que realmente fossem as minhas, e que eu tivesse sido o último a usar. Entrei em uma rua que não sabia o nome, mas que me levaria pra casa juntamente com outras curvas e outras ruas, pro sofá recheado de incertezas, de qualquer forma eu teria que começar escrever pra valer. Senti um certo aperto por dentro, vontade de chorar os cinco meses anteriores naqueles segundos que meus passos contavam. Dóris uma grande mulher, Dóris uma piranha, Dóris minha mulher, Dóris apenas, adeus Dóris. No relógio digital plantado como grama, com uns três metros de altura pude ver 18:33 e 20 graus. Horário e temperatura de duas mortes e dois nascimentos. Segui caminhando, contando as lixeiras, as lajotas pra cegos, pisando conforme o movimento do cavalo no xadrez. Em frente uma casa de portões fechados, um homem sentado na calçada, com os braços apoiados nos joelhos e com a cara enfiada neles. 18:36 pensei, os mesmos 20 graus e mais um homem na merda. Quando ouviu meus passos ergueu a cabeça e me olhou como se eu fosse o Messias, surgindo de uma gruta, multiplicando cervejas e cuecas.
– Hei amigão! Ele disse quando eu já tinha dado uns passos a mais de onde estava.
Virei-me e voltei três passos.
– Diga – respondi.
– Não tem um realzinho pra mim?
Busquei R$ 1,25 do troco do posto. Larguei em suas mãos.
– Obrigado – ele agradeceu – Deus te abençoe!
– Bebe? Perguntei.
– Quando tem né?!
Dei a sacola com o resto das cervejas.
– Ah! Obrigado – ele disse – Deus te abençoe!
– Usa cueca? Continuei.
– Uso, uso.
Estendi a sacolinha preta.
– Pega aqui então.
– Deus te abençoe irmão!
– Agradeça à Santa Dóris companheiro!
– Obrigado Santa Dóris, obrigado. Dóris te abençoe irmão!
– Amém.
Continuei contando lixeiras, lajotas pra cegos, andando conforme o movimento do cavalo no xadrez e cheguei em uma nova rótula, com outro relógio digital plantado, 18:42 e 19 graus, peguei a direita e prossegui. Tinha me livrado de muita coisa nesse dia. Já tinha ideias pra desenvolver um texto, alguma poesia quem sabe. Meu caderno me aguardava, fechado em cima do sofá, despreparado pra minha caneta flamejante. Passei por uma pracinha iluminada suavemente, com brinquedos abandonados. Onde estariam as crianças ou os bêbados? Atravessei a rua e voltei à praça. Sentei num balanço, me movimentei todo sem graça. A vida era isso, um vai e vem sem graça. Desejei minhas cervejas de volta, Dóris de volta em meus braços. “Foda-se rameira!”, fui pra gangorra, mas minhas pernas eram muito grandes. 1,87 de altura, uma criança barbuda sem amigos pra brincar, sem mulher pra trepar, sem álcool pra tomar. Pousei num balanço que roda parado, dei umas dez giradas e parei com aquilo. Voltei pro meu caminho, precisava de um trago.
Cheguei em casa, peguei uma garrafa de vinho e sentei no sofá, com as pernas relaxadas. Bebia no bico enquanto tentava escrever. No andar de cima começaram concordar e discordar, algo sobre músicas, filmes e fodas prediletas. O telefone tocou.
– Alô – falei.
– Oi Ramon.
– Oi Dóris.
– Tá aliviado?
– Aliviado do que?
– Por não me ter mais.
– Não sei.
– Você nunca sabe de nada. Você me ama e não sabe, você me odeia e não sabe.Vai se tornar um alcoólatra e não sabe. Um pamonha sem colhão e não sabe. O que você sabe? Me diz logo!
– Não sei de nada. Vou dormir.
– Tá com mulher aí?
– Não.
– Não são nem 20:00 horas. Você não vai dormir. Tem mulher aí né?!
– Tem.
– Quantas?
– Uma.
– Ah!! Eu sabia!! Seu veado! Me esquece!!
Desligou.