Mais breve que o céu

Estirado como um tapete da porta da frente
Aqueles de frases: “Bem-vindo” ou “Limpe os pés”
Personalizados com qualquer que seja a mensagem
Ou intenção, por trás de um objeto imóvel naturalmente
Que quase sempre está com uma ponta dobrada
Por alguém que tropeçou e nem teve o cuidado de desdobrar
Ao chegar à porta  
Ou simplesmente fora virado em partes, pelo vento
Ou por um animal curioso, fustigado e sem memórias
Um tapete duro e muitas vezes sem apresentar sua cor primária
Assim permanece o homem estirado
Não na porta da frente
Algumas analogias como:
Não sentir-se bem-vindo, muito menos limpo ou sem brilho
Até sinalizam um pouco suas lembranças
Mas isso nada tem a ver com sua posição atual
Em algum local que não convém agora revelar
Encontra-se possível e cheio de vislumbres
Embora mantenha em suas mãos um pedaço de papel
Que o conteúdo também não convém revelar nesse momento
Articulando-se capacitado e febril nos movimentos
Desdobra-se pelo chão, fustigado pelas nuances
Desliza como lesma com sal nas ancas
Prevê que precisa levantar o quanto antes já imaginara
E levanta
Estupefato pela energia que suspeitava ter perdido
Positivo, esboça uma corrida até a porta da frente
Abre-a com cuidado, e em cima de seu tapete
Personalizado com a seguinte frase: “Vim do futuro e não existo”
Revela-se uma pequena folha cinza grudada
Cheia de pequenos buracos
É domingo, e as sonoridades pra fora da porta
São as mesmas de qualquer outro dia
Observa seu vizinho ao longe
Indo em direção ao único mercado aberto por perto
Seus olhos e sua respiração combinam-se
Como se fosse um recém nascido
Ao perceber o lagarto imóvel a três metros de distância
Olhando-o como ameaça, ou um simples objeto móvel
Decide descer as escadas e ir até o mercado também
Encontra seu vizinho pelo trajeto
Cheio de sacolas e ar indiferente
Mesmo assim, é surpreendido pela fala dele
“Você é o que veio do futuro e não existe?”
Engasgado pelo infortúnio da indiferença que sempre preservou
Sente-se obrigado a parar e responder
Claro que não tem uma resposta clara e confiável para tal questão
Afinal, considerava uma conjectura redundante
Sem nenhum aspecto primoroso
“Vim do futuro e não existo, sou eu mesmo”
“Muito bem, eu venho do passado carregado de sacolas. Vi seu tapete quando fui à sua casa oferecer uma rifa”
“Ah!…Não comprei?”
“E o que importa? Quem ganhou foi o dono do mercado”
“Ofereceu antes para ele ou para mim?”
O homem deu de ombros e seguiu em frente
Ao entrar no estabelecimento, vai até o final do único corredor
Encontra os refrigerados, com seus preços úmidos e de difíceis distinções
Agarra um pequeno pote amarelo e um pacotinho embalado a vácuo
Segue até o caixa, onde é recebido por certo sorriso cativante
Inclui algumas balas e chocolates na compra
Enquanto ouve sonoridades musicais baixas que surgem por detrás do balcão
Percebe que está pisando em um relevo macio
Um tapete, talvez, mas como por inaptidão
Recusa-se olhar para baixo
E retorna pra casa
Supondo estar com uma cara sonolenta
A mesma adquirida e estabelecida durante anos
Mas de tal forma fora amadurecendo
Que em certos momentos sente-a cravada em todos os ossos faciais
O lagarto não está mais ali para encará-lo ameaçadoramente
Sobe as escadas como se estivesse pisando em pedras molhadas de uma correnteza
Seu tapete tem uma dobra, a folha cinza cheia de buracos se foi
Lê: “Vim do futuro e nã”
Com um leve toque, deixa o tapete corretamente posicionado
Coloca as compras sobre a mesa da cozinha
Intrepidamente e com os nervos fervorosos
Retira o pedaço de papel do seu bolso com muito cuidado
Até porque, está com ele há no mínimo cinco anos:

Para J.B

Começo, verdadeiramente
A cravar a existência de um Criador
Através das mais simplórias constatações
Acredito quase 100%
Numa totalidade transparente e segura
Que de outra forma
Não haveria possibilidade de termos
Um inferno assim,
Tão perfeito
Com uma ressalva indispensável
Para tal afirmação:
Criou de luvas

Marchando sobre ferraduras
Ou apenas alegando insanidade poética
O crime demorou sete anos para ser finalizado
Notícia um tanto confusa
Que chegou de helicóptero
E pousou no cemitério dos campos vastos
Onde adultos brincavam de acordar fetos feitos de açúcar
Pneu estourado pelo tiro da espingarda de plástico
Metros abaixo de onde o fusca vermelho fora abandonado
Um senhor grisalho e de terno mostrou seu crachá, que dizia:
“Vim do futuro e não existo”

Jonas Bello guarda o papel com a precisão do universo
Esquece dos refrigerados sobre a mesa, e suavemente
Com um leve sorriso desbotado
Volta ao seu lugar preferido
E desaparece
Mais breve que o céu

Por onde andei?

Não alcanço meus pés
Mas vejo as unhas todas tortas
E grandes
E sujas
As veias roxas em trânsito parado
E tortas, e grandes e sujas
Por onde andei?
Alguns pelos em dedos nem existem mais
Outros queimados com suas pontas da cor
De cabelos de anjos
E formatos também distorcidos
E grandes
E limpos
Os calos despojados em arquipélagos
Da mesma cor das unhas, e de pelos queimados, e de cabelos de anjos
E do colchão que os absorve, da cortina que os esconde
Da cama em trânsito parado
Por onde andei?
Meu calcanhar de Aquiles é o tendão dessas palavras
E meu cabelo, meu travesseiro, minhas caixas de livros
Meu cabideiro, minhas bitucas, minhas batatas
Meu óleo, meu sapato, meus grampos
Meu vinho branco, minha merda, minha sopa
E, enfim, meu vômito, e minha inconsistente fantasia em permanecer aqui
Feito mostarda, travesseiros, ou simples gotas
De calha enferrujada, água de macarrão, água sanitária em camisetas amarelas
Faço a barba, meus pés adormecem pelo tempo parado

Magnitude

Sangue talassêmico
Os cabelos brancos de Virgínia
Enquanto estende as roupas, cantarolando
Feito pássaro de madrugada, fazendo ninho dentro do túnel
Aves de peitos luminosos, como se tivessem sido pintadas
Por Rafael, no intervalo das Madonas
Esquinas de um corpo esfarelado em diamantes
Faíscas que verberam entre as frestas dos seus olhos
Antíteses selando um acordo efêmero
Natural como cobras nadando em leite materno
“Rafael tem algum quadro assim?”
Uma dose de sangue talassêmico com gás
A noite risca fósforos no crepúsculo
As estrelas acendem cigarros quando morrem
Virgínia ri enquanto prende os cabelos
Seios rijos como a ponta de um prego
Ela desenha sua imagem no espelho
Pergunta quando os fiapos brancos pararão de nascer
Lembra da lua de dias atrás
“Parecia uma boneca contando piadas”
Lembra da chuva em seu colo ontem
“Tempestade anônima sem gás”
Veste-se com a etiqueta de Versailles
Suspira ao ouvir o piano do vizinho
Mas ele não sabe tocar porra nenhuma
“Só belisca ternos de gesso”
Vai fritar ovos, conta piadas
Boneca em órbita, placebo de Vênus

Vou até a janela hoje, a luz do seu quarto está apagada
Risco um fósforo, acendo um cigarro
Observo a noite
E não morro, tal qual
As estrelas

Maratona

Sim, Edna
A vela ainda queima nos dois lados
E o figo deixa rastros de cola branca
Como rios num teto mapeado
Caminho lento
Aos sons de flautas e bebês chifrando os colchões
Dobro a primeira esquina
Penso em vinho e cigarros
A corrente de ar atinge meus passos
“Vai fazer frio hoje”
Penso em vinho e cigarros
Batatas, repolho, tomates, laranjas
A vela de Edna
“Boa tarde jovem”
“Boa tarde, boa tarde”
“Finalmente um”
Faço 34 esse mês, mas não penso nisso
Enquanto dobro a próxima esquina
Pelo contrário, lembro do poeta suicida colombiano:
“Viver mais que 25 é uma vergonha”
Compro um maço de cigarros
Pergunto se chegaram os vinhos baratos
“Sim, sim, 13 reais dois litros”
“Na volta paro aqui”
“Isso, isso” responde o mascarado
Caminho rápido
Acendo um cigarro
Sento no parapeito de uma ponte
Ao lado do posto de saúde
A corrente de ar atravessa meu peito
Como uma flecha de duas pontas
Lembro das batatas, repolho, tomates, laranjas


Das flautas, bebês
Máscaras, figos, vinho, cigarros
De Edna
E adormeço, mais do que nunca
Iluminado

Até poderia ser, mas caso fosse, ninguém saberia

Floresta refletida em roxo sobre as casas amarelas, rosas, alaranjadas
Através de uma cortina branca que balança na janela marrom semiaberta
A escuridão vaga sobre os gritos das crianças que ninguém vê
É mesmo uma luz aquilo que noto atrás da bananeira?
O barulho dos carros pipocam nas esquinas que ninguém está
Esse martelo e sua sagrada tábua com seu ritmo tão lento, batidas como um coração de elefante, o coração de um leão, o coração de um homem, que ninguém ouve
Tão perto a terra exalta a chegada dos morcegos, nessa noite que alguém quer

Paralisia

Estandarte a rodar pelas dimensões
O riso tragado em nossos olhares
Que se cruzavam como filamentos em papel picado
A transcendência transmitida pelo éter
Que escorria junto ao suor do corpo ao lado
Nas sombras dos cigarros, éramos uma fumaça só
E a bela noite, purgatório anônimo
Onde juntamos nossos lábios e genitais
Feito Heloísa e Abelardo em uma queda de avião
Dançamos e desafiamos a morte que já conhecíamos
Os tolos não entenderam a falácia que cantamos
Não perceberam que nossa glória palpitava na jugular
Enquanto cingíamos nossa simbiose transgressora
Com vozes roucas, ouvindo a harpa de Nero
Apenas por gentileza bucólica  
Compartilhamos o cheiro da grama
Rolamos em busca do triunfo
Acesos como o Farol de Alexandria
Até que o som retumbou na concha
Então,
Iluminamos a Lua com velas roubadas
Seus cabelos enroscaram em meus dentes
Chamei-lhe de Medusa
A chuva veio, você subiu em minhas costas
Cavalgamos pelas calçadas esburacadas
Seus gritos ainda roucos:
Hoje não! Hoje não!
Nada de piolho em buraco de agulha!
Nada de chinelos em cruz!
Assim, finalmente
Descobri
A eternidade

Poema com febre

Assim como o sopro
A dança, o tombo
Nenhum caminho
Suor lícito na véspera de um dia inacabado
Colo eterno
Telha solta
Barbante na ponta do lápis
Amanhã sim, o desabrochar dos lírios em terra morna
Nenhum caminho
Verbo em papel molhado
Cólon terno
Blefe benzido
Arte que mata arte
Arte que mata Marte
Arde o fardo de um coma induzido
Nenhum caminho
Assim como o corpo
A fatia, o sopro

suicida-me

óh corpo febril
que me prende
em fronteiras engarrafadas
com doses de dilúvio
escorrendo pelas margens
do teu pelo
suicida-me
óh corpo senil
de irrupções locomotivas
marcando a ferro
o sangue que coagula
terrenos do teu tato
suicida-me
óh corpo argiloso
deita-me em teu colo
abrace minha alma fustigada
e conte-me novamente aquela piada
sem fim

ou então
definitivamente
viva-me!
óh corpo, óh corpo
mesmo que,
com todo seu zelo
seja por apenas
um fechar de olhos