no frescor da doença – Eduard Traste
sobrevida na poesia – Eduard Traste
epitáfio anoréxico – Eduard Traste
de um inferno ao outro – Eduard Traste
tragédia auditiva – Eduard Traste
O último banho, o último gole de café, o penúltimo cigarro, a última meia, o último ódio. Tudo dentro do liquidificador atormentado. Quanto mais caminhava, mais engolia ideias. Os latidos, as conversas, automóveis, aviões, alarmes, todos falando a mesma língua envenenada. Seu pedido era morrer, e seu desejo era matar. Fácil, um quebra-cabeça de duas peças. Tinha um lugar escolhido para o último cigarro. Era uma escada repartida por um corrimão, com degraus exaustos de aguentar calcanhares, mas com uma bela visão do inferno. A escada terminava no começo de uma rua morro abaixo, tendo um poste que selava essa união. A luz do poste piscava, estava entrando em curto, pronta para apagar, e apagou. Na escuridão, o vagalume de nicotina dava o tom, e a cortina de fumaça escondia os olhos dele das pessoas que subiam a escada. Passavam todos pelo outro lado do corrimão, e mesmo assim, ainda tragavam aquela fumaça com cheiro de morte atrasada. Ele ria, afinal não morreria de câncer. O cigarro virou cinza e filtro, sendo jogado na grama que crescia ao lado da escada. Pensou ele, que algum cachorro ainda mijaria naquele que foi sua última companhia e riu novamente. Sentia-se vazio, mesmo com o tanque cheio. Chegava o momento, justamente como havia imaginado. Era perfeito como um pesadelo. Estava realizado, seu último suicídio foi um sucesso, e sua última companhia não fora jamais mijada, apenas lambida.
Outra escada. Essa com degraus mais limpos e menos surrados, afinal, era um lugar sagrado. Uma santa, recheada de luzes e rodeada de vidros, com as velas acesas e apagadas pelo lado de fora, tornando aquela visão linda, de uma estátua intacta. Ele estava longe do santuário, preferiu sentar no primeiro degrau da escada que da acesso ao recinto de orações. Naquela hora, só ele mesmo estaria lá, eram 22:00 horas. Um cigarro, uma cerveja e uma cabeça latejante, por dentro e por fora. As casas que ficavam ali perto, brilhavam muito menos que a santa. Eram casas isoladas, flageladas. Alguns cães caminhavam pela redondeza, perdidos como ele, mas nenhum chegou perto. Provavelmente seu cigarro espantava-os, mas tudo bem, assim os pernilongos também iam embora. Se perguntava se mijar em um lugar sagrado era pecado. Se fosse, os cães iriam para o inferno com ele. Naquele momento, ele considerava os cães mais racionais e higiênicos. Depois de mijar, sentou no mesmo lugar e de costas para a santa começou a rezar. Alguns latidos o incomodavam, mas tentava se manter. Sabe aqueles momentos em que se pensa que morrer é a melhor herança? Percebeu que sua reza era falsa, não adiantava insistir, seus pedidos não eram fiéis. Os cães eram, e rezavam melhor que ele. Não importa pelo que rezavam, por ossos ou simpatia, já não importava pelo que ele tentava rezar. O vento o empurrou para dentro do carro, e com um latido despediu-se.
o cachorro fareja meu ódio e meu desprezo
escorrendo lenta e diretamente
da sacada do quarto 103
para a calçada
uma boa fungada
com o pescoço bem disposto
narinas bem abertas
são segundos
antes que atravesse a rua desatinado
e seja despedaçado por um caminhão carregado
em toneladas de momentos
jamais esquecidos
foi a última vez para ele
eu lamento e continuo escorrendo aos montes
morrendo aos poucos..
de quanto azar preciso
para ter um pouco de sorte?
perguntei para o gato
aqui do meu lado
que não sabe sua idade
mas é muito peludo e ronrona
em várias línguas diferentes,
perguntei para o cachorro
que no ano passado
não votou em branco
nem vendeu seu voto
só enterrou seus ossos,
para o frango
que preparei no almoço,
para o porteiro
que não guarda portas,
para o Alce, porque o encontrei
no caminho, para o guarda-chuvas
que já não vem guardando
nada. e por hora
estou convencido: éter
é eterno.
O chacoalhar
Cantos
Vento, vento
Som dos gatos rolando
Nas telhas soltas
Em brigas noturnas
Uivos
Jovens de bigode
Leões de bolso
Cantos, uivos
Tenho cintos e discos
Posso abrir meu guarda-roupa agora
E encontrar três gerações de baratas
Sou um coito coitado
Um tipo ejaculado na boca do jacaré
Soluços e coceira
Prisões fazem homens chorar
A bebida também
E os crocodilos choram com água na boca
E as mulheres porque soluçam e se coçam
Mais que um bêbado na feira de pulgas
Todos riem, riem, riem
Riem do pobre doido das calças curtas
Que aqui e acolá, transborda em instantes viúvos
Quando a poeira vortex gruda em seu corpo úmido
Imagina o deserto repleto de criaturinhas deficientes
Feitas de suspiro
Aquela mancha pastosa transforma-se em tempestade
Todos riem, riem, riem
Famigerado pela fome alheia, ele suspeita
Trata piedade como troco pra cachorro
E dança tango de chinelo
um homem
entre mil outros
navios
sabe qual é o seu
navio quando conhece
o mar.
Acreditei nas flores da primavera
Que estendidas dificultavam meu andar
Temi as aranhas das plantas verdes
E das quinas das paredes
Que assustadas corriam ao meu lado
Desconsiderei as pedras cortantes
Estáticas em qualquer estação
E desse jeito plantei suas cicatrizes
Em meus pés desajeitados
O abacateiro quebrou o braço de minha mãe
Um tombo provisório
Sobre a casa de Bob, o cachorro
Que em dias ruins como aquele
Desatava a latir
Desafiei os subornos dos garrafões vazios
Terminei em terceiro lugar
Só porque, infelizmente
As girafas não nasciam em fornos
Atravessei, depois de um tempo
Uma nuvem pubiana de olhos castanhos
Singular, úmida e rigorosa
Ela até hoje me deve esperança
Desajeitado então
Instituí a derrota como vingança
Maltratei as colinas albinas
E tornei-me homem com uma puta incapaz de gozar
Ando dopado
Com soro fisiológico nas narinas
É isso aí, acertando meu adeus
Um adeus tão ensaiado e teatral
Mereço as palmas com uma mão só
Não duvidem
Vejo constantemente
Espelhos furados através da fumaça pueril
Imbróglios sorrateiros, guerra em perigo
Onde estarão os estornos?
Atrás do espelho?
Na frente?
Ou afiando a faca aqui ao lado?
Em um tesouro de gás
Fazem falta
A cor que crucifica em X
O beijo que acalma a lama
Os sintomas perpetuam incrédulos
Devagar, devagar, devagar
Corpo inóspito no lar dos anjos
Logrando fadigas
Mendigando suicídio
Estafa sexualmente transmissível em uma orgia de lobos
Um resultado de exame
Assinado
hoje estou levando
uma surra
– de quem?
de mim mesmo.