Passado envelhecido ( XXVI )

Era só esperar janeiro chegar para Ramon não morrer mais sem suas palavras em um livro. Os textos escolhidos eram curtinhos, antigos e miseráveis, mas achei engraçado haver escritores piores que eu recusados. Se é que eles existiam, talvez meus textos fossem apenas pra completar a antologia, algo: “Tem cinco textos desse Ramon aqui, mas difícil achar um que preste”, “Não temos outra coisa pra colocar? Talvez uma receita de bolo”, “Poderíamos colocar uma receita de bolo e o colocar como autor. O que você acha?”, “Não sei, seria demais pra ele”, “Verdade. Então escolhe dois dele pra esse livro não virar best-seller”. Agora seria um autor publicado, pagando pra isso, mas publicado, o que me fazia acreditar que as coisas estavam acontecendo na velocidade certa.
Peguei um copo de café amargo e voltei lá fora fumar um cigarro. Comecei calcular quanto tempo faltava para o dia doze de janeiro. Não tinha pra quem vender livros, acabaria tendo que comprar todos. Faltavam sessenta e nove dias. R$ 400,00 reais eu precisava encontrar, em sessenta e nove dias. A noite pediria emprestado para outra pessoa que talvez me deixasse esquecer uns meses da dívida também, caso tivesse dinheiro, minha mãe. Ligaria um pouco bêbado, assim facilitaria pedir. O dinheiro não passa de um cabaço, se você tem, quer gastar, se não tem, fodeu. Embora odiasse essas situações de não conseguir fazer sobrar qualquer quantia do salário e ter que ficar dependendo da bondade dos outros, estava meio que decidido a lançar esses dois textos ou contos na antologia. Seria a maior conquista em termos literários que estaria conseguindo. Talvez alguém lesse e botasse fé. É sempre assim, quando você acha que fez uma grande merda, alguém aparece dizendo que nunca viu nada melhor, e eu achava aqueles dois textos uma grande merda.
Via meu futuro somente após o dia doze de janeiro, o dia em que publicariam dois textos meus em um livro, pela primeira vez minhas palavras estariam armazenadas em folhas, e isso duraria por gerações, uma filha, passando para sua filha, depois para seu filho, e sempre mais além “Esse é seu presente de aniversário meu filho, esse livro foi lançado no dia doze de janeiro de 2012, minha vó comprou, passou pra minha mãe e agora estou lhe dando de presente. Ele é muito bom, quase todo ele é bom, o pior autor é esse Ramon, reza a lenda que pagou para ser publicado, e o pior, pegou dinheiro da própria mãe pra isso e nunca devolveu, apenas evite essas duas páginas, se preferir, arranque fora para não sofrer com essa maldição que assombra nossa família por três gerações, minha mãe escondeu-me isso quando me presenteou. Por que você acha que nunca mais falei com sua vó? Eu te amo meu filho, não quero que sofra. Ou melhor, me dá aqui que eu mesma arranco e queimo”.
Bebi mais um tempo e liguei.
– Alo – ela atendeu.
– Oi mãe. Tudo bem?
– Bem e você?
– Bem. Comi uma sopa hoje.
– Aé?! Quem fez?
– Eu fiz.
– Huum.
– Preciso de R$ 400,00 emprestado.
– Pra quê?
– Quero comprar uma máquina de lavar. Vi o preço de uma baratinha, só preciso de R$ 400,00 pra completar. Te pago R$ 50,00 por mês.
– Não tenho meu filho. Vou receber o décimo terceiro em dezembro, mas preciso de um cinto protetor pra coluna. Não aguento mais de dor. Os anos esfregando o chão e a parede me arrebentaram as costas.
– Que dureza mãe.
– Pois é. Mas faz um crediário.
– É. Acho que vou fazer isso.
– Tem bebido bastante água? Meu médico disse que é bom beber pelo menos dois litros de água por dia.
– Dois litros de água por dia? Assim não há coluna que aguente.
– Tu é burro né piá. Bebe água!
– Sim mãe.
– Tá bebendo álcool e fumando ainda?
– Parei.
– Tá fazendo aquele curso ainda? Estuda!
– Sim. Alguns dizem que tenho o dom do marketing.
– Me dizia a mesma coisa aqui, e abandonou a universidade pra continuar sendo motoboy. Não tá estudando bosta nenhuma né. Tá só bebendo e fumando igual teu pai. Lembra o que aconteceu com ele né?! Meu Deus, tu é pior que ele.
– Sou escritor profissional agora. Vão lançar um livro meu em janeiro. Tem gente dizendo por aí que sou um gênio.
– Parou de estudar de novo! Não consigo acreditar! Gênio? Pra mim tu não passa de uma decepção.
– Pra mim também.
– Estuda piá!
– Tá mãe, tchau.
– Tchau.
Ainda tinha sessenta e nove dias.

Psicopata sem rancor

Às vezes, o estranho
Traz medo, ou planos
Coisas estranhas me deixam bem
Tão perto, distinto
Às vezes escrevo para os mortos
E os vivos leem
“Ninguém precisa disso”

Acordaram, ambos de ressaca
Era dia de feira
O despertador enjaulava
Em som, os órgãos secos
Esquecemos da feira!
Pelo amor de Deus desliga isso
Rosnar esgotado
Os tigres no asfalto
E uma armadilha atrás do poste
Vai tomar um banho, hoje tem feira
Seguindo ordens sem conseguir raciocinar
Praticamente um cão no trampolim
A água em um piso de histórias
A sombra em um traje de algodão
Feira num sábado de manhã é para adventistas
Pelos sequestrados pelo sabonete
Limpa, finge ser romântico praticante
Seca bem os pés
A água da privada sugerindo um mergulho
Como diria Israel:
“Não adianta, a merda sempre procura o cu”
Na feira, na feira
Multidão, esgoto, caldo de cana
Graus, preços, cores
Paciência em filtro de papel
Tigres no asfalto
Carregando sacolas verdes
Na faixa para atravessar
O ônibus corta a avenida
Com rostos cheios de vagas
Refeições bem temperadas
Apagarão os erros de amanhã

O trem fantasma

A inércia dos alicerces
Cubos de gelo no bico do figo
Não há mais garotas de saia nas arquibancadas
Onde ele e seus amigos escondiam-se
Para venerar o vermelho
Brisa dos vulcões, sulco das montanhas
Sondar o amarelo
Canto das virgens, sinos de cera
Lapidar o azul
Aurora de Baco
Suprir o verde
Balas de menta
E frases velhas, como essa:
“Tentei ver a calcinha dela mas me dei mal, ela tava sem”
Esperando o ônibus sozinho
Na rodoviária que fica ao lado das recordações
Ele jurou ter visto Ana Cláudia
Quase gritou, ou correu ao encontro
Mas antes conferiu o horário e o número da poltrona
Na passagem
O frio não lhe pertencia mais

Passado envelhecido ( XXV )

1 – e4
Plic no relógio de xadrez.
1 – …c5
Plic no relógio.
– Siciliana, ham?
Plic.
– É a melhor.
Plic.
– Concordo.
Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic,Plic.
– Faziam mais de dez anos que não jogava xadrez.
PLIC!
– Bate fraco no relógio!
Plic.
– Desculpa.
Plic.
– Por que parou de jogar?
– Virei motoboy.
– Mentira.
Plic.
– Verdade.
Plic.
– Poderia ter continuado paralelamente com o xadrez. Aliás, ainda joga muito bem pelo tempo parado.
Plic.
– Obrigado. Mas fiquei sem tempo pra estudar o jogo e perdi o tesão.
Plic.
– Perdeu o tesão e virou motoboy?
– Virei motoboy e perdi o tesão.
– Por que diabos virou motoboy então?
Plic.
– Salário. Recebia em torno de R$ 250,00 para competir. Me ofereceram          R$ 550,00 pra entregar peças de automóveis e caminhões. O dinheiro encerra alguma carreira, ahn?!
– Que puto você. Quantos anos tinha?
– Dezoito.
Plic.
– Foi competidor por quanto tempo?
Plic.
– Comecei jogar com doze, e aos treze já viajava disputando torneios pelo país. Agora fica quieto uns minutos, preciso pensar na próxima jogada.
– Ok.
Dois minutos depois. Plic.
– Chegou a ganhar troféus e medalhas?
– Muitos e muitas. Mais individualmente do que por equipe. Nosso time era muito bom, infelizmente tinha um azar de causar inveja. Um merda entre nós sempre dava um jeito de perder a única partida que não podia. E geralmente para um adversário mais fraco. Perdi a conta das vezes em que ficamos no quarto lugar por conta disso.
– Isso não é azar, é incompetência. Mas me diga, era sempre o mesmo merda que perdia?
– Não. Revezávamos. Na maioria das vezes creio que eu fui o merda ocasional. Sua vez.
– Vou jogar. Você era o pior da equipe?
– Não, o melhor.
As folhas arrastadas pelo vento pareciam bailarinas ao redor das barracas de caldo de cana e rapaduras. O brilho do Sol latejava na cruz da catedral e como um tapete nas escadas atraía o público, os turistas da sagrada cidade, para mais promessas altruístas. Lágrimas como confetes jogados, risos como bananas soltas no chão. O xadrez valia a pena, outra vez. O menino ranhento com a barriga de fora e umbigo esquisito rodeando o tabuleiro na mais santíssima órbita, não entendendo nada, ungido de inocência e curiosidade, aflito e fascinado pela beleza absurda daquelas peças pretas e brancas brilhando, mesmo sob as sombras das árvores.
– Tio, me ensina jogar? Perguntou o menino.
– Não enche, pilantrinha. Estou pensando.
– É. Se manda moleque.
– Ainnnn…Brrrrrr…Buá, Buá, Buá.
– Vai chorar pra lá, porra!
– Some daqui.
Plic.
– Se era o melhor da equipe não deveria ter parado. Ligar uma moto qualquer um consegue, agora ser um bom jogador de xadrez é muito difícil.
– Fazer o quê, quero ser um qualquer. Essa disparidade fictícia entre pessoas não me interessa. Se nascer um jegue azul, os humanos acham extraordinário, mas para os outros jegues é simplesmente um jegue. Disso que estou falando, penso como um jegue. Pra finalizar esse assunto meu caro, experimente somente um dia amarrar três molas de caminhão nos pedais de uma moto e sair andando.
Plic.
– Não entendi o que quis dizer, mas enfim. Chegou a jogar contra atletas de nível internacional?
– Sim, se não me engano foram três.
– Vou pensar um pouco para o próximo lance. Depois continuo o assunto.
– Certo. Vou até ali comprar uma rapadura. Quer também?
– Não, obrigado.
Tarde abrasiva, com soluços de vapores invisíveis chacoalhando as saias das moças que transitavam monotonamente espalhando toda a crueldade das fêmeas pelo vão das pernas, embaralhando o odor intrínseco do ambiente como uma brincadeira sacana. Os velhos pigarreando, assobiando, batendo seus jornais velhos nas pernas, lamentavam a idade, lamentavam o esconderijo cheiroso e proibido assim como lamentavam as guerras e o preço das batatas. Lamentavam, fazia parte do jogo.
Plic.
– Foi comprar essa rapadura onde? No México?
– Tinha uma baranga burra de dar febre na minha frente. Levou rapadura pro ano todo.
– Olha essa moreninha gostosinha que vem vindo. Ai, ai. Chupava inteira. PSIIIIIIT..PSIIIIT…EI POTRANCA, TE CHUPAVA INTEIRA….PSIIIIIT….PSIIIITT….EEEEEIIII….VAI A MERDA TRANQUEIRA.
– Que rabo. Rapadura terrível.
– Ganhou de algum dos três jogadores de nível internacional?
– Ganhei de dois, mas também perdi para os três. Um, andei lendo notícias ultimamente, tornou-se o mais jovem brasileiro a conseguir a norma de Grande Mestre Internacional. Quando enfrentei-o pela primeira vez era apenas Mestre FIDE. Perdi. Lembro-me vagamente daquela partida, foi a que melhor joguei contra ele, nas outras duas vezes passei vergonha, fui judiado como um peru de guri novo. Outro também era Mestre FIDE quando venci, pura sorte, estava mais perdido que papagaio mudo na posição, mas encontrei um golpe tático e ele caiu como amador. Em outras ocasiões fui triturado. Já com o terceiro, joguei duas, ganhei a primeira, perdi a segunda.
Plic.
Pombos atrozes e vigaristas entre transeuntes, magnífica convivência singular. Poeira nos olhos, grudada nos chinelos, dentro do caldo de cana, dentro dos corpos úmidos. Calamidade são aranhas voadoras. O menino tenta aprender dominó, mas só sabe contar até cinco, então dão-lhe uns trocados pra comprar rapadura, mas se engana de barraca. Os taxistas erguem as mangas das camisetas, um é tatuado e não usa meias. A magnitude é volátil, trabalhadores consertam um cano cavoucando a calçada, o craqueiro seduz o vendedor de picolés, enquanto o pombo defeca sobre o banco de pedras.
– Devo admitir que foram grandes vitórias as suas.
Plic.
– Passado.
– Qual é seu enxadrista preferido?
– Fischer e o seu?
– Paul Morphy.
– Ambos incríveis e meteóricos. Acho que se vivessem na mesma época, plantariam flores no jardim da casa do Bobby e beberiam chá até os noventa anos. Sabe como é, doidos se entendem.
Plic.
– Concordo. Você só tem mais cinco minutos no relógio.
– É o suficiente pra ganhar.
Sirene de polícia no vácuo dos becos abafando a sonoridade pitoresca. Versatilidade espontânea nas solas dos pés. O craqueiro confuso corre pra dentro da catedral. O menino chora porque acabou a rapadura no momento exato em que o vencedor ficou sem pedras de dominó. Um homem em cadeira de rodas sai do bar e ajeita o boné. Coça as pernas e causa dúvidas. A sirene vai ficando cada vez mais baixa, até que todos esquecem o perigo.
Plic,Plic,Plic,Plic,Plic…Plic.
– Agora está em maus lençóis.
– Nem tanto. Teu peão cravado em d6 compensa.
– Fiquei com o bispo bom.
– Incapaz de tirar meu cavalo de d5. Tenho mais tempo no relógio. Ganharei no tempo.
– Duvido. Ainda tenho dois minutos e você cinco.
Plic,Plic.
– Já esperava por esse é?!
– Imaginei que tentaria abrir essa coluna.
– Meu plano não era esse. Haha. Muito pelo contrário, meu plano é esse sacrifício de cavalo.
Plic,Plic.
– Sempre soube desse plano. Mas é furado.
– Aé?! Vamos ver então.
Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,Plic,PLIC,Plic,PLIC,Plic,“Merda”,Plic,Plic,Plic,Plic, “Cacete”,Plic,PLIC,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque”,Plic,Plic,“Xeque-mate”,“Merda”
– Não era furado o sacrifício. Haha.
– Sorte sua.
– Mais uma?
– Vou embora. Quem sabe amanhã se eu passar por aqui.
– Como se chama?
Disparates viscosos na primeira curva. A porta não tem maçaneta mas abre com o vento. O vapor quente não seca o suor e sim espalha as gotículas. A tarde ainda seria longa, mas nada aconteceria.

Merlot

A dica do Rei foi:
Nunca blefe com um ás na mão
Mesmo que tenha marcas nas bochechas
Copie Américo e toque alaúde,
Nunca blefe com um ás na mão
Por mais suave que seja a couraça
Sobre os pergaminhos noturnos
Reza Pound, porque o trevo é recurso
A alameda percalço
E descalços, os carrapatos ainda fazem barulho
Atrás de sapatos com cara de patos
Zera Pound, esse meu blefe
Pois quem não tem ás
Caça com bobo
Do corte

A revolução dos buchos

Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava
Pelo portão da frente
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor!
Eu preciso de silêncio!
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes
E por tão inocentes amam e odeiam
Não perdoam
Não nascem
Explodem
Saem pelos vulcões e viram cinzas
Viram noticiário e atraem turistas
Poeira refletida
Excessos! Excessos! Excessos!
Somos todos desajustados
Trocamos de mulheres, de homens
Procuramos amigos melhores
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo
A sede mata, a água também
Somos vírus mutantes
Matando, morrendo, mudando e matando
De novo e de novo
Ajustes e desajustes”
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça
E você, o que está olhando?
Vim ver o show
Ah! Você é aquele esquisito que vomita sozinho toda noite!
Quem disse que estou sozinho?
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável!
Mais uma vez ela estava certa,
Errada estava a Bíblia
O homem dobrou a esquina
Como todos os outros que saíam
Do segundo andar, pelo portão
E quem ficava com a agonia sonora
Que descia pelos fios de luz por trás da parede
Até o interruptor do quarto
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite
E sempre que algumas coisas se repetiam
Eu pensava brevemente:
“Algumas pessoas sabem o que querem,
Outras apenas querem
Sem saber”

Metástase

A carta na manga
Com o assovio desfalcado
Dilacerando os espaços dos dentes
Assim se curva o desprovido confete mercúrio
Ao se deparar com Críton sonâmbulo
Ajustando a ferradura da fuga
No cachorro Bartolomeu
A carta na manga
Como uma imensa lamúria aos pés de Péricles
O choro que o mar despertou e jorrou
Por entre as antigas cantigas de ninar
Que assustaram primos, ao ponto de vê-los estáticos
Nos seios fartos da tia Melinda
A carta, a manga
A fivela e o coração de vaca
Aspirante ao título de jovem audaz no cemitério voador
Aspirado pelo prepúcio de Zeus
Tornando-se gêmeo siamês do Holocaustrofóbico
Caem paródias, caem sonetos, caem morcegos
Miro a recém formada imagem do cabeça de porco
Vou até Bocaccio, sucumbo à peste
Me vejo dentro da marmita do vagalume
É feijão, arroz, carne e alface
O sabor é delirante se não mastigado
Está calor, úmido, e a rua parece investigar seu passado
Empresto uma nota de dez
Durmo duas horas
Descongelo a geladeira
Estendo as roupas
Prescrevo meu dia
Como sempre,
Pela última vez

Prótese

Propus-me a desentupir o ralo do chuveiro
Com luvas verdes
Que havia usado para reparar um vazamento no aparelho sanitário
Arranquei o tampão de plástico com uma faca de serra
Girei a torneira da pia do banheiro para teste
A água mudou o trajeto e subiu pelo ralo
Trazendo consigo uma porção de pelos
O teste trágico novamente dava positivo
Mergulhei uma chave de fenda para dentro do cano de evasão
Circulando-a dentro, forçando, tentando  encontrar uma barreira
Nada de escoar
Abri a torneira da pia, mais água, pelos
E agora porções de gordura brotavam pelo ralo
Separei o que pude de sujeira
Resolvi fazer pressão com a mão
Como se meu corpo inteiro fosse um desentupidor
Lá pela quinta bombada, um jato d’água gorduroso  e espesso
Explodiu na minha cara, escorrendo até a barba
Ficando, como uma colherada de sopa
CAGALHÕES! CAGALHÕES! EXPLORADORES  JORGEEEESSSSS!!!

 

Passado envelhecido ( XXIV )

“Acordei com o Eduard me chacoalhando pelos ombros. Ambos estavam vestidos, ele e Daniela, prontos pra saírem e seguirem suas vidas normalmente, às 07:30.
– Vai trabalhar? Perguntou.
– Tá chovendo? Perguntei.
– Um pouco – abriu a porta pra me mostrar. Nem olhei.
– Não vou.
Saíram, então fechei os olhos como tramelas para mais um dia. Ainda ouvi um “tchau Ramon”. Depois de mais uma hora acordei com o telefone.
– Alô – falei, com uma voz das profundezas do abismo.
– Não vai vir trabalhar?
Pela voz e pela grossura eu sabia que era o Vences, meu superior.
– Tá chovendo – respondi.
– Parou de garoar faz meia hora.
– Tô doente.
– Tá chovendo ou tá doente?
– Me sinto mal. Só consegui dormir depois das três hoje. Acho que é garganta inflamada. Sempre sofri disso. Ai Ai – suspirei. 
– Ramon, vou te descontar esse dia se não vier aqui em meia hora.
– Bom, se vai descontar então tô novo e vou voltar a dormir.
– O que voc….
Vesti-me como de costume, uma calça jeans com uma camiseta preta e saí em busca do meu novo lugar. Comprei uma cerveja pra tirar o gosto ruim da boca. Não tinha ideia pra onde ir. Não sabia sequer se ainda tinha emprego depois da matada e do telefonema de Vences. Podia caminhar o dia todo. Encontrei uma loja de canos e mais coisas, que tinha na fachada um lençol dizendo “Alugo quitinetes”. Dei goles felizes na cerveja, acendi um cigarro, o lençol não sairia voando, logo ali pensei, um novo pulgueiro pra me lançar, sem luxos, só com o mínimo para aguentar todas as primaveras restantes.
Entrei e vieram atender bem perto da porta. A loja era maior do que qualquer um imaginaria de fora. Todos vendedores usavam um uniforme vermelho desbotado.
– Bom dia. O que era pro senhor?
– Vim pelo anúncio de quitinetes.
– Quem tem quitinetes é a dona da loja amigo, ela não está aqui agora.
– Onde ela está?
– Não sei.
– Mas eu quero alugar uma quitinete hoje. Ela vem pra cá?
– Se informa ali no caixa. Não tô sabendo.
Fui desgostoso até lá. Uma mulher ruim só de olhar sorriu, eu não daria dinheiro pra ela. Tinha uma sobrancelha em formato de “V”, bem grossa. Uma face de que mataria por um cacho de bananas. Era mal comida, ou raramente.
– Qual seu nome? Ela perguntou ao me aproximar.
– Por que?
– Pra eu puxar seu pedido no sistema.
– Não comprei nada moça. Quero alugar uma quitinete. O carinha ali falou que você podia me ajudar.
– Hum. A proprietária da loja e das quitinetes não está aqui hoje. Quer deixar seu telefone para que ela entre em contato?
– Tem como ligar pra ela agora? Insisti.
Ela entortou a cara. Renata dizia seu crachá. Uma loirinha ao lado dela riu sozinha, só ouvindo sem olhar pro lado, regozijando por ter se livrado de mim, um sem teto e sem cano, na sua cabeça.
– Vou ver o que posso fazer. Aguarde por favor – Renata gentilmente pediu.
– Tudo bem Renata. Faça seu melhor.
Foi pra algum lugar. A loirinha não conseguia conter estática sua epiderme ao redor dos lábios. Eu tinha feito algum favor pra ela acabando com a vida da Renata. Bruna dizia seu crachá. Bruna dos pelos pubianos alegres. Bruna vingadora. Bruna dos olhos azuis da cor dos mares profundos.
– Tá rindo do que Bruna? Perguntei.
Aí que ela se largou na gargalhada, colocando as mãos na frente da boca. Firmei nela meu olhar sedutor. Parecia que todas as mulheres que me viam queriam rir. Ramon não tinha motivos pra rir, mas tinha alguns pra chorar.
– Nada não – Bruna disse – você é engraçado.
– Eu tive uma namorada que me achou de tudo, menos engraçado.
– Desculpe-me. Não consegui segurar.
Mudou de fisionomia como uma atriz veterana e despejou seu olhar pra outro rumo.
– Qual seu nome senhor? Ela disse.
– Jorge.
Olhei pro lado, Jorge devia ser o principal encanador da América do Sul. Precisaria de um caminhão pra levar suas compras. Bruna seguia seu protocolo, sistema, produtos, cobrança, sem ligar mais pra minha presença, sem ligar pra quem não me achava engraçado. Renata voltava com sua ruindade pairando e com novidades.
– Consegui o telefone dela ali na administração – me disse – vou ligar.
– Obrigado – agradeci.
Pegou o telefone e discou os números que poderiam mudar alguma parte da minha vida que já devia estar mudada. Fiquei olhando e ouvindo. Renata não devia ser casada, não  chupava um pau há meses. Que olhar morto. Uma mulher difícil de comer e difícil de dar. Trancada em devaneios, absoluta em cobrar e não pagar. Suas calcinhas eram todas frouxas, seus sutiãs pinicavam seus seios e faziam dobras fundas na pele. Estava encrencada.
– Alô, Dona Carla?…Oi, aqui é a Renata, tudo bem?…Não aconteceu nada Dona Carla, apareceu um senhor aqui pra alugar uma quitinete da senhora por isso estou ligando…Está aqui na minha frente…. – Quantos anos o senhor tem? Perguntou-me.
– Vinte e seis – respondi.
– Vinte e seis Dona Carla….- Estudante?
– Não – falei.
– Não – continuou ao telefone… – Trabalha?
– Trabalho
– Ele trabalha…. – Onde?
– Porra, no museu – falei – tenho 1,87 de altura, 80 kg.
– Trabalha no museu Dona Carla… – Ela quer falar contigo.
Peguei o telefone e disse alô.
– Qual seu nome?
– Ramon.
– Trabalha em qual museu Ramon?
– Na verdade sou substituto, não tenho vínculo algum com o museu.
– Entendi. Bom, hoje só tenho uma quitinete mobiliada com dois quartos pra alugar na gruta.
– Qual o valor?
– R$ 800,00 por mês.
– Só tem essa?
– Hoje sim. Mas pensa bem, na gruta você não vai achar preço melhor que esse.
Um timbre de vida ganha pelas linhas. Metralhando soberba poderosa, de tetas compradas, virtudes e valores alcançados através do poder monetário. Ela jamais iria parar.
– Não quero morar na gruta. Obrigado, tchau.
Passei o telefone pra Renata.
– Oi Dona Carla…Está bem eu direi…tenha um bom dia.
Encaixou o telefone e disse:
– Ela não gostou de você. Mandou comprar uma casa na praia com seu salário de substituto e ser feliz.
– Me passa o número de telefone dela – falei.
– Não posso. Só repassei o recado.
– Qual o valor de um chuveiro?
– Não sei. Vai até ali com um dos vendedores, eles podem te atender.”

 

CAGALHÕES! CAGALHÕES! EXPLORADORES  JORGEEEESSSSS!!!
Levantei, fui até o fogão, coloquei água ferver
Voltei ao banheiro
Olhei para o espelho, vi minha barba toda molhada
Lambi um pouco de gordura
E disse a mim mesmo:
Então esse é o cara que vai virar o jogo?

Mostarda

Você, donzela do fogo
Deixe-me em paz
Homens na contramão não são ultrapassados nem seguidos
Enquanto procura danos menores
Busco goles e ecos
Sua pele macia tem borboletas e frases
Minha pele velha tem manchas e só
Entendo que sua carne precisa tremer
Mas sou operado cada vez que entorpeço
Em ninhos remotos
Deixe-me donzela do fogo
Recolha sua calcinha vermelha dada
Vista-a
Seque os mamilos
Peça-me para não olhar
Desligue a luz
Deite-se ao meu lado e regurgite aquele mantra
Esconda-se e implore
Mais e mais
Do que já tem
Não é suficiente
Sabemos
Por pior que seja
Enfim,
Estamos corretos
E com frio

Altar

“Eu sou o falso poeta que tanto os verdadeiros poetas alertaram para evitar”
Dizendo isso, logo emborcou um copo de cerveja e concluiu:
“Ramon, não adianta, quando a vaca tosse, eles já têm o lenço”
Tentei animá-lo, mas torceu o pescoço e se foi
Lembro dele depois desses anos, ao tentar escrever
Algumas páginas para os Perkins, Martins,
Polidores de Carver, amaciantes de bruxos, assassinos de Toole
Ele, hoje é gerente de hotel
Tem uma filha morando na Europa
Um filho fazendo medicina na federal
E eu sou o falso poeta que tanto os verdadeiros poetas alertaram para evitar
Mais recusado que aceito na maioria das revistas
Contando com o ovo no cu da galinha morta
Por uma seita de amarração para o amor
Ligou pedindo para levar meu currículo até o hotel
“Ramon, não morra sem conseguir comprar um carro”
Torci o pescoço e desliguei
Depois de alguns litros liguei para o hotel
“Quero falar com o gerente”
Passou uns segundos até ouvir o tom camuflado da sua voz
“Posso lhe fazer uma pergunta?”
“Claro” ele disse
“Se lhe dessem como último pedido na vida escolher uma música para ouvir, pediria a mais longa ou a que mais gosta?”
“Ein?”
Desliguei de novo

“estrAbismo” não é apenas uma compilação de escritos dos autores Eduard Traste e Ramon Carlos, é um conceito. Como o nome sugere, são visões distorcidas, olhares próprios, impróprios e às vezes gritos do Abismo. Através de poemas viscerais, caóticos, cômicos, pornográficos, estrábicos, como quer que seja, os autores, já publicados em revistas como: Alagunas, Literalivre, Subversa, Inutensílio, Philos e Escambau, discorrem sobre qualquer coisa, desde que o resultado sintonize na frequência pulsante de versos vivos. MR. OCULUS paira com sua elegância sobre a deselegância, com sua justiça sobre a injustiça, com seu tato nas mesquinharias espalhafatosas que corroem a nobreza de um louco

O mundo como livro e cada pessoa uma página. Algumas são difíceis entendermos, outras pulamos, e por fim há as que queremos ler e ler e ler por muito tempo. Páginas rasgadas e caídas, esquecidas, ficam por um tempo sem serem notadas, incompletam o livro, incompletam um parágrafo seguinte, mas elas estão por aí, fazendo suas próprias histórias de uma página só. Eu caberia em uma frase mal escrita por mim, sem pontuação, apenas palavras corridas, imergindo, como um cinzeiro repleto de desculpas, como as fotos do dia anterior, como uma linha delirante e tênue, cicatrizado, paralelamente à minha leitura do livro, do mundo, de você. Letras queimadas, aqui vamos nós, para essa doença sem fins lucrativos.