Homicídio de 1999

Começo, verdadeiramente
A cravar a existência de um Criador
Através das mais simplórias constatações
Acredito quase 100%
Numa totalidade transparente e segura
Que de outra forma
Não haveria possibilidade de termos
Um inferno assim,
Tão perfeito
Com uma ressalva indispensável
Para tal afirmação:
Criou de luvas

Para F.F


Marchando sobre ferraduras
Ou apenas alegando insanidade poética
O crime demorou sete anos para ser finalizado
Notícia um tanto confusa
Que chegou de helicóptero
E pousou no cemitério dos campos vastos
Onde adultos brincavam de acordar fetos feitos de açúcar
Pneu estourado pelo tiro da espingarda de plástico
Metros abaixo de onde o fusca vermelho fora abandonado
Um senhor grisalho e de terno mostrou seu crachá, que dizia:
“Vim do futuro e não existo”

Lhegista

No meio da vesícula tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio da vesícula
Tinha uma pedra
No meio da vesícula tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
No meio do caminho tinha uma perna
Tinha uma perna no meio do caminho
Tinha uma perna
No meio do caminho tinha uma perna
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
No meio do caminho tinha um i
Tinha um i no meio do caminho
Tinha um i
No meio do caminho tinha um i
Intestino
Infecção
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Agora, Ivo?
No meio do caminho até tinha uma pedra
Mas Sísifo resolveu construir barragens

Hábitos

Acordar sobre pedras deslizantes
Trabalhar colares de dados no pescoço
Beber água de cirurgia
Adoçar o café dos cães
Descascar cebolas com tesoura de cabeleireiro
Palitar os dentes com uma foto de feto
Quando a morte chega, a vida não passou de um susto
Hábitos
Confeccionar fogueiras de laranjas
Violar molduras em quadros brancos
Soletrar canções indigentes
Exibir medalhas de chumbo em colares de dados
Esculpir um mudo na Torre de Babel
Quando a morte chega, a vida não passou de um susto
Habito hábitos
Tragar
Estragar
Crivar a noite de insanidade embutida
Poetizar a incoerência de um pardal na poeira
Fiscalizar o estado do gelo
Espantar um espantalho com espelho
Óbito
Quando a morte chega, a vida não passou de um hábito

Caso 0001113 (2º depoimento)

– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Está me ouvindo?
– Estou
– Sabe onde está?!
– Sei
– Sabe por quê?
– Sei
– Onde estava ontem?
– Aqui?!
– Antes daqui
– Matando o Cada
– Você não matou o Cada
– Não?!
– O que lembra de ontem?
– Travessas embutidas em um corpo de metal, risos efêmeros nas cascas dos ovos, a devassa sensação de absorver cianeto pelo rádio, longas planícies infestadas de carrapatos em cadeiras de rodas, luvas estendidas nos fios dos postes, coringas vendidos em trajes de festa, cimento carregado no bico do papagaio, velas acesas nos olhos das crianças, e por fim, um pedaço de papel de presente molhado no fundo do lixo.
– Jonas Bello, posso te chamar de Bili?
– Por que Bili?
– Seu apelido
– Por quê?
– Por conta da sua semelhança física com Billy Cativo, o último jogador de Damas ainda vivo
– Pode ser
– Bili?!
– Sim?!
– Consegue me ouvir?!
– Sim?!
– Encontramos uma carta em seu travesseiro hoje
– É?!
– Sim
– Qual naipe?
– Uma carta escrita, foi você?
– E agora?!
– Bili?!
– Sim?!
– O que lembra de hoje?
– Pequenos grãos vermelhos em manobras no globo da morte, peixes tatuando bigodes, manequins plantados de cabeça para baixo e regados com formol, arames farpados cercando o fogo, velório de um tigre japonês, fotografias dos monges consertando colchões com pé de cabra, por fim, uma frase de Oscar       
– Qual filme?
– Oscar, o poeta
– Qual frase?
– Que escolhe os amigos pela pupila. Mas eu escolho pelos ossos da face
– Bili?!
– Sim?!
– Já pode voltar a dormir

Caso 0001113

– Jonas Bello?!
– Sim?!
– O que você ouviu hoje?
– Eu ouvi o som dos animais em rotas de fuga, grama crescendo em telhados de vidro, a providência ejaculando em olhos de madeira, brigas pelo título de zelador das mansardas, sinetas que despertam flores no cemitério, o mistério de uma serpente de jaqueta, a quietude de um girassol no microondas, sonoridades das paredes rachando, um gambá dando de ombros para o arco-íris, e por fim, uma suave melodia nas trincheiras durante o veredicto das pulgas gêmeas.
– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Onde você ouviu tudo isso?
– No treinamento dos kamikazes, no sarau de poetas mudos, ao lado da cortina de vapor, embaixo da ópera de Wagner, nas rotas dos animais em fuga, sobre as pipas empinadas nos calabouços, no vazio das estrelas cadentes, em cima da poeira e embaixo do lagarto, por fim, nos jardins de areia na ampulheta.
– Jonas Bello?!
– Sim?!
– Está me ouvindo?
– Sim?!
– Você tem apelido?
– Tenho
– Qual é?
– Bili
– Por quê?
– Por conta da minha semelhança física com Billy Cativo, o último jogador de Damas ainda vivo      
– Bili?!
– Sim?!
– Você sabe onde está?
– Sei?!
– Sabe o motivo?
– Sei?!
– Está aqui por tentar corromper o Cada
– Quando?
– Ontem

Primeiro relato do acusado: https://estrabismo.net/ramon/cada/
Em breve novidades do caso

Lógica

Desorientado por uma tontura súbita, um motorista consegue frear e parar o carro cerca de trinta centímetros antes de atropelar um transeunte atravessando na faixa de pedestres.  Com o susto, a esposa do motorista entra em choque, e perde o bebê no segundo mês de gestação.

Variáveis:

1 – O pedestre alcoolizado estava quase parado na metade da faixa, observando um belo traseiro exposto no outdoor do lado contrário de que vinha o carro.
2 – Até duas semanas antes do acontecido, a grávida cogitava sugerir ao seu marido um aborto.
3 – O motorista fazia esse caminho pela primeira vez, isso porque esqueceu de virar à esquerda três quadras antes.

Levando em consideração todo cenário, a questão é simples:
Por que ainda não comprou o livro “estrAbismo”?

Plano cartesiano

A luz da lâmpada cobriu meus temperos
Já não encontro minha doença dentro do pote
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira
Comprei bolo de formiga, chá de astronauta
Um chiqueiro novo, ferraduras de anjos
Uniformes despejados, cinzeiros desbotados
Alqui mia, cheia de bigode e pose
Está tão gorda e peluda quanto seu dono
Encontrei alguns remédios contra-indicação
Quando bisbilhotava a construção ao lado
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua
“Se acabar com minhas pílulas
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete”
Já não encontro minha doença dentro do pote
A luz da lâmpada, a luz da lâmpada
Alqui não veio mais aqui
Procuro em vão, um dia sóbrio na geladeira
Comprei molho de algodão, rocambole de eutanásia
Fissuras cerebrais acrobáticas, miúdos elétricos
Ultrajes simbólicos, medo do escuro
Encontrei um pato e um tapete
Quando bisbilhotava a construção ao lado
“Ei” gritou-me o proprietário lá da rua
“Se acabar com minhas pílulas
Sou bem capaz de comprar um pato e um tapete”
Já não encontro minha doença dentro da lâmpada
Procuro em vão, um dia sóbrio no pote
Alqui mia, algo dão
Alqui mia, algo dão
Alqui mia, algo dão
Alqui não veio mais aqui
Se Alqui mia
Algo dão

Espectrorante

Alimentando as águas
Com iscas de peixe
Afogando os raios
Com isopor em lata
Entregando ao desenhista seu retrato feito a mão
Na plena galeria de pinturas em borracha
Ao vivo, um lampejo histérico insular organizado
De olhos especificamente cardíacos
Na aurora servida em casca sobre a pedra de roseta
Espectrorante
Cativo e batizado
No toque de recolher aos catarros siameses
Rebanho único na ponta do lápis
Aqui jaz sua obra
Acolhemos a loucura assim como ela nos acolhe
Desenhamos a inconfundível voz do vento
Que nos eleva no primeiro sopro
Assim,
Um poeta fantasma
Um poema cuspido