Hábitos

Acordar sobre pedras deslizantes
Trabalhar colares de dados no pescoço
Beber água de cirurgia
Adoçar o café dos cães
Descascar cebolas com tesoura de cabeleireiro
Palitar os dentes com uma foto de feto
Quando a morte chega, a vida não passou de um susto
Hábitos
Confeccionar fogueiras de laranjas
Violar molduras em quadros brancos
Soletrar canções indigentes
Exibir medalhas de chumbo em colares de dados
Esculpir um mudo na Torre de Babel
Quando a morte chega, a vida não passou de um susto
Habito hábitos
Tragar
Estragar
Crivar a noite de insanidade embutida
Poetizar a incoerência de um pardal na poeira
Fiscalizar o estado do gelo
Espantar um espantalho com espelho
Óbito
Quando a morte chega, a vida não passou de um hábito

Gatázio

sou uma espécie de gato
destes que andam por aí
sem dono, sem rumo
sem ter para onde ir
destes que vez por outra
alguém se comove ao ver na chuva
e então leva pra casa
um gato que por uma ou duas noites
pode ser maravilhoso
até mostrar suas garras
e então você se livra dele
mandando de volta pra chuva
se for preciso
sou do tipo de gato
que chega sujo da noite
que já caiu de algumas janelas
que já brigou com alguns cachorros
que já perdeu algumas das sete vidas
daqueles que nunca comem
comida servida
um daqueles que por sorte
não caiu na castração social
sou um destes gatos
que apesar de toda tragédia
continua com todo brio
que um traste gato pode ter
ao andar por aí

Caso 0001113 (2º depoimento)

– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Está me ouvindo?
– Estou
– Sabe onde está?!
– Sei
– Sabe por quê?
– Sei
– Onde estava ontem?
– Aqui?!
– Antes daqui
– Matando o Cada
– Você não matou o Cada
– Não?!
– O que lembra de ontem?
– Travessas embutidas em um corpo de metal, risos efêmeros nas cascas dos ovos, a devassa sensação de absorver cianeto pelo rádio, longas planícies infestadas de carrapatos em cadeiras de rodas, luvas estendidas nos fios dos postes, coringas vendidos em trajes de festa, cimento carregado no bico do papagaio, velas acesas nos olhos das crianças, e por fim, um pedaço de papel de presente molhado no fundo do lixo.
– Jonas Bello, posso te chamar de Bili?
– Por que Bili?
– Seu apelido
– Por quê?
– Por conta da sua semelhança física com Billy Cativo, o último jogador de Damas ainda vivo
– Pode ser
– Bili?!
– Sim?!
– Consegue me ouvir?!
– Sim?!
– Encontramos uma carta em seu travesseiro hoje
– É?!
– Sim
– Qual naipe?
– Uma carta escrita, foi você?
– E agora?!
– Bili?!
– Sim?!
– O que lembra de hoje?
– Pequenos grãos vermelhos em manobras no globo da morte, peixes tatuando bigodes, manequins plantados de cabeça para baixo e regados com formol, arames farpados cercando o fogo, velório de um tigre japonês, fotografias dos monges consertando colchões com pé de cabra, por fim, uma frase de Oscar       
– Qual filme?
– Oscar, o poeta
– Qual frase?
– Que escolhe os amigos pela pupila. Mas eu escolho pelos ossos da face
– Bili?!
– Sim?!
– Já pode voltar a dormir

Caso 0001113

– Jonas Bello?!
– Sim?!
– O que você ouviu hoje?
– Eu ouvi o som dos animais em rotas de fuga, grama crescendo em telhados de vidro, a providência ejaculando em olhos de madeira, brigas pelo título de zelador das mansardas, sinetas que despertam flores no cemitério, o mistério de uma serpente de jaqueta, a quietude de um girassol no microondas, sonoridades das paredes rachando, um gambá dando de ombros para o arco-íris, e por fim, uma suave melodia nas trincheiras durante o veredicto das pulgas gêmeas.
– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Onde você ouviu tudo isso?
– No treinamento dos kamikazes, no sarau de poetas mudos, ao lado da cortina de vapor, embaixo da ópera de Wagner, nas rotas dos animais em fuga, sobre as pipas empinadas nos calabouços, no vazio das estrelas cadentes, em cima da poeira e embaixo do lagarto, por fim, nos jardins de areia na ampulheta.
– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Está me ouvindo?
– Sim?!
– Você tem apelido?
– Tenho
– Qual é?
– Bili
– Por quê?
– Por conta da minha semelhança física com Billy Cativo, o último jogador de Damas ainda vivo      
– Bili?!
– Sim?!
– Você sabe onde está?
– Sei?!
– Sabe o motivo?
– Sei?!
– Está aqui por tentar corromper o Cada
– Quando?
– Ontem

Primeiro relato do acusado: https://estrabismo.net/ramon/cada/
Em breve novidades do caso

Lógica

Desorientado por uma tontura súbita, um motorista consegue frear e parar o carro cerca de trinta centímetros antes de atropelar um transeunte atravessando na faixa de pedestres.  Com o susto, a esposa do motorista entra em choque, e perde o bebê no segundo mês de gestação.

Variáveis:

1 – O pedestre alcoolizado estava quase parado na metade da faixa, observando um belo traseiro exposto no outdoor do lado contrário de que vinha o carro.
2 – Até duas semanas antes do acontecido, a grávida cogitava sugerir ao seu marido um aborto.
3 – O motorista fazia esse caminho pela primeira vez, isso porque esqueceu de virar à esquerda três quadras antes.

Levando em consideração todo cenário, a questão é simples:
Por que ainda não comprou o livro “estrAbismo”?