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O ranger do telhado
Tudo está escuro
Ruidos de uma tempestade medieval
O menino está dando voltas
A menina tenta dar a luz
Assoviam os pregos
Flores despedaçadas
Sem bem me quer
Mal me quer
Mal queremos
Mal querem-nos
Mal sei do que estou falando
Goteiras ácidas queimando lâmpadas
Tremores, odores
Passos e vozes
Mais um dia calcificado
Em raízes amargas
Na boca uma simples gota
Arrancada pelo vento
O que assusta é o barulho da sujeira
Criando seu próprio caminho
O menino canta
A menina encanta
Tudo está escuro
Zelo ao encher o copo
O estrondo do portão sem fechadura continua alto
Resmungos e fungos
Fundos
Sincronizados pela emoção
Amanhã será melhor
Amanhã será o que for
Amanhã será o que há
Amanha será um dia
Que mal espero roer

Vinho

Três garrafas de campo largo seco
E minha língua geométrica parece um tratado
Já fui melhor quando bebia cinco
Sem um mapa do tesouro
Permaneço como a água da chuva
Sempre pra baixo ou escorrendo
Pra baixo
A peneira de corpos sempre vazia
O funil de corpos largo demais
Insetos estranhos sob goteiras
Tortos como a sombra de um porco
Estarão mortos amanhã
Cadáveres entre as cinzas
De uma noite chuvosa
Que nunca acaba

Não-gostar

O não-gostar é libido
É um caos controlável
É existir na existência, dever aos deuses
É a controvérsia do amor casual, que mal nos acostuma
Tem mais prestígio que um homem limpando a bunda na certidão de nascimento para mudar o nome
Torna-se raivoso, tão pouco contagioso e vingativo
Partiremos daqui logo, deixando sabonetes e talco nos sapatos
Partilhando mais chulé do que paixão
Combinando mais roupas que olhares
Morre-se de preto, desbota-se o corpo
Colam-se os olhos, a boca, as narinas e as pregas
O estilo fica pálido aos que olham para as flores que compraram
Nada tenho pra chorar, nem uma caixa d’agua
As pessoas boas racham lenha a vida toda e queimam
Seus pudores não são vaidosos e desrespeitosos
O não-gostar é instintivo e prematuro
E para que isso acabe, apagam-se algumas velas
Tornando as noites vagas e perfeitas

Minerva

Escrevo sobre desorientações
Do velho homem sentado no ponto de ônibus
Sem se dar conta que João carrega mais barro no bico
Do que ele nas botas
O gato na varanda do terceiro andar
Com menos medo da água do que a transeunte maquiada
Guarda-chuva maior que a bolsa, cabo de fora
Da lâmpada sempre acesa
Da mulher andando em círculos na sacada
Frenética, de dez em dez minutos sai, caminha, entra no apartamento
Escrevo sobre desorientações
Com uma agulha na ponta da cabeça
Atraindo o calor
Falo em mosquitos na trilha de um peido
Da sensação endócrina de morrer
Fraturas impostas por figuras expostas
Segundas respostas
Amostras
As botas brilhantes do velho homem não assustam João

Doses

Anorexia mental
Em um cérebro gordo
Paradoxo invertebrado
Com cheiro de bolhas vertebradas
O caos precede o caos
A morte precede a morte
Gritos em cortes
Pérolas do abismo surdo
Prefiro ajudar com minha distância
E invisibilidade
Mas acabo visto
Dentro de um órgão
Transplantado telepaticamente
Para fora de mim
Eu precedo o caos
Eu precedo a morte
Eu precedo eu
Em você

certo

sinto o cheiro do mar coagulado
emoldurado, latente
latejando esporadicamente em ondas
porém, barrado volta
sem ondas
sinto o cheiro do mar coagulado
que se doce fosse, não caberia em mim
escorreria em letargia
sinto o cheiro das vísceras entupidas
grosso veneno que sobra
quando o escárnio é mórbido
o moribundo se fortalece e morre
mais de uma vez
megera situação
um canibal comendo o leproso
sinto o cheiro do fogo que habita
brando, breve e misto
mas vibra, pinta
incendeia o tributo ao nada
extirpa anomalias da guerra cíclica
sinto o cheiro do fogo que habita!
sinta também, sinta agora!
imagine essas palavras como brasa
queime, goze, e foda-se
ein? ein? ein? ein?!
é…
improvável coincidência
mas ele voltará
brando, breve e misto
não perca a carona
sinto o cheiro daquele desenho dourado
sem peso, sem moda, sem forma
fede dentro do plástico
corruptamente altruísta sem lei
é o peso de uma balança no escuro
vaidade pra colorir
crime pra servir
outrem ou trem?
sinto que cheguei perto
do que?

Sopa com letras minúsculas

Primos, primas
Rios turvos
Migalhas de ouro
Cadáveres de pão
O Sol lamenta o que é de carne
Seus lindos sorrisos são sempre mais frágeis após a lágrima
Como se estivessem guardando chuva em marmita
Para o próximo jejum
E a fome não alcança o sacrifício
Então penduram cabides em cabides
Deixando a porta do guarda-roupa sempre aberta
Para a vela não apagar-se
E os vermes acharem a comida
Mamões de areia
Salpico com orégano
Manchas roxas em um riso de cobra
Impressões digitais desaparecem no hematoma
Crivado na lápide indigente
Indigesta
E até parece um caso sério

Rascunho

Desabotoando os ossos
Da esfinge galgada
Esse trem que não vai por onde veio
A estipe desmancha o caramelo do nevoeiro
Habita-me
Prosaico e imune
Como as raízes num chão de lama
Habita-me selva em doses
Semeia a eloquência dos meus porres
Disparo galante
Entre o troco e a sobra
Entre o porco e a cobra
Abro a janela pra respirar
Alguém reclama do barulho
Corro para o banheiro
Seco o guarda-chuva
Visto-me entrelinhas
Releio a carta
Recorto-a em curvas
Bem sabe ela
Que nunca responderei

21:00

Estou falando abertamente aos consolos do meu ego
Enlouqueci mais uma vez
Nas nuvens escuras de um bom temporal
Um baratão chupando o traseiro do dragão
O dragão coitado, dissolve bem mais rápido
Primeiro perde a cabeça, que solta parece um palmito
O baratão cresce na medida
Entrando de cabeça e tudo no dragão decepado
São formas apenas, afirmo com a cabeça
Meu estilingue com a forquilha de plástico
O porco que enterrei vivo
Balbúrdias de um rato pródigo ecoando na virgindade do esmo
Ligado a autodestruição
Como bananas siamesas sob a luz de um poste sem lâmpada
Fome de vida
Assim vai o carnívoro comendo grama sintética
E lá em cima e lá embaixo
Formas
Ao luar de uma noite sem estrelas

Tontos

O que é a vida?
A vida é um penico que aos poucos vai se enchendo de merda, e a morte nada mais é que uma empregada desinfetando inúmeros penicos por dia
Não perguntei sobre a morte
Não consigo relacionar vida com outra coisa. Consegue?
Consigo esquecer que uma existe
E sempre esquece a mais fácil de lembrar?
Esqueço a que menos me faz falta
Como pode saber disso se só tem uma por enquanto?
O que é a vida?
A vida é um penico cheio de flores, e a morte uma empregada que retira um punhado delas todos os dias, quando seca o penico, ela lava com esponja e expurga o cheiro doce
Meigo
Bicha
Poético
Poesia é rimar um nome russo com abacate
Fácil
Poesia é um palíndromo árabe
Fácil
Poesia é cagar num penico de pau duro
Com flores é poético, sem flores é fácil
Misturar flores com merda não é poético, é cagar no cemitério
Mas meu denominador comum é o pau duro, não a mistura
Cagar de pau duro em um cemitério é poesia, de pau mole não
De pau duro é poesia, de pau mole é fácil
Voltamos pro penico bicha
Poético
Qual a próxima pergunta?
O que é a vida?
A vida é um penico furado cheio de flores e merda, a morte uma empregada que finalmente ergue o dito e deixa que os outros interpretem a sujeira
Absorvendo
Esponjas, sempre com um lado sujo pra absorver
E limpar
O que é a vida pra você?
Um pepino
No penico ou no cemitério?
Em qualquer lugar
Como assim?
A vida é um pepino, fácil de descascar e bom de comer
Desconhece meu pepino
Desconhece o meu
O que é a morte pra você?
O que é a vida pra você?
O fim
O fim