quase completo

“BUÁÁÁÁÁÁÁ”

o bebê acaba de nascer
e apesar do parto penoso,
passa bem.
contudo, é preciso avisar aos pais
os felizardos

“seu filho nasceu sem coração”

os pais parecem bem
um pouco atônitos, talvez
talvez só estejam preocupados
em parecer preocupados

“como pode isso, doutor?”

“mas ele vai ficar bem?”

“vai sim, ele está bem, apesar..”

eles sorriem aliviados, comemoram
não precisam ouvir mais nada
estão completamente satisfeitos
com o resultado daquelas trepadas
vazias, sem nenhum
amor.

a mesma mulher

“arruinei minha vida
casando com a mesma mulher
duas vezes” – disse
W. Saroyan

ouvi e digeri. marquei a página
tatuei o poema, e mesmo assim
acabei ludibriado
novamente
arriscando-me no mesmo fogo
na mesma chuva
ácida, pelo mesmo desejo
imponderável de viver
e sofrer – consequentemente

“sempre haverá alguma coisa
para arruinar nossas vidas?”
que vidas arruinadas são normais
eu sei, sou prova
mas quantos arruinados
otimistas
você conhece? sábios
ou não?

já não sei o que ela quer de mim
já lhe entreguei meu fígado
meus rins
minha garganta
meus pulmões, meu sangue
o pior de mim já nem me pertence
parece estar todo concentrado
nela
que finge não me enganar
enquanto finjo não saber
que sou enganado
e fingimos tão bem
que a coisa toda até parece andar
perfeitamente bem
como se tudo fosse verdade
como se Saroyan fosse o único
de fato
à arruinar sua vida
duas vezes
com a mesma
mulher.

Passado envelhecido ( XXIII )

Eram nove horas da noite, ou quase isso, perto disso, pela escuridão do quarto imaginei nove horas, mas não eram. Eu já dormia exaurido, sonhava que estava morto, mas, ainda acordado movia os olhos. Morto e pelado, no próprio colchão, tentava descobrir como havia morrido nu. Sinais. Chovia muito e uma goteira acertava minha testa em cheio. A gota descia pelo nariz e contornava a boca. Uma gota quente, mais sinais. Descia pelo meu peito cabeludo e entrava em meu umbigo. Doía, mas eu estava morto, pelado e molhado. Mais uma gota na testa percorrendo o mesmo caminho. Mais dor, mais morte, mais sinais. Menos com menos é menos negativo? Não, é mais, eu disse.
O telefone tocou, imaginei que eram nove horas, ou perto disso. Bebi algumas antes de deitar, ou melhor, bebi deitado antes de dormir, e essa talvez fosse a explicação de estar pelado, molhado e morto. Pensei: Se for deus estou ocupado, se for o diabo estou bêbado. O som do aparelho sacudia meus pés toda vez que cantava, como vibrações de orgasmos caindo do teto. Com um poder rasgado em meu túmulo, percebi que nem deus, nem o diabo insistiriam tanto em falar comigo. Mais uma gota na testa, mas essa nem percorreu meu corpo, ficou zanzando sobre minha cabeça, alfinetando como agulhas de acupuntura da grossura de um prego 18×36. Sinais e sons. Finalmente consegui atender.
– Sim – falei.
– Sim o quê? Ela perguntou.
– Sim, morri.
– Estou grávida.
– Por quê?
– Está bêbado?
– Não, morto.
– Fiz o teste hoje pela manhã. Dois risquinhos. O filho é seu.
– Não é.
– Só dei pra ti esse mês.
– Não deu.
– Vai assumir?
– Sim.
– Está com medo?
– Menos com menos é menos negativo.
Não ouvi mais nada.
Acordei pelado e com dor de cabeça. Tomei um omeprazol e uma dipirona. Achei minha cueca sobre a tampa do vaso sanitário, ao lado de um rolo de papel higiênico perto do fim. Coloquei-a. Preparei-me para o trabalho, calça, sapato e a camiseta da empresa, que pega fogo sozinha. Quando acendi um cigarro na porta, ouvi o telefone. Não atendi. Suei e fedi o dia inteiro. Voltei pra casa para um perfeito banho gelado. Senti meus mamilos duros e brinquei com eles, cutucando-os com o dedo indicador da mão direita. Lavei principalmente minhas virilhas. Exaurido novamente deitei para dormir um pouco, era quase sete horas da noite, ou quase isso pensei, pela claridade do quarto, mas não era. Conferi, vestia uma cueca, então fechei os olhos.
Não sei quanto tempo passou até ouvir batidas na porta, lentas como páginas viradas. Conferi, ainda estava de cueca, levantei-me e fui ver quem era. A chave está sempre jogada em um pote com moedas e um frasco de omeprazol. Tomei uma pílula sem água. Toc….Toc…..Toc. Gub, gub, engoli com dificuldade, pensei que o remédio pudesse ter ido parar em algum pulmão, então seria o fim da minha azia asmática. Abri a porta com uma moeda, eu tinha engolido a chave. Sem sinais por enquanto. Quem batia era uma criança com a cara borrada. Olho para o céu, vejo nuvens brancas estáticas, todas no mesmo formato.
– Gostosuras? Pergunta a criança.
Tenho uma bala de banana na mão, lhe entrego. Sinais. É uma menina, como eu sei? Eu não sei.
– Gostosuras? Ela continua.
– Menos com menos é menos negativo – lhe digo.
– Não, é mais – ela corrige.
Dou-lhe outra bala de banana. Odeio balas de banana.
– Por que você tem cara de sabonete? Pergunto.
– Porque o mundo é sujo – ela responde e some.
Tranco a porta com uma pílula, pois engoli a moeda. Volto ao colchão e deito, ainda estou de cueca. O telefone toca. Não sei que horas são. Deduzo que estou louco, e loucos não se importam com as horas. Eram dez, pelo menos quase isso, podia apostar uma bala de banana, mas não tinha mais, nunca tive. Pensei: se for deus é engano, se for o diabo é a cobrar. Levanto o braço direito e alcanço o interruptor, ligo, desligo, ligo, desligo, nada muda. Vivia tanto no escuro que nem percebia quando faltava luz. Encontro o telefone, antes de atender confiro, estou de cueca.
– Alô – atendo.
– Te liguei hoje de manhã, mas não atendeu – ela diz.
– Ninguém me ligou. Ninguém me liga.
– Eu liguei.
– Não ligou.
– Tenho certeza que liguei.
– O que você quer? Pergunto.
– Prefere menino ou menina?
– Menina.
– Por quê?
– Porque o mundo é sujo e menos com menos é mais.
– Vai assumir?
– Vou, porra!
– Você será um péssimo pai. Pelo menos é bonito, quero teus olhos no menino e minha bunda na menina.
– Que horas são?
– Quase dez.
– Sabia. Ganhei a aposta.
– Qual aposta?
– Bobagem. Quero saber. Quem é você?
Não ouvi mais nada.
Acordei bem disposto. Pus minha calça, meus sapatos e minha camiseta da empresa com um bordado na parte esquerda no peito, em círculo, verde e branco. Quase esqueci do omeprazol, mas lembrei-me ao catar a chave no pote. Juntei algumas moedas para comprar cigarros, a carteira pesava e fazia sons a cada passo, como se eu tivesse uma capelinha de santa na bunda. Trabalhei como sempre, suando e encharcando a cueca e a camiseta. Antes de voltar pra casa fui ao banheiro da empresa. Passei lentamente o dedo indicador da mão direita nas minhas duas virilhas e cheirei. Absurdo. Um banho gelado seria perfeito. Em casa, após quarenta minutos de caminhada, abri as duas únicas janelas fechadas, a do banheiro sempre fica aberta parcialmente. Tirei minhas roupas e larguei em uma bacia branca embaixo do tanque para lavar algum dia doravante. Afastei uma cortina e me posicionei embaixo do chuveiro, girei a torneira até o fim aguardando a mais gelada das águas. Esperei por uns segundos, olhei pra cima, olhei para a torneira, conferi se havia girado toda. Fechei-a e girei toda novamente. Olhei pra cima e nada. Sem água. Passei novamente meu dedo indicador da mão direita pelas virilhas e cheirei. Que absurdo feder assim. Fui até a geladeira e ao abrir a porta acendeu-se a lâmpada, iluminando poucas coisas, mas entre elas, uma garrafa plástica de um litro e meio, com água pela metade. Agarrei-a e voltei para debaixo do chuveiro. Esfreguei o sabonete pela virilha direta e depois, com a mão esquerda em forma de concha cheia de água gelada, derramei e fiz espuma na virilha. Fiz isso também na virilha esquerda, nas axilas e entre as nádegas. Sequei-me e deitei no colchão. Sobrou em torno de oito goles de água na garrafa, podia apostar na quantidade, mas iria perder. Decidi tirar um cochilo. Não conferi a cueca pois decidi dormir pelado. Meu pau endureceu algum tempo depois. Eu estava com o lado direito do corpo apoiado no colchão, minha mão direita segurava belos cabelos longos e castanhos ondulados, minha mão esquerda suspendia uma deliciosa perna esquerda pela dobra do joelho. As vibrações não caíam do teto, emanavam dos genitais siameses em forma de calor e vida. Sinais. Sua bunda corpulenta amaciava o impacto dos nossos corpos cobertos de suor e luxúria. Eu sentia que pegaria fogo dentro dela, meu pau seria cremado sem cerimônias e orações, ou morreria enterrado em uma caverna vulcânica com a lava das deusas promíscuas. Uma sincronia de átomos, beirando o colapso explosivo da carne crua.
– Quanto é menos com menos? Perguntei.
– Menos com menos é sua porra dentro de mim – ela respondeu.
Sinais. Não ouvi mais nada.
O telefone tocou e me acordou no outro dia, vinte minutos antes do horário normal que acordava para ir trabalhar, vinte, ou quase isso.
– Alô – eu disse.
– Oi – ela disse. – Te acordei?
– Sim.
– Me desculpe. Estou com saudades. Faz uns quatro dias que não te vejo. Ando ocupada com meu curso de acupuntura e meu trabalho. Como você está?
– Estou bem.
– Será que podemos nos ver hoje?
– Podemos.
– Esteja aqui as 20:00 hoje. Tenho uma surpresa.
– Está grávida?
– Claro que não, seu besta.
– Estarei aí as 20:00.

Teria que engravidá-la, eu amava a mulher.

Passado envelhecido ( XXII )

– Xeque-mate – disse Vences.
– Tá maluco? Posso mover o Rei pra cá – disse Tomás movimentando a peça.
– Não pode, tem esse bispo aqui atacando essa diagonal – falou Vences segurando o Bispo pelas pontas dos dedos da mão direita. Ele era canhoto, mas segurar as peças com a outra mão lhe proporcionava poder, ou prazer, não sabia distinguir o que sentia ao segurar o bispo com a mão “ruim”. Era como apalpar seios com essa mão, meio atrapalhado, machucando às vezes, mas era possível, considerava seu sexo mais complexo nas dificuldades, sacrificava-se pra utilizar seu corpo inteiro, principalmente as partes mentalmente incapazes. Só assim sentia-se vivo e altivo, humildemente um homem completo fisicamente.
Tomás observou o Bispo nas pontas dos dedos da mão direita de Vences e jurou em silêncio que o depravado ria da situação. Pensou em seu pobre Rei humilhado por um principiante a Papa, e possuiu-se de amargura por ele, pela incompetência intelectual daquela diagonal. Por um instante percebeu a suavidade do Bispo nas alturas, e logo soube, seu adversário era canhoto, exacerbadamente confiante pra fazer aquilo com ele. Tomás era um destro fortemente armado, um soco seu de direita derrubaria um avião. Utilizava da mão esquerda somente para lavar a direita nas tantas pias do mundo. Em certa ocasião tentou limpar a bunda com a mão esquerda, mas a bunda rejeitou o movimento grosseiro, seu ser inteiro sacudiu, proporcionando até um pulinho de negação. O que era ele? Um ser divisível? Sim, podiam cortar todo seu lado esquerdo fora. Teve certeza disso ao tentar masturbar-se com a mão esquerda por três horas. Nada de ritmo, somente puxadas doloridas no couro, capazes de rasgá-lo sem uma miserável ejaculação. Também escovou os dentes com a mão esquerda quatro vezes, mas parou, pois morrer de hemorragia bucal parecia idiota demais. Desistiu de seu lado esquerdo, mas não da partida de xadrez.
– Acho que você não esperava por esse lance Vences! Disse voltando o Rei para casa original com a mão polivalente e avançando um peão para tapar o xeque.
Vences teve pena de seu adversário singularmente incompleto fisicamente. Pensou que ao serrar o lado direito de Tomás, possivelmente o mesmo morreria de fome ou sede. Ao contrário do que acabara de ouvir, era claro que esperava aquele lance. Vences não dizia “xeque-mate” em vão. Assim como não dizia “gozei” em vão, nem “te amo” ou “vi um OVNI”. Com a mão “ruim” elevou o outro Bispo, posicionado na casinha ao lado do anterior na sacristia preta e branca chamada tabuleiro e disse:
– Não pode mover esse peão, está cravado “Tomenos”.
– Que religião está criando Vences? Pra todo lado têm Bispos.
– A religião dos ambidestros ocasionais.
– Não poderei fazer parte, querido amigo.
– É uma questão de perseverança. Se sentirá muito mais completo na minha religião. Poderá escolher com qual mão raspar o saco, até mesmo com qual mão descascar uma laranja ou deslacrar uma cerveja.
Tomás não desistia da partida. Voltou o peão cravado para a posição original e fez o roque grande, tudo com a mesma mão firme.
– O que achou dessa Vences?! Lance de mestre.
– Você não pode rocar estando em xeque. Perdeu. Deixa de lengalenga.
– Quem criou as regras desse jogo? Esbravejou Tomás, mais com o lado direito da boca.
– Eu – respondeu Vences com desdém, movendo a boca em sincronia.
– E se eu te der xeque também?! Persistiu.
– Teu Rei já está em xeque, porra.
– Xeque por xeque e ficamos sem fundos – riram.
– Fecha a boca animal. Arruma as peças e vamos pra próxima humilhação.
– Chega dessa merda. Que tal outro jogo?
– O que sugere?
– Queda de braço com os braços esquerdos.
– Você não consegue abrir uma carteira com a mão esquerda.

Cerca elétrica

Aluga-se grátis
Brilho ativo
A sambiqueira tornou-se souvenir
Na boca da rainha de copas
Metabolismo de avestruz
A desmanchar mel no canto da boca
Aleluia no gelo, Aleluia na porta do quarto
Sublime rasante enfeitando e enfeitiçando
Uma sala de ostras hipnotizadas
Lá de fora o uivo e o canto do vento sempre a destacar
O som das calhas soltas pelos uivos e pelos cantos
Horizonte espremido verticalmente
Logo acima do rodapé
Pela ausência de blefes genuínos
Ergo o copo cheio de vinho
E proponho um brinde:
“Bom, estarei lá
Daqui um minuto
Será a mesma coisa
Eu estive lá
Vinte anos atrás
E foi a mesma coisa
Estou lá
Agora
Mesma coisa
Será possível não estar?”
Eles me ignoram
E dizem que,
Recentemente um poeta grisalho e viúvo
Costumava passar gritando por aquelas ruas todos os dias:
“Eu escrevi o poema mais sincero do mundo”
E corria com a folha de papel até cansar
Depois acendia um cigarro
E queimava as palavras mais sinceras do mundo
Perguntei se ele ainda fazia isso
Mas o velho poeta havia cometido suicídio
Dentro do banheiro, e ninguém nunca se atreveu
Procurar uma cópia do tal poema
Falei que iria lá depois de terminar o próximo copo
Ignoraram-me
Caminhei por uma quadra inteira
Até encontrar a casa, cheia de arbustos até a entrada
O cheiro, o silêncio, as cores, tudo neutro
Vasculhei algumas gavetas
Prateleiras, revirei alguns livros
Até achar um caderno surrado e um lápis
Por baixo de uma coleção de cartões postais
Folheei todas as páginas
E em torno de trinta delas estava escrito:
“Eu escrevi o poema mais sincero do mundo”
Algumas estavam em branco, e dava pra ver
Que muitas haviam sido arrancadas
Peguei o lápis e fui até o local da morte
Escrevi na parede branca
“Olhei pela janela do banheiro
Alguém estendia calcinhas
Outro paparicava o papagaio
A moto não pegava de jeito nenhum
O muro foi pichado novamente
Fechei a janela
Abri o chuveiro
E com o sabonete
Rabisquei meu nome no vidro
Pois entendi que essa janela
É um poema que posso lê-lo
De formas diferentes todos os dias
E encerrá-lo quando quiser
Só depende do movimento dos meus olhos
E de um movimento de mão”
Espero
Que se alguém for lá
Procurar o poema mais sincero do mundo
Não pense que foi isso que ele tanto escondeu