Peça uma peça ( IV )

Personagem cruza os braços e se vira para a platéia, observando. No fundo do palco uma  transeunte tropeça e cai. O cadeirante chega rápido para ajudá-la a levantar, tudo isso em silêncio. Os dois saem do palco e o personagem continua observando a plateia, sem perceber o que aconteceu. Acende outro cigarro.  

Um senhor de boina e barba branca entra em cena e senta no lugar do adversário imaginário, também de frente pra plateia, coçando os tornozelos. O personagem para o relógio olhando para o senhor, mas nada fala.

– Devo estar com sarna – diz o senhor, coçando bastante os tornozelos por dentro das meias.

O personagem da uma tragada e se afoga com a fumaça, tossindo muito ao ponto de lacrimejar. Ambos, um se coçando sem parar e o outro tossindo sem parar virados para a plateia. O personagem sai do palco tossindo. O cadeirante entra e para ao lado da mesa.

– E aí coroa, comprar uma trimania hoje?

O senhor ainda se coçando e sem olhar pra trás:

– Quanto tá pagando?

– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios.

O senhor para de se coçar e se vira pro cadeirante.

– Qual valor?

– 10 pila.

O cadeirante começa gritar olhando pra trás, fazendo propaganda da loteria.

– Me vê duas.

– Escolhe ou escolho?

– Escolhe.

– Preenche ou preencho?

O senhor tira um documento da carteira e dá para o cadeirante sem falar nada.

O personagem volta tomando um caldo de cana e senta em sua posição.

– Comprar uma também amigo? Pergunta o cadeirante enquanto preenche os dados do senhor em uma prancheta no colo.

– Qual o prêmio? Pergunta o personagem.

– Um corolla mais 70 mil no quarto prêmio. 10, 11 e 13 mil nos primeiros sorteios – Responde o cadeirante ainda preenchendo os dados.

– Qual valor?

– Dez pila

– Me vê uma.

O cadeirante pergunta pro senhor os dados que faltam, como endereço e telefone. O senhor responde.

Peça uma peça ( III )

O personagem observa o morador saindo do palco. Recoloca as peças na posição original e para o relógio. Pega-o na mão, ajeita os tempos (demora um pouco pra conseguir) e devolve na mesa. Enquanto isso, no fundo do palco alguns turistas tiram fotos e riem. Falando em outra língua. Acende outro cigarro. Aciona o relógio para jogar contra si mesmo.

Jogando e falando com seu adversário imaginário ( a palavra Plic significa  a batida no relógio, logo após um lance no tabuleiro…e4 e c5 são anotações reais de xadrez).

1 – e4
Plic
1 – …c5
Plic
– Siciliana, ham?
Plic.
– É a melhor.
Plic.
– Concordo.

Mais lances em silêncio, apenas ouve-se o barulho do relógio sendo acionado a cada lance.

Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic.

– Fazia mais de dez anos que não jogava xadrez.
PLIC! Uma batida mais forte no relógio.

Personagem olha para o adversário imaginário com cara de desaprovação.

– Bate fraco no relógio!
Plic.
– Desculpa.
Plic.
– Por que parou de jogar?
– Virei motoboy.
– Mentira.
Plic.
– Verdade.
Plic.
– Poderia ter continuado paralelamente com o xadrez. Aliás, ainda joga muito bem pelo tempo parado.
Plic.
– Obrigado. Mas fiquei sem tempo pra estudar o jogo e perdi o tesão.
Plic.
– Perdeu o tesão e virou motoboy?
– Virei motoboy e perdi o tesão.
– Por que diabos virou motoboy então?
Plic.
– Salário. Recebia em torno de R$ 250,00 para competir. Me ofereceram R$ 550,00 pra entregar peças de automóveis e caminhões. O dinheiro encerra alguma carreira, ahn?!
– Que puto você. Quantos anos tinha?
– Dezoito.
Plic.
– Foi competidor por quanto tempo?
Plic.
– Comecei jogar com doze, e aos treze já viajava disputando torneios pelo estado. Agora fica quieto uns minutos, preciso pensar na próxima jogada.

Peça uma peça ( II )

Então o primeiro personagem chega e senta com um saco de peças e um relógio de xadrez

Coloca a caixa do relógio sobre a mesa e despeja as peças

Posiciona todas as peças brancas e pretas (ficando com as brancas), retira o relógio e coloca contra a platéia, escondendo o tempo…acende um cigarro  com fósforo (o primeiro apaga como o vento)

Voz de auto-falante quase inaudível anuncia venda de ovos caipiras, com música e galinhas cacarejando.

Uma loira de saia passa pela frente da mesa no palco, o personagem dá uma bela conferida na mulher, e nem percebe que o morador de rua sentou como adversário dele, também olhando para o rastro da loira.

Com os dois olhando para o mesmo lugar, o cadeirante passa em alta velocidade com a cadeira pela frente do palco em direção a loira, pra fora do palco, repetindo olhando para os dois  “Era melhor ter nascido rico do que bonito”

O personagem volta o olhar e percebe o morador de rua sentado em sua frente, com pose pensativa olhando para as peças do tabuleiro.

– Sabe jogar? Pergunta o personagem
– Só um segundo, tô pensando

Fuma e espera

– Não sei jogar, mas sei fumar, tem um cigarro aí?

Alcança o maço, o morador retira um e coloca atrás da orelha, retira outro e coloca atrás da outra orelha e por fim coloca um na boca e devolve o maço.

– Fogo?!
– Quer acender qual primeiro?

O morador tira o cigarro da boca e troca por um da orelha

– Esse

O personagem risca um fósforo e acende o cigarro

O morador da uma tragada e olha bem pro personagem e diz:

– Engraçado, você parece meu pai

O personagem apaga o cigarro no meio do tabuleiro deixando a bituca

– Em quê? Pergunta

 O morador pega a bituca apagada da uma olhada nela e guarda no bolso

– Ele também gostava de loiras
– Quem não gosta?!
– Minha mãe
– Nenhuma mulher gosta de loiras

(Visão de cima do tabuleiro é projetada no fundo do palco, para ver o que acontece em cima do tabuleiro, como em campeonatos mundias)

O morador pega a dama branca e derruba com ela a dama negra, o rei negro e um peão. Coloca a dama branca no mesmo lugar onde o cigarro foi apagado. Bate no relógio para fazer o tempo das brancas rodar.

– Como se chama? Pergunta o personagem
– João – responde o morador e sai andando pra fora do palco

(Projeção desligada).

Peça uma peça ( I )

Primeiro ato – Fotografia de um cotidiano vagabundo

Cenário: Mesa de concreto com 4 bancos no centro do palco com tabuleiro de xadrez (uma espécie de praça)

Passam alguns transeuntes atrás da mesa conversando baixo (fundo do palco) e um cadeirante pela frente anunciando em bom som a trimania (loteria)…um cachorro, alguns pombos (ver possibilidade). Palco vazio.

Um morador de rua senta, escorra um cotovelo na mesa, observa um pouco a movimentação, o cadeirante fora de cena dá um grito (anunciando a trimania), que faz o morador de rua dobrar o pescoço pra ver o que acontece fora do palco…resmunga baixo, olha pro tabuleiro sem peças e faz um lance imaginário, coloca a mão no queixo como um jogador profissional, sem tirar o olho do tabuleiro…levanta e senta como se fosse o adversário, pensativo no lance, mãos na cabeça, olha para o adversário com olhar desafiador, coça a barba inexistente e faz outro lance imaginário, cruza os braços. Morador diz:

– Te conheço de algum lugar

Levanta e senta no outro banco de concreto, com outra pose, pensando na frase

– Engraçado, você parece meu pai ( com uma voz totalmente diferente)

Vai pro outro lugar

– Você parece meu filho

Faz a outra voz e outra pose mas permanece no mesmo banco

– Qual o nome do seu filho?

Muda voz e pose

– João. Qual o nome do seu pai?

Vai pro outro banco.

– João

Faz outro lance imaginário e sai andando pra fora do palco.

Cadeirante passa calado pelo fundo do palco