Peça uma peça ( XXVI )

Vander  

– Quem era esse maninha? 

Salete

– Um dos grandes do banco.

Vander

– Opa. Deve estar recheado.

Salete

– Tomara.

Narradora para a plateia

Vander deu uns passos para tentar chegar à carteira do defunto sem se sujar, pisando aos poucos. Salete olhava, brilho nos olhos, abertos como um sinal verde. Outra formiga transitava freneticamente, já tinha visto uns cinco mortos por ali naquela semana, com glicoses altas e baixas, sentia vontade de nadar e nadar, morrer afogada num oceano doce e diabético.   

Narradora acompanha a cena curiosa.

Salete

– Que sujeira dos infernos, creio que acertou o coração desse cara.

Vander

– Existe algum livro afirmando que os negros têm mais sangue que os outros?

Salete

– Não, só pau.

Vander

– Ainda bem que morreu de costas. Achei a carteira!

Narradora

Vander pega a carteira e depois, curioso, levanta o morto para tentar conferir o tamanho do pênis.

Vander olha para a narradora desaprovando a sugestão de mexer no corpo (boneco). Narradora confirma positivamente com a cabeça. Vander olha para Salete que não sabe o que dizer. Vander pega a carteira e a contragosto ergue o corpo (boneco) com uma mão até acima de sua cabeça, conferindo o instrumento do boneco e mostrando para a narradora. Vander recoloca o boneco no chão.

Os dois voltam para a cama e sentam. Vander abre o zíper, tira as notas e começa contar, enquanto Salete tira um documento do homem da carteira. Narradora só observa.

Vander

– Estamos ricos Salete! Tem mais de mil reais aqui!

Salete em choque

– O filho da puta mentiu o nome! Olha só, me disse que era Paulo Henrique e se chamava Romildo. O desgraçado acabou com minha fantasia!

Vander

– Relaxa mana. Olha só quanto dinheiro!

Salete atordoada fora de si

– Pro inferno.

Salete levanta com a arma e vai até perto do morto. Dispara mais três tiros no corpo parado (barulho de disparos). E vagarosamente vai apontando a arma para a narradora. Salete atira muitas vezes contra a narradora (sons de gatilho apertado sem munição). O revólver não tem mais balas.

Vander

– Sua psicótica de araque.

Salete um pouco conformada, depois de abaixar a arma

– Vamos cortar ele em pedaços logo. Não gosto mais dele.

Vander

– Mil e trezentos reais! Aleluia! Aquele frentista de ontem tinha só cinqüenta.

Salete

– Pelo menos o frentista não mentiu pra mim.

Som de campainha, os três olham surpreendidos para o mesmo lado. Narradora gesticula com os braços pedindo alguma informação, mas nenhum dos dois faz idéia de quem seja. Narradora ainda com gestos, manda Salete pra cama e avisa que vai dar uma olhada quem é.

Som de campainha. Narradora sai do palco.

Som de porta abrindo.

Peça uma peça ( XXV )

Vander dá um tiro pra cima e ri, indo em direção ao centro do palco. Narradora, vai até a cama e começa falar com Salete, que parece não dar muita atenção.

Vander ainda rindo mira as pessoas da plateia com a arma e dispara com a boca: POW! POW! POW!

Fala coisas do tipo “Tudo bem neném?”

Vander começa sua fala, com expressão sorridente e sádica

– Falar, falar, falar (Com pausas entre as palavras)

“Tudo bem?” é a coisa mais estúpida. Ninguém está bem. “Sim, tudo bem” é a coisa mais mesquinha. Quando digo “Tudo bem?”, não quero saber se está bem. Lembre-se disso. Se não for minha mãe ou minha mulher, acredite, não ligo, nem você. A não ser que eu descubra sua malícia pro lado da minha mãe ou que anda fodendo minha mulher, aí seu “Sim, tudo bem” pode ser o último. Quanta besteira, minha mãe é virgem, esse é o clichê da minha infância. Minha mulher não daria pra você, ela também é virgem desde os trinta anos, hoje tem vinte e não quer dar pra mim. O máximo que consegui foi um beijo, não de língua, na fenda. Juro que senti eletricidade lá capaz de iluminar Tóquio. Fiz até cálculos físicos e cheguei à conclusão que sua urina manteria acesas três lâmpadas de 60 watts por treze minutos. Se duvidar traga as lâmpadas e um penico. “Não duvide dos meus cálculos, tudo bem?!” Sou estúpido. “Sim, tudo bem”, você é mesquinho. “Tá de olho em minha mãe?”, “Mas é claro, sou seu pai”, “Trouxe as lâmpadas e o penico?”, “Estão comigo”, “Siga-me”.  Falar, falar, falar. “Qual seu nome?”, “Pinto Mole e o seu?”, “Mole Pinto, xará”. “Legal, tem apelido?”, “Fimose, e o seu?”, “Cancro mole”, “Isso significa que seu primeiro nome faz parte do seu apelido e meu segundo nome também”, “Sim, fimose”, “Não me chame de fimose Mole Pinto”, “Por favor, me chame de cancro mole”, “Me desculpe cancro mole”, “Deixa disso Pinto Mole, somos amigos”. Falar, falar, falar. “Como anda a família?”, “Não andam mais. Somente voam”, “Quanta esperteza”, “Realmente. Somente eu não voo”, “E por que não?”, “Não tenho asas”, “Que situação, hein?!”, “Verdade. E sua família, como vai?”, “Não vai mais. Só vem”, “Mas vem de onde se não vai?”, “Vem do vem”, “Interessante. Você vai ou vem?”, “Vou”, “Pra onde?”, “Pro vem”, “Então vai logo”, “Sim, vou”, “Você disse vou ou voo?”, “Eu disse vou”, “A bom. Pensei que estivesse tirando sarro da minha família”. Falar, falar, falar. “Acredita em Deus?”, “Dizem que Deus está em cada um de nós, pois bem, então é conveniente que cada um tenha sua própria relação com o seu. Religiões querem padronizar o espírito humano”, “Então quer dizer que acredita?!”, “No meu não. E você acredita?”, “Como posso acreditar se o meu me deve vinte paus”, “Cretino”, “Sempre as mesmas desculpas. O eclipse inflacionou, manutenções na Lua, o Sol e suas horas extras, trocar peças na Terra, os carcereiros do diabo…enfim, acho que posso esquecer a dívida”, “Tentou negociar por uns anos a mais vivo?”, “Tentei, mas ele disse que não passo do dia quinze de março desse ano”, “Eita. Que dia é hoje?”, “Quinze de março”, “Puta que pariu. Há quanto tempo lhe deve a grana?”, “Pediu ontem”. Falar, falar, falar. “Viu só quem o Carlão tá traçando????”, “Quem?”, “A Rita!!!!”, “Quem é Rita?”, “Sua mulher, idiota!!”, “Minha mulher não se chama Rita”, “Não?!”, “Não. Chama-se Alfredo”, “Alfredo?!”, “Exato. Minha filha Alfredo Jr. e meu filho Carmem”, “Para com isso Felício”, “Meu nome é Suzana”, “Suzana?!”, “Exato Rui”, “Meu nome é Samanta”. Falar, falar, falar. “Vai fazer o que amanhã?”, “Pretendo comprar uma tesoura e me castrar. E você?”, “Quero comprar uma tesoura e cortar as unhas”, “Que nada, usa a minha”. Falar, falar. “Assistiu o filme ontem?”, “Só o começo e você?”, “Só o final”, “Viu a hora que o pai supostamente vende a filha? Inacreditável”, “Não. Viu a parte do aborto? Te falar, nojento”, “Não vi. E quando o policial chorou porque matou o cara errado? Minha nossa, quase chorei”, “Baaaa, não vi. E aquela velha na cadeira de rodas que se jogou da ponte? Sinistro”, “Perdi essa parte. Me diz uma coisa, eles conseguem explodir o trem?”,“Qual trem?”, “Do começo”, “Não vi o começo”, “Putz, o plano principal era explodir o trem”, “Devem ter explodido então. No final o extraterrestre salva a garotinha da usina nuclear”, “Enfiaram extraterrestres no filme? Que loucura!”, “Qual era o nome do filme? Quero assistir desde o começo”, “Não lembro. Já era tarde, estava morrendo de sono por isso só consegui ver o começo”, “Que coisa de velho dormir às dez da noite”, “Dez nada, já era três da manhã”. Falar. “Tá namorando?”, “Sim e você?”, “Também”, “Quer matar minha namorada?”, “Quero matar a minha”, “Podemos trocar de namoradas, aí você mata a sua”, “Se trocarmos de namoradas, então posso matar a sua com muito prazer”,“Que sacanagem trocarmos de namoradas e você matar a minha”, “Sacanagem é você sugerir trocarmos de namoradas para eu matar a minha”, “Acho justo trocarmos de namoradas e cada um mata a sua”, “Fechado. Qual o nome da sua?”, “Maribel e da sua?”, “Também”.

Vander percebe que o morto está lhe chamando discretamente. Meio embaraçado, vai até ele e se abaixa, coloca o ouvido bem perto da boca dele, fazem alguns gestos como se discordassem de alguma coisa. Vander levanta e vai até a narradora e parece explicar alguma coisa. A narradora vem até o morto e se abaixa para ouvir o que ele tem a dizer. Também discordam, e a narradora começa expulsar o morto do palco, que a princípio recusa sair, mas é convencido pela narradora (tudo isso em sussurros, ninguém sabe o que está acontecendo). O morto e a narradora saem do palco ainda em discórdia, e logo a narradora volta pro palco com um boneco idêntico ao morto (nu, cabelo, barba). Ela o coloca na mesma posição no chão (coloca uma carteira ao seu lado e as mesmas roupas que antes já estavam com o morto). E a cena vai recomeçar. Narradora vai até Salete e Vander que estão sentados na cama e parece dar umas instruções. Volta para fora do quarto, seu lugar habitual e faz um positivo para ambos. Os dois recomeçam a rir loucamente e se levantam da cama.

Peça uma peça ( XXIV )

Narradora com a cara um pouco preocupada e voz minimamente trêmula  

Um quarto perfumado e adocicado pelas tramas sexuais e viscerais, cativante entre ambos, acostumados àquele mar azedo e fabuloso de mantras sórdidos. O sangue quente deslizava do corpo frio e duro como um cofre, derramando mais uma lata de vermelho tinto. Simples assim para Salete, uma ruiva envenenada, traumatizada com um mundo tão paralelo ao seu. Desde sempre fora aniquilada, e agora usava de todo seu corpo robusto para satisfazer seus instintos ferinos e mordazes. Fazia uma bela dupla com seu irmão Vander, um ladrão e assassino de primeira, extremamente eficaz, só sabia fazer isso, e no mais, orgulhava-se por soltar peidos bonitos, elegantes, sonetos de lua cheia.     

Salete sai do quarto em direção à plateia, desvia do corpo no chão e empurra de leve a narradora. Vander deita-se na cama olhando para o teto.

Salete desfilando na frente da plateia, sensual, olhar desafiador, cumprimenta, provoca alguns com piscadas de olhos.

– Meu nome é Salete, mas não se apaixonem por mim. Suguem o máximo que puderem, e eu serei grata por poder culpá-los das minhas culpas. É sempre um dia de fúria, as emoções saem do compasso e o menor detalhe causa estrago. Sou apenas falsidade, a mesma que comprei. Os resultados são sempre os mesmos, apenas mudam as equações. Explorei os limites da minha essência e ativei meu poder de autodestruição, é complicado quando o pior se torna aceitável. Particularmente falando, prefiro ser acomodada querendo ficar longe das burocracias do ser, do que inconformada e precisar provar todo dia a sensação de estar perdida. Aprendendo a chorar eu aprendi a sorrir, e hoje muito mais que isso, lutei com o tempo e fui esmagada ao ponto de não sentir mais o gosto salgado das lágrimas. Depois de cumprir meu dever, irei passear nas lembranças que me ajudam a recuperar os sentimentos de ódio e de amor. Estou cansada de fugir das poucas coisas que me alegram. Ando rindo das mesmas piadas que um dia ainda quero ouvir, afastando a imortalidade em minha direção. Procuro não ser rigorosa, mas chega uma hora em que falar sozinha perde a graça. A evolução é uma arte que desconheço. Quando estou parada estou a mil por hora, sou quase um beija-flor jovem e rápido, mas com a carcaça de um urubu podre. Uma loucura interminável, um sentimento que foi guardado no silêncio das minhas decisões.

A narradora faz um sinal chamando Vander, que pega a arma e vem em sua direção. Os dois ficam conversando (em silêncio), parecem estar falando sobre qualquer coisa, ora sobre o morto, ora flertando, ora ouvindo Salete.

Salete prossegue

– O que acho de vocês? Sentem-se exaustos, mas tudo bem. São levados pela fantasia, carregados de insegurança e traídos pela bondade. São honestos demais para viverem suas vidas. Podem me achar uma palhaça sem graça. Exijo verdade até das suas borboletas de estimação. Porcos! (Cospe no chão) São ratos e reis encenando uma peça, sem ensaios, cheia de erros, propósitos, boas e más intenções. O POVO É COMO UMA PROSTITUTA QUE NOS DIAS DE FOLGA OCUPA-SE FODENDO DE GRAÇA!  

Salete com a voz serena

– Gostaria de me virar do avesso e enxergar as cores do meu corpo misturadas com os efeitos da minha alma formando um arco-íris preto e branco. Por que isso? Para apalpar o que destruo sem as mãos. Meu nome é Salete, mas não se apaixonem por mim. Mostrem-me o começo e eu acabarei com o infinito. 

Salete se volta pro quarto bem devagar, desvia do corpo no chão. Empurra a narradora não com muita força, dá um beijo na boca de Vander e volta pra cama.

Peça uma peça ( XXIII )

Narradora para a plateia

Nesse instante as portas do guarda-roupas se abrem, se arregaçam, e um homem negro oportunista pula de dentro com as roupas nas mãos, dando início a um pique velocista em direção à porta do quarto, para, em sua cabeça, alcançar a porta da cozinha, pular um muro de dois metros, e correr nu por uns trinta minutos até sua casa, e nunca mais arriscaria comer alguém, quem sabe até viraria padre, ajudaria os necessitados com todo seu dinheiro guardado, largaria sua profissão entediante, seria uma alma pura, ligaria para a mãe, iria até o túmulo de seu pai, deixaria rosas e sorrisos arrependidos. Os órfãos! Claro! Se tudo desse certo, a partir daquele dia, um novo santo seria canonizado por entre as terras marginais.

Narradora se volta pra cena.

Homem pula do guarda-roupas, iniciando uma corrida para fora do quarto em direção à plateia. Vander mira e da dois tiros nas costas do homem que cai morto.   

A narradora se joga no chão.

Vander e Salete se jogam de costas em cima da cama gargalhando. Rolando nos lençóis, sem pararem de rir.

Vander em meio as gargalhadas

– Eu falei que ele ia cair nessa!!!

Salete

– Porra Vander! Tu é o melhor ator do mundo!

Ambos continuam rindo e secam as lágrimas com os lençóis.

Narradora vai até o homem e constata que está morto. Volta ao seu lugar, olhando só com um olho o que acontece no quarto.

Vander

– Viu a carinha dele Salete?

Salete

– Coitadinho. Depois de trepar por meia hora, ainda tinha fôlego pra correr uma maratona.

Ambos gargalham novamente.

Salete

– Vander, nossas dramatizações estão ficando cada vez melhores!

Vander

– É tão engraçado ver um pinguinho de esperança quando se sabe que não existe.

Salete

– Eu gosto de sexo, você de matar se divertindo. Hoje pensei que não viria mais! A verdade é que ele era muito bom de pica. Só por hoje queria que demorasse mais uma meia hora. Por Deus, quase desisti de matá-lo.

Vander

– Sempre matarei os que comem minha irmãzinha.

Salete

– Você me comeu.

Vander

– Mas não me diverti. A diversão é a porra dos loucos.

Salete acende um cigarro, Vander coloca a arma em cima da cama e vai até a janela dar uma olhada.

Peça uma peça ( XXII )

Vander se voltando para Salete     

– Você é uma maldita puta com poderes de perícia forense!

Salete retruca

– Seu canalha desprezível!

Vander vai em direção a penteadeira.

Narradora

Sobre a penteadeira, algo lhe chamou atenção. Um batom rosa pálido, a mesma cor de um cu de gato, caído, somente ele, ao redor de outros tantos perfumes e cremes. Aproximou-se e o filme todo fixou em sua cabeça pesada e um tanto alta. Pensava: “Foi aqui, no meu móvel cor marfim, ela se firmou com as mãos, ele veio por trás e enterrou nela. Os seios balançaram, a penteadeira balançou, o batom e o quarto balançaram, as nuvens espetadas por mim. Filhos da puta!”

Vander grita

–  FOI AQUI!!

Narradora se assusta e olha pro quarto

Salete com toda paciência

– Foi aí o quê? Seu maluco.

Vander

– Não sou maluco! Sou chifrudo!

Salete

– Sim. Há dez anos você é chifrudo, né?! Há dez anos você entra nesse quarto, com essa mesma arma, e nunca acha nada, não é?!

Vander

– Você zomba de mim! Cretina!

Salete

– Por que você não vem aqui e cheira minha buceta então?

Vander

– E desde quando buceta tem outro cheiro? Sua fodida!!

Salete

– Eu te amo Vander! Há dez anos eu aguento essa tua maluquice porque te amo! Senta aqui do meu lado.

Vander senta ao lado dela

Vander

– Você me ama Salete?

Salete

– É claro seu bobo.

Vander

– Eu também te amo Salete, veja, nem carregada está essa arma.

Vander mostra e balança a arma para Salete que coloca a cabeça em seu ombro.

Peça uma peça ( XXI )

Terceiro ato  – Fúria em pedaços

Cenário – um quarto no centro do palco, bem mobiliado. Uma narradora fica ao lado do quarto narrando para a plateia e vendo os acontecimentos.

Personagens – Vander, Salete e narradora que reage aos acontecimentos.

Luzes se acendem com narradora virada para plateia e Salete sentada na cama.

Narradora

Vander abriu a porta bruscamente, com um revólver em punho, e viu Salete sentada em um canto da cama, só de calcinha e sutiã, fumando um cigarro, com as pernas cruzadas.

Narradora se volta para a cena.

Vander entra no quarto ofegante, com passos leves.

Vander

– Hoje eu pego ele, sua puta!

Salete

– Do que você está falando, seu animal?

Salete descruza as pernas e traga o cigarro

Vander

– Fica quieta!

Vander vai andando pelo quarto de mansinho

Narradora voltando atenção para à plateia

Ele deu uma olhada por todo quarto, e foi se aproximando da cama calmamente. Procurou alguma marca marrom, vermelha ou gosmenta nos lençóis brancos amassados, deu uma cheirada, mas o odor era tranquilamente agradável, vestígios latentes. Ela continuava tragando, com a paciência dos lagartos no inverno.

Narradora volta a olhar para a cena.

Vander mexe nos lençóis, cheira, revira novamente. Salete observa-o

Vander

– Não foi na cama né, sua piranha! Onde vocês treparam?

Salete

– Vai te foder!

Narradora continuando olhando para a cena, meio curiosa, tentando enxergar melhor o que acontecia

Vander analisava o ambiente, mas não encontrava nada suspeito. O quarto era enorme, talvez eles tivessem transado em pé, sem encostar em nada. Resvalou os olhos pro chão, como quem procura moedas, mas nada, nem marcas, nem pegadas, nem um mínimo fluído, somente uma formiga atordoada e medrosa.

Vander se abaixa, cutuca a suposta formiga com o cano do revólver. Levanta e vai até a janela aberta, mete a cara pra fora e olha para os dois lados. A narradora entra no quarto, se abaixa e pega a suposta formiga e leva-a para fora do quarto, abaixando-se e soltando-a em segurança. Narradora volta a olhar para a cena.

Peça uma peça ( XX )

Novamente, após alguns instantes, as luzes são acesas com as cortinas fechadas para a montagem do terceiro cenário.  

Barulho de porta abrindo e passos apressados na escada.

Barulho de porta fechada com violência.

Personagem que jogou xadrez no primeiro ato, aparece pelo lado do palco na frente das cortinas, andando de costas para à plateia, com a mesma roupa, assustado, parece espiar algo, até que se surpreende e sai correndo para o meio da plateia, se escondendo entre ela. Nesse momento surge a mulher (a mesma da voz do início do segundo ato) com uma faca na mão, pelo mesmo lugar de onde saiu o personagem escondido. Ela vai se dirigindo para o meio do palco, observando a plateia, procurando seu suposto marido que ainda está infiltrado entre o público. Ela esbraveja: “Eu te acho vagabundo, pensa que não te vi jogando xadrez na praça? Não ia procurar emprego, seu safado??”. Personagem responde: “Eu procurei, parei na praça para ensinar uma criança jogar, oras, qual o problema?”. O bêbado, de alguma forma aparece perto do personagem e pergunta com sua voz enrolada: “Amigo, onde fica essa praça que ela tá falando?”. Personagem responde com raiva: “Fica quieto!”. A mulher percebe onde está seu marido e grita: “Eu te mato!”. O personagem sai correndo pela entrada do teatro, a mulher sai correndo atrás dele, e o bêbado sai junto, cambaleando.    

Peça uma peça ( XIX )

No terceiro dia eu tinha certeza que era 7:45 da manhã, enquanto carregava um cigarro na mão direita, pensava e ia a passos apressados  com minhas pernas longas ao trabalho. Chamou-me atenção um acidente envolvendo uma kombi branca e uma bicicleta na avenida. Aparentemente ninguém se feriu. A ciclista conferia os estragos da bicicleta parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, justamente onde o motorista avaliava a kombi estacionada. A lei não permite parar ali. Na kombi não aconteceu nada, nem arranhão. Pelo que consegui ver, os pneus da bicicleta estavam vazios, as espias dos freios desconectadas e as marchas todas trocadas. A ciclista abriu sua bolsa, retirou uma garrafa e deu um gole na água, ao que me viu passando.

– Quer comprar? Ela me perguntou rindo, apontando para a bicicleta.
– Hoje não – respondi.
– O cigarro mata – ela disse.
– Assim como as kombis.

Segui em linha reta na calçada que delimita a entrada no matagal. Um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos fez sinais que sugeriam para eu ouvi-lo.

– O que aconteceu ali? Perguntou.
– Nada demais – respondi.
– Sabe de alguém que queira comprar um terno? Tenho um aqui na mochila pra vender.
– Aquele motorista da kombi branca – eu disse.
– Vou falar com ele. Agradeceu a informação e recolocou os fones de ouvido.

Logo atrás do homem vinha uma velhinha sorrindo, segurando um pote cheio de terra com um girassol plantado nele. Não perdi tempo, velhos morrem facilmente. Fui em direção a ela esboçando um sorriso cativante e terno ao mesmo tempo. Queria passar essa combinação. Ela parou e sorriu mais ainda, mas era uma combinação que não consegui decifrar.

– Quer vender o girassol?
– Quero – ela respondeu e mudou a combinação do sorriso. Aquilo não me atrapalhava.
– Quanto a senhora quer por ele?
– R$ 50,00.
– Antes me diga uma coisa. Esse girassol gira mais rápido na calçada ou no mato?
– Conforme o Sol.
– E quando chove?
– Na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Gira mais rápido no mato.
– E quando chove no mato?
– Gira mais rápido na calçada.
– Entendi. Faremos uma aposta. Colocaremos esse girassol aqui na calçada e depois ali no mato. Quem adivinhar em qual dos lugares ele gira mais rápido fica com ele.
– Mas ele já é meu. Eu não ganho nada com essa aposta – a velha relutou. 
– Se eu perder, lhe pago os R$ 50,00 e a senhora pode ficar com a planta. Se eu ganhar, lhe pago os R$ 50,00 e fico com ele.
– Mas você não estaria ganhando nada com essa aposta – a velha disse. R$ 50,00 é o valor que quero dele agora. Paga, pega e depois você compara onde gira mais rápido.
– Dou R$ 30,00 se eu vencer a aposta.
– Assim sim – ela consentiu. – Parece justo. 

Primeiro deixamos na calçada. Ela cronometrou em seu relógio minúsculo do pulso esquerdo. Eu deveria ter tentando comprar o relógio. O negócio do girassol estava complicando minha imaginação.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata, ou uma trilha, tanto faz. Já era quase 8:00, tinha que acabar logo com aquilo, estava atrasado. Havia perdido muito tempo com a kombi, a ciclista e o homem de terno. Acelerei todo o processo e ao dar o primeiro gole no café, exatamente 8:01, a velha jazia morta com o girassol plantado na boca, girando à procura do Sol.

Personagem fecha os olhos. vai até a cama, senta, pega o caderno e dita o que escreve de lápis:

Recomeçar do zero a cada três dias.    

A lâmpada começa piscar sem parar, o personagem encara-a, até ela apagar completamente.

Luzes do palco se apagam. É possível ouvir ruídos de um choro de mulher.

Passos na escada, a porta abre e se fecha.

Fim do segundo ato

Peça uma peça ( XVIII )

Personagem se mostra satisfeito com a situação, vibra por seu ato descrito. Vai até a porta da quitinete calmamente e cola um ouvido nela. Barulho de gatos brigando. Personagem fica ouvindo até os sons pararem. Vai até a garrafa de vinho e bebe uns goles, depois pega seu caderno em cima da cama e escreve um pouco com um lápis. Folhei-a páginas, e de costas para a plateia começa a ler o seguinte texto (aos poucos vai caminhando pelo palco):

Carta ao suicídio
Caro confidente
Escrevo-lhe a partir daquela cautela exacerbada citada na última carta
Embora pareça que não pensei em você nos últimos meses
Ressalto, com minhas mais sinceras palavras
Que nunca estivemos em maior sintonia
Deixe-me contar algumas novidades
Antes que eu esqueça, sim, ainda sofro com sorrisos
No último contato não fui bem claro, até porque, imaginei-o também rindo da situação
Senti-me coagido pelo nível três, seu vizinho de porta
Mas quero esclarecer tais notas, antes das novidades
Pode não acreditar, porém, as mulheres têm sido ainda mais demonstrativas
Lembra daquela lésbica com fones nos ouvidos de quem falei?
Pois é, nunca mais a vi, e mesmo assim sua boca suspeita e aberta ainda me confronta
Sei que parece loucura não esquecer aquele riso
Mas permita-me salientar uma coisa
Foi na minha cara!
Por seis segundos
Sem contato visual, entretanto, o que mudaria?
Nada! Ela me deve explicações
Blá, blá, blá pra você também
Amigo, as mulheres estão me mostrando os dentes diariamente
Sei, sei, sei que tudo isso lhe parece estúpido
Não, não estão flertando, eu conheço um flerte
Esse conluio feminino me pegou desprevenido
Uma gordinha pálida e sem escrúpulos faz parte
E quer saber o pior, a vejo quase todas as manhãs
Imagino que trabalha aqui perto
É uma tortura, nunca mais olhei-a nos olhos
Ela me assusta
Pra finalizar esse assunto de mulheres
Rosana acha que sou assassino
Rosana trabalha no mesmo prédio que eu
Nunca falei com ela
Mas notei que deixou de ir ao banheiro quando bebo água
Como posso não ter razão? O bebedouro fica ao lado da porta!
Laura do supermercado me deu “Bom dia” com a voz baixa e depois riu brevemente
Percebi a maldade correndo pelas artérias dos olhos
Ahhh, mas nada comparado ao que Lúcia do mesmo supermercado fez
Perguntou-me se eu não gostaria de ter um cartão fidelidade para adquirir descontos!!
Impressionante não?!
Chega de mulheres, vamos às novidades
Fui estuprado enquanto dormia
Ora, não percebi porque estava bêbado!
Quatro vezes!!
Claro que não lembro, mas acordei em casa todas as vezes
Em três ocasiões não sei quem foi, na última foi um amigo
Que amigo ahn?
Não tenho provas, nas três primeiras vezes tenho certeza que foi alguém com uma cópia  da chave da casa, o antigo morador quem sabe?
Fui ver o preço de uma fechadura nova, mas decidi que pegaria o cara
Então montei uma armadilha na porta com duas garrafas de vinho e um banco
Fazem seis meses que aguardo o desgraçado tentar abrir a porta
Não preciso de provas! Afinal acordei sem cueca nas três vezes!
Na primeira vez estava no banheiro ao lado do papel higiênico
Na segunda sobre a pia da cozinha, e na terceira no lixo
Maldito doente!!
Meu amigo ao menos teve a decência de me vestir depois
Mais novidades?
Estão atirando pedras na minha sacada
Não falei pra ninguém, mas acho que isso tem a ver com os estupros
Assim como um pedaço de guardanapo que encontrei dentro do tênis
Quer mais provas que isso?
Tem sim!
Na última vez que peguei o ônibus um homem estranho disse me conhecer do trabalho
Jesus, era o antigo morador!
Estive tão perto dele, não sei como consegui perdê-lo
Não fui mais de ônibus trabalhar
Fiquei com medo de adquirir a síndrome de Estocolmo
Mas estou de olho
Bom, no mais, minha mulher me deixou por achar que bebo demais
Disse que crio teorias demasiadamente
Só porque tenho um histórico familiar de alcoolismo e hipocondria
Pode isso?
Queria que eu acreditasse em Deus e em todas suas baboseiras
Não sou tão ingênuo
Minha saúde continua a mesma, um câncer por dia, uma cura por dia
Analisei um catarro preto meu por vinte minutos
Nada de sangue!
Estou ótimo! Concorda?
Desculpe a demora, andei ocupado
Espero lhe encontrar o mais breve possível
Será um dia especial

Atira o caderno e o lápis sobre a cama e volta para continuar seu monólogo.  

Peça uma peça ( XVII )

Já na outra manhã tive êxito em matar. 7:45, um cigarro na mão direita, pensamentos e passos apressados com minhas pernas longas. Vindo em minha direção na calçada que delimita a entrada no matagal, há uns vinte metros, um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos. Uma moça de bicicleta estava parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, procurando algo em sua bolsa. Ouvi um barulho alto de motor passando, era uma kombi branca. Vi que a moça retirou uma água da bolsa e dava goles desesperados. Parei perto dela e perguntei:

– Quer vender a bicicleta?

Ela engoliu o que tinha na boca e disse:

– Não. Tem um cigarro sobrando?
– É o último – respondi.

Ela foi e eu fui. Ao me aproximar do homem de terno fiz um sinal que sugeria tirar os fones e me ouvir:

– Quer vender o terno? Perguntei.
– Quero – ele respondeu.   
– Quanto você quer por ele?
– R$ 350,00.
– Me diz uma coisa. Se eu cair com esse terno aqui na calçada ou dentro do mato, vai rasgar?
– Depende. Quanto você pesa?
– 82 quilos. Perdi um quilo essa noite.
– Esse terno aguenta uma queda na calçada sem danificar vestido numa pessoa de até 95 quilos. No mato até 87 quilos não rasga.
– E se eu engordar seis quilos?
– Melhor cair na calçada.
– E se eu engordar quatorze quilos?
– Não caia mais.
– Costumo cair vestindo terno mais no mato. Quero testar antes de comprar. Posso vestir e cair aqui ao lado?
– Claro.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata. Ofereci um cigarro.

– Não fumo – ele disse.

 Três minutos pela trilha até pararmos. Vesti o terno que usava enquanto ele retirou da mochila outro terno e o vestiu também.

– Quer vender esse terno? Perguntei. Gostei mais desse que está usando agora.
– Esse não vendo.
– Por quê?
– Pois sua capacidade/quilo de não danificar em uma queda na calçada ou no mato é maior.
– Qual exatamente?
– Na calçada 110 quilos. No mato até 97 quilos.
– E como você sabe dessas capacidades/quilos dos ternos?
– Acho que li na garantia.
– E se por acaso um cachorro me morder? Vai rasgar?
– Te morder na calçada ou no mato?
– Na calçada.
– Vai depender do peso do animal.
– E no mato?
– Qual mato?
– Nesse.
– Nesse não vai rasgar.
– Entendi – falei. Mas não entendi. – Agora vou testar o terno.

Dei uns dez passos para trás enquanto ele observava.

– Vou fingir que corro de um cachorro em um daqueles matos, que segundo você, a mordida acabaria com minha roupa. Quando eu chegar perto de você me jogarei no chão simulando um tombo. Se não rasgar lhe pago R$ 400,00. Se rasgar, lhe pago R$ 350,00 independente do estado que ficar.
– Amigo, você não estaria ganhando nada com essa proposta – ele disse. R$ 350,00 é o valor que quero dele, assim como está.
– Mas terei uma boa ideia da velocidade que posso alcançar fugindo de um cachorro, sem riscos. 
– Fechado então – ele disse.

Disparei em alta velocidade nos dez passos de distancia dele, e ao invés de simular um tombo, acertei-lhe um soco direto na cara. O desgraçado saiu rolando na trilha, desmaiado, e só parou quando seu corpo mole esbarrou em uma árvore. Senti vontade de mijar e fiz isso na cara dele. Nem reagiu. Balancei o pau e umas gotas ainda caíram sobre seus olhos. Percebi um pequeno rasgo em seu terno, além de um botão danificado. Ainda bem que tinha garantia. Bati sua cabeça na árvore até abrir uma fenda larga na testa. Deixei-o com seus dois ternos e fui trabalhar. Cheguei ás 8:00 em ponto, sem sangue nas mãos. Bebi um bom café.