Dia de roça

Eram dois ou três domingos por ano no máximo,

quando a família entrava no carro para visitar o nono e a nona,

saíamos do interior para irmos ao “mato”,

ambiente familiar aos meus pais,

ambos criados no trabalho rural desde cedo, onde a inchada sempre vinha antes do lápis.

Fomos de ônibus,

com um cheiro terrível de freios sendo queimados pelo atrito com as rodas.

Fomos de fusca,

que deixava quase sempre um cheiro sutil de gasolina em nossas roupas.

Fomos de Fiat uno bordô,

esse já com 4 portas,

com Leandro e Leonardo no velho toca fitas.

E fomos de celta,

branco, com CDs de música sertaneja e

tapetes azuis metálicos, que brilhavam como meus olhos a espera da chegada.

Para mim pouco importava a forma,

mesmo lidando com constantes enjoos provocados pelas infinitas curvas.

Importava-me a chagada!

E a cada uma das 4 pequenas pontes do caminho, as quais eu passava com os olhos fechados pelo medo, meus enjoos iam desaparecendo.

Chegávamos quase sempre muito cedo,

não cedo suficiente para pegar o início do fogo na churrasqueira de lata na velha garagem.

Não importava a hora,

sete e meia,

oito e quinze,

ou nove horas,

lá estava o nono, com o fogo aceso,

e uma infinidade de carne ainda na salmoura, essa que ele fazia questão de todos molharem o dedo e provarem seu sabor.

As boas-vindas ao meu pai eram sempre com uma generosa caipira,

açúcar abundante, cachaça abundante e uma ou duas singelas pedras de gelo.

Para minha mãe, o olhar fraterno de pai,

e sacolas de frutas frescas já separadas para nosso regresso.

Para o neto, tudo isso,

açúcar empapuçado em cachaça abundante, um olhar fraterno e 40 cartas de um baralho espanhol pronto para a bisca, a marina ou a escova.

Primeiro o baralho!

Três cadeiras de palha, uma servindo de mesa,

duas sendo cadeiras.

Algumas partidas rápidas,

quase sempre finalizando o jogo com resultados iguais.

“Três a três nono, depois quem ganhar a última ganha todas!”

Agora era hora de abraçar a nona,

que há horas estava com a mesa do café servida,

esperando que todos provassem o pão,

as bolachas caseiras,

o queijo e a nata frescos.

Abraços, com beijos repetidos na bochecha.

“Como você cresceu belo, senta, vamos comer”.

E só me deixava sair da mesa após um generoso café,

mesmo por vezes sem fome, eram impossível negar tamanho amor empregado em cada um dos pratos preparados por ela.

Antes de sair um punhado de bala sete belo, rosas, sabor iogurte.

Descia até o paiol, à espera agora era por meu primo, que normalmente chegava mais tarde, exceto em épocas de pescaria, quando ele chegava muito mais cedo que eu, e deixava 20 ou 30 minhocas separadas em um pote reutilizado de margarina.

Saía do paiol, e caminhava até o porão do velho casarão.

Casa antiga, com porão, e sobrado, aqueles sobradinhos baixos, sem forro, que servia de dormitórios de visitas e uso vitalício aos morcegos.

O porão, de chão batido servia como depósito de ferramentas de todos os tipos: inchadas, picaretas, moedores de carne, amolador de facas e um pelego de ovelha no canto, esse que imagino servir de cama para o nono em dias poucos produtivos ou de muita bebida.

Agora faltava o chiqueiro, por mais estranho que possa parecer o lugar que mais gostava de visitar.

Adorava ver aqueles leitões recém-nascidos encolhidos perto de uma incandescente lâmpada elétrica.

Sempre vigiados atentamente pela porca matriz, que soltava grunhidos estridentes caso tentasse encostar em um de seus filhotes.

Por vezes passava minutos pensando em estratégias para soltá-los, quem sabe poderiam fugir para o meio da plantação e fugir do seu destino, mas como poderia, se nem ao menos eu poderia fugir do meu…

Logo o cheiro de carne assada se espelhava pelo ar,

o almoço nunca era o prato principal,

ao menos para mim.

Os miúdos espetados pelo nono eram para piazada,

coração,

rins,

e o delicioso fígado assado servido com gotas de limão, esses colhidos sempre por eu e meu primo, que os apertava antes de colher, para saber qual teria mais “suco”.

A tarde quando os tios e primos mais velhos apelidados por nós de coisas desconexas como Buda (que nos gerava risos imparáveis), se dedicavam a reforçar o tradicional porre de antártica.

Já as mulheres conversavam entre si, com pipoca doce de melado e cuias de chimarrão circulando.

As cinco irmãs, todas idênticas, tinham ali sua identidade compartilhada, perdi as contas de quantas vezes chamei minha mãe de tia, e algumas de minhas tias de mãe.

Para eu e meus primos mais jovens,

a tarde era produtiva,

caça aos ratos do paiol,

o chute nas frutas caídas, que costumavam deixar o peito do em pé todo vermelho,

o inticar as galinhas,

a natação no milho envenenado?!?!

E por fim as lágrimas de saber que a despedida estava mais próxima que a chegada.

O sol já estava a se pôr, meu pai e meus tios tiravam um cochilo,

segundo eles, uma estratégia para curar o porre e pegar a estrada com segurança…

Os primos mais velhos continuavam a beber e contar vantagem, enquanto nós, de longe seguíamos colocando apelidos.

É hora de voltar,

o porta-malas repleto de frutas,

fatias de pão e queijo enroladas em um pano de prato para o lanche.

Entrava de vagar no carro, e quando batia a porta meu pai manobrava o carro e sempre buzinava como sinal de adeus.

Eu ficava de joelhos no banco de trás pelos primeiros quilômetros,

olhando cada detalhe que pudesse captar,

como se de alguma forma fazendo isso, a sensação de tristeza e saudade que apertava meu peito pudesse ir embora.

Por vezes exausto, dormia a maioria do caminho, e acordava na primeira lombada que meu pai sempre saltava na chegada da cidade.

Hoje vago solitário pelas lembranças marcantes que aquele tempo deixou em mim.

Tento lembrar cada detalhe dos dias de mato que faziam aquele menino envergonhado, introspectivo se sentir o dono do mundo por algumas horas.

E quando outrora um caminhão

carregado de porcos passa e todos tampam o nariz,

eu respiro bem fundo e tento lembrar dos planos que fazia para mudar o destino daqueles pequenos leitões,

quem sabe assim possa achar planos para mudar o meu.

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