Merlot

A dica do Rei foi:
Nunca blefe com um ás na mão
Mesmo que tenha marcas nas bochechas
Copie Américo e toque alaúde,
Nunca blefe com um ás na mão
Por mais suave que seja a couraça
Sobre os pergaminhos noturnos
Reza Pound, porque o trevo é recurso
A alameda percalço
E descalços, os carrapatos ainda fazem barulho
Atrás de sapatos com cara de patos
Zera Pound, esse meu blefe
Pois quem não tem ás
Caça com bobo
Do corte

A revolução dos buchos

Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava
Pelo portão da frente
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor!
Eu preciso de silêncio!
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes
E por tão inocentes amam e odeiam
Não perdoam
Não nascem
Explodem
Saem pelos vulcões e viram cinzas
Viram noticiário e atraem turistas
Poeira refletida
Excessos! Excessos! Excessos!
Somos todos desajustados
Trocamos de mulheres, de homens
Procuramos amigos melhores
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo
A sede mata, a água também
Somos vírus mutantes
Matando, morrendo, mudando e matando
De novo e de novo
Ajustes e desajustes”
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça
E você, o que está olhando?
Vim ver o show
Ah! Você é aquele esquisito que vomita sozinho toda noite!
Quem disse que estou sozinho?
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável!
Mais uma vez ela estava certa,
Errada estava a Bíblia
O homem dobrou a esquina
Como todos os outros que saíam
Do segundo andar, pelo portão
E quem ficava com a agonia sonora
Que descia pelos fios de luz por trás da parede
Até o interruptor do quarto
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite
E sempre que algumas coisas se repetiam
Eu pensava brevemente:
“Algumas pessoas sabem o que querem,
Outras apenas querem
Sem saber”

Metástase

A carta na manga
Com o assovio desfalcado
Dilacerando os espaços dos dentes
Assim se curva o desprovido confete mercúrio
Ao se deparar com Críton sonâmbulo
Ajustando a ferradura da fuga
No cachorro Bartolomeu
A carta na manga
Como uma imensa lamúria aos pés de Péricles
O choro que o mar despertou e jorrou
Por entre as antigas cantigas de ninar
Que assustaram primos, ao ponto de vê-los estáticos
Nos seios fartos da tia Melinda
A carta, a manga
A fivela e o coração de vaca
Aspirante ao título de jovem audaz no cemitério voador
Aspirado pelo prepúcio de Zeus
Tornando-se gêmeo siamês do Holocaustrofóbico
Caem paródias, caem sonetos, caem morcegos
Miro a recém formada imagem do cabeça de porco
Vou até Bocaccio, sucumbo à peste
Me vejo dentro da marmita do vagalume
É feijão, arroz, carne e alface
O sabor é delirante se não mastigado
Está calor, úmido, e a rua parece investigar seu passado
Empresto uma nota de dez
Durmo duas horas
Descongelo a geladeira
Estendo as roupas
Prescrevo meu dia
Como sempre,
Pela última vez

vá à merda

sabe dançar música
clássica? – eu me pergunto

não.. e você? – eu me respondo

também não, mas acordei
com vontade de dançar – eu
penso

depois quebrei uma
costela, talvez duas, além da mesa
puta estrago da porra
e eu só estava dançando sozinho
um pouco alcoolizado demais
talvez..

lá fora a vizinha continua gritando:

“vá à merda!”

parece que é para o marido
mas no fundo todos sabemos

quem sou..

Vencedor do Primeiro charAbismo


O HAMSTER

Andava pelas ruas sem rumo certo,
conduzindo o carro de um amigo cego,
quando choquei com um hamster pequeno,
que acabava de sair de uma lap-dance.

Eu nem vi o bichinho travessando,
pois olhava para o sinal amarelo,
e acelerava, para não parar.
Em vez disso começou uma longa noite.

Eu teria preferido um porquinho
rosado e roliço, pra fazer presunto,
em vez daquele pequeno ratinho
reduzido a uma pele estiraçada.

Agora estou no meio de uma rua
para firmar papéis, conciliações,
dizendo que o hamster me cruzou caminho
quando o verde era ainda em meu favor.

poema de Alberto Arecchi

feito água

lá fora, há poucos instantes
sentindo os frios pingos de chuva na face
novamente me lembrei dos peixes mortos
nadando na contramão
do riacho
gelado

e me peguei pensando
no quanto costumo lutar por meus sonhos
enquanto durmo
e no quão facilmente
esvaíam-se
quando acordo

tudo parece resumir-se
aos pingos abafados da goteira
que nos estruturados sonhos nascem distantes
e vão aproximando conforme tudo vai
inevitavelmente escorrendo
feito água no esgoto

assim, feito água corrente eu me sinto
sem saber direito para onde vou
apenas seguindo, abrindo caminho
deixando meu rastro, ora límpido
ora turvo.. qualquer hora
inundo.

Prótese

Propus-me a desentupir o ralo do chuveiro
Com luvas verdes
Que havia usado para reparar um vazamento no aparelho sanitário
Arranquei o tampão de plástico com uma faca de serra
Girei a torneira da pia do banheiro para teste
A água mudou o trajeto e subiu pelo ralo
Trazendo consigo uma porção de pelos
O teste trágico novamente dava positivo
Mergulhei uma chave de fenda para dentro do cano de evasão
Circulando-a dentro, forçando, tentando  encontrar uma barreira
Nada de escoar
Abri a torneira da pia, mais água, pelos
E agora porções de gordura brotavam pelo ralo
Separei o que pude de sujeira
Resolvi fazer pressão com a mão
Como se meu corpo inteiro fosse um desentupidor
Lá pela quinta bombada, um jato d’água gorduroso  e espesso
Explodiu na minha cara, escorrendo até a barba
Ficando, como uma colherada de sopa
CAGALHÕES! CAGALHÕES! EXPLORADORES  JORGEEEESSSSS!!!

 

Passado envelhecido ( XXIV )

“Acordei com o Eduard me chacoalhando pelos ombros. Ambos estavam vestidos, ele e Daniela, prontos pra saírem e seguirem suas vidas normalmente, às 07:30.
– Vai trabalhar? Perguntou.
– Tá chovendo? Perguntei.
– Um pouco – abriu a porta pra me mostrar. Nem olhei.
– Não vou.
Saíram, então fechei os olhos como tramelas para mais um dia. Ainda ouvi um “tchau Ramon”. Depois de mais uma hora acordei com o telefone.
– Alô – falei, com uma voz das profundezas do abismo.
– Não vai vir trabalhar?
Pela voz e pela grossura eu sabia que era o Vences, meu superior.
– Tá chovendo – respondi.
– Parou de garoar faz meia hora.
– Tô doente.
– Tá chovendo ou tá doente?
– Me sinto mal. Só consegui dormir depois das três hoje. Acho que é garganta inflamada. Sempre sofri disso. Ai Ai – suspirei. 
– Ramon, vou te descontar esse dia se não vier aqui em meia hora.
– Bom, se vai descontar então tô novo e vou voltar a dormir.
– O que voc….
Vesti-me como de costume, uma calça jeans com uma camiseta preta e saí em busca do meu novo lugar. Comprei uma cerveja pra tirar o gosto ruim da boca. Não tinha ideia pra onde ir. Não sabia sequer se ainda tinha emprego depois da matada e do telefonema de Vences. Podia caminhar o dia todo. Encontrei uma loja de canos e mais coisas, que tinha na fachada um lençol dizendo “Alugo quitinetes”. Dei goles felizes na cerveja, acendi um cigarro, o lençol não sairia voando, logo ali pensei, um novo pulgueiro pra me lançar, sem luxos, só com o mínimo para aguentar todas as primaveras restantes.
Entrei e vieram atender bem perto da porta. A loja era maior do que qualquer um imaginaria de fora. Todos vendedores usavam um uniforme vermelho desbotado.
– Bom dia. O que era pro senhor?
– Vim pelo anúncio de quitinetes.
– Quem tem quitinetes é a dona da loja amigo, ela não está aqui agora.
– Onde ela está?
– Não sei.
– Mas eu quero alugar uma quitinete hoje. Ela vem pra cá?
– Se informa ali no caixa. Não tô sabendo.
Fui desgostoso até lá. Uma mulher ruim só de olhar sorriu, eu não daria dinheiro pra ela. Tinha uma sobrancelha em formato de “V”, bem grossa. Uma face de que mataria por um cacho de bananas. Era mal comida, ou raramente.
– Qual seu nome? Ela perguntou ao me aproximar.
– Por que?
– Pra eu puxar seu pedido no sistema.
– Não comprei nada moça. Quero alugar uma quitinete. O carinha ali falou que você podia me ajudar.
– Hum. A proprietária da loja e das quitinetes não está aqui hoje. Quer deixar seu telefone para que ela entre em contato?
– Tem como ligar pra ela agora? Insisti.
Ela entortou a cara. Renata dizia seu crachá. Uma loirinha ao lado dela riu sozinha, só ouvindo sem olhar pro lado, regozijando por ter se livrado de mim, um sem teto e sem cano, na sua cabeça.
– Vou ver o que posso fazer. Aguarde por favor – Renata gentilmente pediu.
– Tudo bem Renata. Faça seu melhor.
Foi pra algum lugar. A loirinha não conseguia conter estática sua epiderme ao redor dos lábios. Eu tinha feito algum favor pra ela acabando com a vida da Renata. Bruna dizia seu crachá. Bruna dos pelos pubianos alegres. Bruna vingadora. Bruna dos olhos azuis da cor dos mares profundos.
– Tá rindo do que Bruna? Perguntei.
Aí que ela se largou na gargalhada, colocando as mãos na frente da boca. Firmei nela meu olhar sedutor. Parecia que todas as mulheres que me viam queriam rir. Ramon não tinha motivos pra rir, mas tinha alguns pra chorar.
– Nada não – Bruna disse – você é engraçado.
– Eu tive uma namorada que me achou de tudo, menos engraçado.
– Desculpe-me. Não consegui segurar.
Mudou de fisionomia como uma atriz veterana e despejou seu olhar pra outro rumo.
– Qual seu nome senhor? Ela disse.
– Jorge.
Olhei pro lado, Jorge devia ser o principal encanador da América do Sul. Precisaria de um caminhão pra levar suas compras. Bruna seguia seu protocolo, sistema, produtos, cobrança, sem ligar mais pra minha presença, sem ligar pra quem não me achava engraçado. Renata voltava com sua ruindade pairando e com novidades.
– Consegui o telefone dela ali na administração – me disse – vou ligar.
– Obrigado – agradeci.
Pegou o telefone e discou os números que poderiam mudar alguma parte da minha vida que já devia estar mudada. Fiquei olhando e ouvindo. Renata não devia ser casada, não  chupava um pau há meses. Que olhar morto. Uma mulher difícil de comer e difícil de dar. Trancada em devaneios, absoluta em cobrar e não pagar. Suas calcinhas eram todas frouxas, seus sutiãs pinicavam seus seios e faziam dobras fundas na pele. Estava encrencada.
– Alô, Dona Carla?…Oi, aqui é a Renata, tudo bem?…Não aconteceu nada Dona Carla, apareceu um senhor aqui pra alugar uma quitinete da senhora por isso estou ligando…Está aqui na minha frente…. – Quantos anos o senhor tem? Perguntou-me.
– Vinte e seis – respondi.
– Vinte e seis Dona Carla….- Estudante?
– Não – falei.
– Não – continuou ao telefone… – Trabalha?
– Trabalho
– Ele trabalha…. – Onde?
– Porra, no museu – falei – tenho 1,87 de altura, 80 kg.
– Trabalha no museu Dona Carla… – Ela quer falar contigo.
Peguei o telefone e disse alô.
– Qual seu nome?
– Ramon.
– Trabalha em qual museu Ramon?
– Na verdade sou substituto, não tenho vínculo algum com o museu.
– Entendi. Bom, hoje só tenho uma quitinete mobiliada com dois quartos pra alugar na gruta.
– Qual o valor?
– R$ 800,00 por mês.
– Só tem essa?
– Hoje sim. Mas pensa bem, na gruta você não vai achar preço melhor que esse.
Um timbre de vida ganha pelas linhas. Metralhando soberba poderosa, de tetas compradas, virtudes e valores alcançados através do poder monetário. Ela jamais iria parar.
– Não quero morar na gruta. Obrigado, tchau.
Passei o telefone pra Renata.
– Oi Dona Carla…Está bem eu direi…tenha um bom dia.
Encaixou o telefone e disse:
– Ela não gostou de você. Mandou comprar uma casa na praia com seu salário de substituto e ser feliz.
– Me passa o número de telefone dela – falei.
– Não posso. Só repassei o recado.
– Qual o valor de um chuveiro?
– Não sei. Vai até ali com um dos vendedores, eles podem te atender.”

 

CAGALHÕES! CAGALHÕES! EXPLORADORES  JORGEEEESSSSS!!!
Levantei, fui até o fogão, coloquei água ferver
Voltei ao banheiro
Olhei para o espelho, vi minha barba toda molhada
Lambi um pouco de gordura
E disse a mim mesmo:
Então esse é o cara que vai virar o jogo?